Descrição de chapéu Flip

Euclides registrou confins da Amazônia para livro nunca concluído

Jornalista refaz viagem do escritor ao interior do Acre, documentada em diário de 1905

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Fernando Granato

[RESUMO] Em viagem ao interior do Acre em 1905, o escritor homenageado da Flip registrou em seu diário, com vistas a um livro que não concluiu, o quadro de abandono e a exuberância natural da Amazônia.

O rio barrento ainda corre ligeiro carregando troncos, folhas e tudo o que está pela frente. Em cima da barranca, no alto de um pequeno morro, resistem três casinhas de madeira, erguidas sobre pilares, para evitar a umidade. Numa delas, avarandada, está escrito numa tinta gasta: Escola Municipal Coronel José Ferreira.

Essa é a única ligação aparente que restou, 114 anos depois, da viagem que em 1905 o escritor e engenheiro Euclides da Cunha fez a esta pequena localidade no interior do Acre, então chamada Seringal Liberdade.

Encarregado de chefiar a Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, ele passou um ano na Amazônia. No dia 18 de maio, conforme registrado no Diário de Marcha, chegou a esta região às 13h30.

Até o final do século 19, o lugar era um canto esquecido que não interessava a ninguém. Com o surto da borracha, passou a ser cobiçado não só por seringueiros brasileiros, mas também por bolivianos e peruanos, tornando-se palco de intensas batalhas

O Brasil havia assinado dois anos antes o Tratado de Petrópolis com a Bolívia, assegurando a posse do território do Acre em troca de algumas vantagens aos bolivianos, que se diziam proprietários, como o pagamento de 2 milhões de libras esterlinas, mais a promessa da construção da Ferrovia Madeira Mamoré, para que aquele país pudesse escoar suas mercadorias até o mar.

Nesse contexto efervescente, Euclides chegou ao Acre e não viu cidades, apenas comunidades que se estabeleciam em pontos isolados ao longo do rio. O diário informa que, quando aportou no Seringal Liberdade, o escritor desceu para procurar o coronel José Ferreira, dono do lugar, e averiguar com os próprios olhos a informação que havia recebido: ali existiriam peruanos presos, servindo de escravos. Como Ferreira não estava e nada se viu, a comitiva deixou o local às 14h20, acreditando que a denúncia era falsa.

Mais de um século depois e no ano em que Euclides é o autor homenageado da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), uma visita ao antigo seringal mostra que o escritor estava certo quando previu a decadência daquele lugar, com o fim da exploração da borracha. E errado em relação aos peruanos escravizados.

O professor Tupachiopanque Torejas, 74, é descendente de peruanos e vive em Manoel Urbano, cidade de 7.000 habitantes que ainda não havia sido fundada quando Euclides esteve lá. Hoje o local engloba a área do antigo Seringal Liberdade. 

Interessado na história dos antepassados, Torejas colheu ao longo da vida relatos de antigos moradores do seringal e constatou: “Havia até tronco para amarrar os peruanos, da mesma forma como se fazia com os negros”.

Morador de uma das casinhas do que restou de Liberdade, Antônio Pereira Dias, 60, também passou a vida escutando as histórias a respeito do coronel José Ferreira.

Neto de um cearense que chegou ali no início do século 20 para ser “soldado da borracha”, Dias lembra-se de o avô contar que o coronel mandava matar aqueles que não tinham mais saldo com ele. Ou seja, quem já não devia ao patrão, de modo a perpetuar a relação de semiescravidão calcada na dívida, que começava no dia em que o seringueiro chegava para trabalhar. O seringueiro era obrigado a comprar mantimentos e apetrechos do patrão, que também custeava a viagem de ida.

Dias e seu vizinho Raimundo Rosa do Nascimento, 78, cortaram seringa até os anos 1990. Depois do fim da cultura na Amazônia, com a forte concorrência gerada pela expansão das lavouras na Malásia, passaram a viver de agricultura de subsistência. Plantam banana e mandioca e completam a alimentação de suas famílias com benefícios do governo federal.

Dias engorda o orçamento com os R$ 130 mensais que a mulher recebe do Bolsa Família. Nascimento conta também com o rendimento do programa para sua mulher, mais a aposentadoria dele pelo Funrural, no valor de um salário mínimo. 

O acesso à saúde é escasso, tanto que o filho mais velho de Dias, que rompeu o canal da uretra num acidente em um igarapé, levou três anos até conseguir resolver o problema numa cirurgia. Passou esse período com uma sonda para urinar, que o impedia de ter uma vida normal.

Sobre as privações pelas quais passam, com pouco acesso a recursos e conforto, Dias diz: “Hoje está ruim, não temos a ajuda de ninguém, mas no tempo da seringa também não era bom. Nunca ganhei dinheiro com aquilo, ficava só com o patrão”. 

