Como Danilo Miranda transformou Sesc SP em potência cultural

Aos 80 anos, diretor do centro cultural comenta legado de sua gestão de quatro décadas e novos projetos

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] Há quase 40 anos no comando do braço paulista do Sesc, o sociólogo Danilo Miranda fez da instituição uma espécie de Ministério da Cultura não oficial, promovendo uma série de atividades artísticas (exposições, música, teatro, cinema) de perfil tanto comercial quanto experimental. Aos 80 recém-completados, ele relembra momentos importantes de sua gestão, anuncia novos projetos e comenta o processo de transição no Sesc.

O Ministério da Cultura está sediado em Brasília. Um ministério não oficial, submetido à Fecomércio (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), ocupa um prédio no bairro do Belém, em São Paulo. Nas últimas quatro décadas, o sociólogo Danilo Santos de Miranda conduziu a transformação do braço paulista do Sesc (Serviço Social do Comércio) em uma potência da política cultural no país.

Em uma tarde, na sede da rua Álvaro Ramos, Miranda equilibrava cerimônia e informalidade na combinação de blazer e boné. Ele abriu uma porta no fundo de seu gabinete e ingressou na sala de repouso com livros e obras de arte. O silêncio era espesso. No comando do Sesc SP desde 1984, Miranda infundiu sua simbiose de cultura e educação no setor empresarial.

Danilo Miranda, diretor regional do Sesc SP, no corredor da unidade do Belenzinho, em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

"No início, eu era tachado de um pouco inadequado porque valorizava, aparentemente, só o aspecto cultural do Sesc e não levava em conta o restante, a parte da saúde, atividade física, alimentação. Na realidade, eu integrava tudo isso na questão cultural. Porque a questão cultural nunca foi apenas a questão das artes. Tem um caráter da valorização do espírito muito maior", afirma Miranda, que completou 80 anos na última segunda-feira (24).

Criado por decreto-lei do presidente Eurico Gaspar Dutra, em setembro de 1946, o Sesc deve promover o bem-estar social de empregados (e seus familiares) do setor de comércio e serviços. Seu arco de atividades envolve educação, saúde, lazer, cultura e assistência. Ele integra o Sistema S, que enfeixa nove instituições administradas por federações e confederações, sendo financiado por dinheiro recolhido pelo governo na folha de salários das empresas.

De natureza privada, o Sesc SP presta contas ao TCU (Tribunal de Contas da União) e seus gastos são expostos em um portal da transparência. No ano passado, seu orçamento chegou a R$ 2,4 bilhões. Na área de cultura, realizou de janeiro a dezembro 77 exposições, 1.467 exibições de filmes, 649 apresentações de circo, 474 de dança, 1.280 de teatro e 3.285 espetáculos de música. As unidades registraram mais de 15 milhões de frequentadores em 2022.

No segundo mandato de Lula (2007-2010), o então ministro da Educação, Fernando Haddad, desejou repactuar o Sistema S. Em nosso encontro, Miranda recordou os diálogos rugosos com Haddad nos bastidores de eventos, em 2008 e 2009. "Nessas ocasiões todas, eu e Haddad falávamos, e ele dizia para mim que o dinheiro do Sesc tinha que ser utilizado totalmente para formação profissional. Eu dizia: para formação profissional existe uma entidade criada só para isso, o Senac."

"Isso antes de ele ser prefeito de São Paulo. Depois que virou prefeito, em pouco tempo, arrastava os pés para a gente, doutor. Queria entregar tudo quanto é terreno. O terreno do Parque D. Pedro 2º começou a ser tratado pela administração do Haddad."

Miranda diz que o atual ministro da Fazenda é "um querido", mas, se o debate voltar, vai insistir em seus argumentos. Procurado, Haddad não quis comentar o tema. No governo Jair Bolsonaro, Paulo Guedes acenou com cortes no montante bilionário, mas a ideia não prosperou.

"Se juntar os quatro S originais —Sesc, Sesi, Senai, Senac—, você tem um capital acumulado do ponto de vista patrimonial, do acervo de conhecimentos, que é uma coisa riquíssima", observa.

