Longe da vizinhança, mas nem tanto. A estreia da peça "A Casa de Bernarda Alba", nesta sexta-feira (26), no Sesc 14 Bis, marca uma nova fase da companhia Os Satyros após uma década trabalhando em dramaturgias próprias, construídas e apresentadas coletivamente a partir de histórias do entorno de sua sede, na praça Roosevelt, um trecho movimentado, boêmio e teatral da região central de São Paulo.
Geograficamente, a distância entre a Roosevelt e o Sesc 14 Bis é de apenas 1,5 km, 20 minutos a pé, 11 de carro. Fica logo ali. Na concepção da montagem, a transformação também não chega a ser radical. A trupe escolheu um clássico de Federico García Lorca, porém, irá apresentá-lo ao público com seu jeito transgressor e provocativo.
A tragédia chega ao palco do Sesc a partir do olhar experimental da companhia e com uma linguagem estética coloquial proposta pela direção. São três elencos que encenam três versões diferentes da peça.
Um dos elencos é feminino, outro é masculino e o terceiro, misto, é escalado ao vivo, com a participação do público a partir de um jogo colaborativo. Cada versão oferece perspectivas diferentes dos temas abordados.
E, segundo Rodolfo García-Vázquez, diretor do espetáculo, a "jam" teatral faz com que as possibilidades se multipliquem. São várias peças em uma só, com centenas de combinações cênicas, de gênero e raça. É um espetáculo múltiplo e questionador.
O caldeirão de tensões da casa de Bernarda Alba fervilha a partir de uma matriarca dominadora, que mantém as cinco filhas sob uma vigilância cruel e as silencia. É uma história de opressão às mulheres na segunda metade da década de 1930, às vésperas da ditadura franquista (1939-1975) na Espanha.
Ao criar uma versão em que o drama é protagonizado por corpos masculinos, os Satyros fazem com que homens vivam situações tradicionalmente associadas à condição feminina, mas que, de forma mais abrangente, simbolizam a violência institucional e social.
"O mundo é estruturado de forma binária e os papéis do homem e da mulher são socialmente construídos. O que queremos é mostrar as contradições desses papéis e como elas nos afetam", afirma García-Vazquez. "A peça busca a provocação de tirar o público do binarismo de gênero".
As questões de gênero e sexualidade fazem parte da trajetória da companhia desde a fundação, em 1989, com montagens de autores como Marquês de Sade ou baseadas na vida e obra de Oscar Wilde e Sappho de Lesbos.
A chegada à praça Roosevelt, no ano 2000, intensificou as pesquisas a partir da convivência diária com a comunidade trans, a prostituição, os preconceitos e a repressão policial.
A obra do poeta e dramaturgo espanhol estava no horizonte há muito tempo. Uma das razões é a origem de um de seus fundadores, García-Vázquez, descendente de imigrantes que fugiram da pobreza após a guerra espanhola.
Além disso, ele e Ivam Cabral, também fundador do grupo, destacam o fato de a dramaturgia, escrita em 1936, ainda ser contemporânea.
"Em Bernarda Alba temos a questão do estupro, do aborto (indiretamente, com a mulher que doa um filho) e também a guerra. E vivemos uma guerra aqui. Uma guerra de classes, que não é muito diferente da espanhola", analisa Cabral, pesquisador da encenação.
A montagem celebra os 35 anos da companhia, que já montou 145 espetáculos encenados em 36 países, ganhou prêmios nacionais e internacionais, é uma dos criadoras da SP Escola de Teatro, produz o Festival Satyrianas e tem importante papel na revitalização da praça Roosevelt, inclusive com a restauração do Cine Bijou.
Nessa fase madura e depois de "Aurora", peça que começou a ser criada durante a pandemia e abordou a vida de moradores de um pequeno prédio na rua de mesmo nome, os Satyros decidiram olhar para os textos clássicos e pesquisar de que forma eles dialogam com o momento do país.
Encenaram, então, "As Bruxas de Salém", evocando a histeria coletiva para falar do Brasil sob Bolsonaro, e agora estreiam o novo espetáculo.
"A Casa de Bernarda Alba" vai suceder, no mesmo espaço, Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir, em uma temporada que atraiu público de 10 mil pessoas.
É como uma bênção, mas também há tensão nesse enredo em que a trupe sai do palco alternativo da Roosevelt e chega a um teatro de 513 lugares, logo após o sucesso retumbante da grande atriz de 94 anos.
O lançamento do livro "Os Satyros - Teatricidades: Experimentalismo, Arte e Política", das Edições Sesc, faz parte das comemorações do aniversário. A obra, com textos e fotos, registra de forma analítica as produções cênicas, as pedagogias e as ações urbanísticas, sociais e culturais dos artistas.
Além disso, há o "lado B": um processo da Associação da Moral e dos Costumes Escoceses, chocada com a montagem despudorada de "A Filosofia na Alcova" no Festival de Edimburgo de 1993; as ameaças de expulsão feitas por traficantes da região central e a resistência à gentrificação da Roosevelt.
"O grupo trouxe para dentro de sua coxia, plateia e cenário a diversidade do entorno, tematizando identidades marginalizadas e questionando, entre inúmeros postulados, a normatividade dos corpos", escreveu Danilo Santos de Miranda em agosto de 2023, dois meses antes de morrer. Diretor do Sesc SP durante quatro décadas, Miranda assina o texto de abertura do livro, em uma síntese da companhia que é a cara do centro da capital
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