Essa relação do homem que “trabalha para escravizar-se”, na definição de Euclides, interessou desde o início o escritor-engenheiro, que pretendia tirar dali outro “livro vingador”, como dizia, depois de “Os Sertões”, sobre a Guerra de Canudos, que havia lançado em 1902. Queria escrever sobre aquele mesmo nordestino do primeiro livro, transformado depois da aventura amazônica.

Além da relação injusta de trabalho, cabia ao nordestino que ali chegava suportar a dura tarefa de se adaptar a um meio inóspito, completamente diferente do que estava acostumado. “E as suas almas simples, a um tempo ingênuas e heroicas, disciplinadas pelos reveses, garante-lhes, mais que os organismos robustos, o triunfo na campanha formidável”, escreveu Euclides.

A ideia do escritor era produzir com o material da Amazônia um livro chamado “O Paraíso Perdido”, uma vez mais sustentado por matrizes bíblicas, como em “Os Sertões”. Começaria com o Gênesis e se prolongaria do Paraíso ao Inferno. O projeto, entretanto, não chegou a se concretizar —restaram textos soltos publicados em jornais e no livro póstumo “À Margem da História”, lançado em 1909, mesmo ano da morte de Euclides.

Esses ensaios sobre a Amazônia serviriam como preparação para um projeto maior, da mesma forma que o “Diário de uma Expedição” serviu para a elaboração de “Os Sertões”. A semelhança entre os dois trabalhos não termina aí. Como no livro anterior, a nova obra estaria dividida em três partes: o meio geográfico (a terra), o habitante daquele lugar (o homem) e o conflito pela terra (a luta).

No ensaio “O Legado de Euclides da Cunha”, Walnice Nogueira Galvão, professora emérita de teoria literária da USP e uma das maiores especialistas na obra do escritor, afirma que esses trabalhos somavam-se ao grande projeto do autor “de conhecer e dar a conhecer o Brasil”.

Euclides pretendia partir de uma região específica para falar de seu país. Em seus manuscritos de viagem já se percebe essa intenção, como no trecho em que descreve a chegada às nascentes do rio Purus: “Os nossos olhos deslumbrados abrangiam, de um lance, três dos maiores vales da terra; e naquela dilatação maravilhosa dos horizontes, banhados no fulgor de uma tarde incomparável, o que eu principalmente distingui, irrompendo de três quadrantes dilatados e transcoando-os inteiramente —ao sul, ao norte e a leste— foi a imagem arrebatadora da nossa pátria, que nunca imaginei tão grande”. 

Embora não tenha conseguido realizar o livro que queria, na visão de Walnice os ensaios amazônicos de Euclides constituem “algumas das mais válidas reflexões que já se fizeram sobre a região, sua natureza e seus habitantes”.

Num dos relatos de “À Margem da História”, Euclides aponta que o sofrimento do seringueiro era tanto que a notícia do contágio da malária chegava a ele como uma grata surpresa. “O impaludismo significa-lhe, antes de tudo, a carta de alforria de um atestado médico.”

Para os que não tinham a sorte de adoecer, relatou, não restava outra opção a não ser tentar melhorar a terra, como pudessem, para habitá-la. E aí, observou o escritor, os nomes dos lugarejos indicavam o grau de decepção pelo qual já havia passado o seringueiro. 

Da fase inicial e tormentosa da colonização, em meados do século 19, surgiram pequenos povoados chamados de Valha-Nos Deus, Saudades, São João da Miséria. Já na segunda fase, no início do século 20, quando havia a esperança de uma vida melhor, nasceram comunidades com os sugestivos nomes de Bom Princípio, Triunfo, Liberdade.

Liberdade bem ilustraria aquilo que Euclides queria denominar de “O Paraíso Perdido”, o lugar que era para ser e não foi. Da promessa inicial de um mundo novo, com a fartura trazida pela borracha, à desolação. Descrevendo este e outros novos aldeamentos do Alto Purus, naquele início do século 20, o escritor falou em “casas numerosas, que se arruam ao lado de pequenas igrejas”. 

Hoje, Manoel Urbano, cidade fundada em 1976 naquela área, cujo nome é uma homenagem a um dos primeiros exploradores do rio Purus, é o retrato da estagnação. 

De acordo com pesquisas, o lugar tem um dos mais baixos IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) do país, 0,551, numa escala que vai de zero a um. O PIB per capita da cidade é de R$ 14.182, menos da metade da média nacional, ao redor de R$ 32 mil.