O espírito disciplinado e hierárquico de Danilo Miranda tem matrizes religiosas. Ele nasceu em uma família de classe média de Campos (RJ) e ingressou, ainda sem clareza vocacional, em um colégio interno de jesuítas, o Anchieta de Nova Friburgo. De 1964 até o início de 1968, viveu no seminário à espera da ordenação. Não se fez padre.

"A formação dos jesuítas é bastante demorada. Percebi que não era para mim", conta. "Em 1964, quando estourou o golpe, eu estava nos exercícios espirituais de Inácio de Loyola [o fundador da ordem católica Companhia de Jesus, no século 16]. Você ficava um mês sem falar com ninguém, só meditando, rezando, lendo. Em um intervalo, um cara veio todo satisfeito contar que tinha estourado a ‘revolução’."

"Isso não é revolução. Estão impedindo a verdadeira revolução", ele reagiu, ao saber do bailado de generais na derrubada do presidente João Goulart. Aos 24 anos, em 1968, abandonou o seminário e passou a viver em São Paulo, como entrevistador de uma agência de empregos.

Ele clareou sua trilha ao entrar no Sesc, por meio de concurso para orientador social, em 1º de novembro de 1968. Sua chegada ao topo aconteceria 16 anos mais tarde. No início de 1973, migrou para a gestão de pessoas do Senac. Em 1984, ao assumir a presidência da Fecomércio, o empresário judeu Abram Szajman o conduziu à diretoria regional do Sesc SP.

Meses antes da escolha, Szajman observou a presença de Miranda nos eventos do Sesc Pompeia, inaugurado em 1982 sob a batuta arquitetônica de Lina Bo Bardi. "Eu sei que aí está um pouco a chave do mistério. Abram me relacionou com aquele negócio. Quando ele foi eleito, pouco depois, me convidou", recorda Miranda. "Ele me viu bem-relacionado na comunidade judaica. Não vou dizer que foi decisivo, mas que ajuda, ajuda."

Com ele, a expansão cultural do Sesc ganharia mais respaldo interno. "Eu devo ser justo. Havia um diretor regional anterior, Renato Requixa, que já tinha essa perspectiva. Talvez ele não tivesse condições de implementá-la como eu tive. A história do Sesc Pompeia é muito mais do Renato e da equipe que estava antes que minha."

No início da gestão, enfrentou a desconfiança do diretor Antunes Filho, receoso da perda de prestígio do Centro de Pesquisa Teatral, e a rijeza da arquiteta Lina Bo Bardi. Antunes não tardaria a ser um entusiasta de Miranda. Com Lina, a relação foi áspera até a saída de seu escritório do Pompeia, em 1986. Anteparos desenhados para evitar a queda de frequentadores em uma fenda do bloco esportivo, as "flores de mandacaru" brotaram depois de atritos com o diretor.

"Lina não era muito fácil. Aquele mandacaru é criação dela porque eu enchi o saco. ‘Se a senhora não puser nada ali, vou encher de tijolo aquela trolha’. Ela: ‘Eu vou para a imprensa! Não vão interferir’. Ela não queria pôr nada. Criança correndo para lá, para cá, uma altura de 15 ou 20 metros. ‘Lina, não vão aprovar. Ou a gente fecha, ou não vai abrir’. Ela ficou p. da vida, mas surgiu o mandacaru."

Dos projetos arquitetônicos às pesquisas do centro de memória, da negociação dos direitos autorais do álbum "Relicário: João Gilberto (Ao Vivo no Sesc 1998)" aos encontros com a Funarte para incorporar o prédio do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), o diretor acompanha todas as áreas do Sesc SP e se posiciona no centro das decisões. Diplomático, dialoga com políticos de esquerda e direita. Durante o governo Bolsonaro, não parou de criticar as ameaças de censura às artes.

A popularidade entre artistas cresceu com sua abertura para recebê-los em audiências. Em casos mais raros, ele deixa a sede e vai discutir um projeto no habitat do criador, o que aconteceu em sua aproximação com o Teatro Oficina, em 1993. Na TV, o diretor José Celso Martinez Corrêa se queixou da dificuldade financeira da montagem de "Ham-Let". Miranda telefonou e marcou uma visita a seu apartamento, na praça da República.

"Ele se ofereceu para fazer ensaios em várias unidades do Sesc, com oficinas em cidades do interior, para os funcionários. Houve de início até um exagero. Assim mesmo ele bancou", lembra Zé Celso. "Se não tivesse Danilo Miranda, não tinha teatro em São Paulo. Só teria musical. Ele é praticamente o ministro da Cultura de São Paulo. Apoiou ‘O Rei da Vela’, ‘Roda Viva’ e ‘Fausto’."

Casado desde 1972 com a assistente social Cleo Regina, Danilo Miranda tem duas filhas, as diretoras Camila e Talita, e quatro netos. Em sua casa, no Pacaembu, ele oferece, vez ou outra, almoços para convidados estrangeiros. A lista abrange a atriz francesa Isabelle Huppert, a artista sérvia performática Marina Abramović, a curadora suíça de origem armênia Adelina von Fürstenberg e os músicos americanos Wynton Marsalis, Brian Jackson, Ladybug Mecca e J. Period.

Nenhum desses laços profissionais se equipara à sua simpatia pelo filósofo francês Edgar Morin, 101 anos. "O Sesc é uma instituição essencial para manter a vitalidade da cultura brasileira e, ao mesmo tempo, para os brasileiros conhecerem o melhor da cultura estrangeira", declarou Morin em mensagem de áudio. "Nossa amizade se fortaleceu ao longo dos anos. Entre Danilo e eu há uma união amigável e afetuosa permanente. Entre o Sesc e eu, um casamento de amor que continua."

O diretor teatral Gerald Thomas se tornou um amigo ainda mais próximo de Cleo e Danilo, além de cicerone do casal em Nova York. Aos dois, pede e dá conselhos. "É uma amizade muito sólida. De crises, alegrias e tristezas", diz Thomas. "Não é comigo só. Ele leva para o Brasil o teatro experimental de Nova York. Sempre antenadíssimo, esperançoso, apaixonado. Você pega o programa do Sesc e tem um leque cultural que não se iguala a qualquer centro cultural do mundo que inclua teatro. Ele também não dorme, assim como eu."

A gestora Cláudia Toni, curadora do Festival Sesc de Música de Câmara, elogia a acolhida a projetos na contracorrente. "Ele percebeu a importância do Sesc tornar-se o espaço da música que tem sido sistematicamente preterida em favor da música sinfônica, no caso da música clássica. Mais importante: ele entendeu que a música de câmara é uma opção inigualável à música comercial de baixíssima qualidade."

Na definição irônica de alguns admiradores, o Sesc SP é uma União Soviética que deu certo. A instituição tem 44 unidades, das quais 23 estão na capital e 17 no interior do estado. Outras quatro são as especializadas Sesc Digital, Edições, Selo Sesc e Sesc TV. Nos próximos anos, oito novas unidades vão ser inauguradas, a exemplo dos Sescs Franca, Limeira e TBC. Miranda anunciou que o prédio da Fecomércio e o edifício João Brícola (antigo Mappin), na capital, serão agregados.

No fim de 2022, o diretor iniciou o que chama de transição dentro da expansão. "Estou soltando cada vez mais as rédeas do controle de tudo. Não dá mais", afirmou em sua sala. "Fizemos mudanças porque alguns se aposentaram. Abaixo do diretor têm quatro superintendências. Esses quatro foram modificados agora. Está havendo uma transição. Isso é parte do nosso processo normal. A pandemia atrasou isso, mas agora a gente está fazendo essa transição."

Ele confia na permanência de seu legado, mas prefere ser cauteloso. "Garantido? Absolutamente, não existe, porque as pessoas mudam. Com relação a um caminho deixado, é muito claro. Qualquer gerente nosso vai defender mais ou menos os mesmos princípios."

Apesar do resguardo na pandemia, Miranda teve duas vezes Covid e precisou reforçar a fisioterapia. O lançamento do álbum de João Gilberto pelo Selo Sesc favoreceu sua recuperação. Em 5 de abril, no palco do Vila Mariana, com o cantor Renato Braz e o músico e ensaísta José Miguel Wisnik, sua felicidade transpareceu na hora em que a voz de João preencheu o teatro com "Chega de Saudade". Em êxtase, ele fechou os olhos.

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