Uma volta pela pracinha central, numa noite de sábado, ilustra o que os dados estatísticos indicam. Num bar com mesas na calçada, a dona tenta explicar a falta de cerveja naquele lugar. “A gente tem que pagar à vista para o distribuidor e não tem garantia de que vai revender o produto. Numa noite como esta, que devia estar cheia de gente, não tem ninguém, minhas mesas estão vazias.”

O único movimento que se via nas ruas da cidade, ainda assim pequeno, era numa tenda armada por jovens missionários evangélicos, que se autodenominavam Santos na Estrada, e ali estavam para pregar a Bíblia. 

Cerca de 50 pessoas acompanhavam o culto com cantos. O suficiente para tirar o público do Circo Peppa, instalado a alguns metros, que fazia naquela noite sua primeira apresentação na cidade e tinha a maioria das cadeiras sem gente.

A economia local gira em torno do poder público municipal, o maior empregador. Um crime recente evidencia a dependência da população dessa fonte de recurso. 

No início do ano, o prefeito da cidade, Tanízio de Sá, sofreu um atentado por meio de envenenamento. Segundo a polícia, há indícios de que tenha sido uma represália pelo fato de ter demitido dezenas de funcionários sob a alegação de que o gasto com a folha de pagamento estava acima do permitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Os problemas de segurança também são muitos, sobretudo por conta da localização do município, numa faixa de fronteira com o Peru, o que o deixa exposto ao tráfico de drogas e armas. Além disso, a cidade vive uma onda de estupros de vulneráveis, sobretudo menores de idade. 

De acordo com o Ministério Público do Acre, em 2018 foram registradas na cidade 16 denúncias de estupro de vulneráveis. O número é maior que o total registrado nos seis anos anteriores.

Na saúde, como em todo o estado do Acre, a situação se agravou depois da saída dos 104 médicos cubanos do programa Mais Médicos. Em cidades pequenas, como Manoel Urbano, o caos ficou ainda maior. Em dezembro, o Ministério Público do Acre recebeu uma denúncia dando conta de que a Unidade Mista de Saúde da cidade estava sem médico disponível para atender a população.

Nas ruas empoeiradas de Manoel Urbano, sente-se o tempo andar devagar. A qualquer hora do dia há pessoas desocupadas sentadas pelos cantos ou caminhando a esmo. As poucas casas de comércio estão sempre vazias; são raras as atividades produtivas. A pasmaceira em parte se explica pelas circunstâncias em que foi povoado o Acre, “fora da diretriz do nosso progresso”, como definiu Euclides da Cunha. 

No texto intitulado “Um Clima Caluniado”, o escritor lembra que as secas periódicas que castigaram o sertão nordestino no final do século 19 e começo do 20 lançaram para as cidades litorâneas grande contingente de famintos, “devorados das febres e das bexigas”. E o que faziam as autoridades? Ele próprio responde: “Mandavam-nos para a Amazônia, despovoada, quase ignota.”

Depois disso, cessava a intervenção governamental. “Nunca, até nos dias de hoje, a acompanhou (a imigração) um só agente oficial, ou um médico”, escreveu Euclides. “Os banidos levavam a missão dolorosíssima e única de desaparecerem...”

Mas resistiram. Fundaram cidades, avançaram rio acima com vilas e povoados no sentido do Peru. E a Transacreana, já vislumbrada por Euclides como uma “estrada internacional de aliança civilizadora e de paz”, começou a se tornar realidade apenas recentemente, não mais como uma ferrovia, como ele pensava, mas uma rodovia.

O trecho que liga a capital do Acre, Rio Branco, a Cruzeiro do Sul, passando por Manoel Urbano, só foi asfaltado em 2011. E mesmo assim, apesar de novo, apresenta inúmeras crateras pela quantidade de caminhões e constantes chuvas. 

Resignados, os motoristas viajam num verdadeiro zigue-zague para escapar de buracos, e os passageiros, apesar do desconforto, dão graças a Deus por conseguirem chegar em algumas horas a destinos que antes demandavam dias de trajeto por caminhos fluviais. A própria economia da cidade ganhou certo respiro com a estrada, já que antes o comércio e o abastecimento eram feitos unicamente pelo rio.

No último sábado de Aleluia, era intenso o movimento de pessoas que iam visitar parentes nas comunidades ribeirinhas ao longo do Purus. A estrada trouxe um alento para aquela gente que no passado, como observou Euclides, não tinha na véspera da Páscoa outra opção a não ser se vingar de seus dias tristes malhando um boneco de palha que representava Judas. Hoje já não permanece essa tradição no Alto Purus. 


Fernando Granato, jornalista e escritor, é autor de “O Negro da Chibata” (Objetiva) e “Nas Trilhas de Quixote” (Record).

Ilustrações de Fernando Vilela, artista visual e escritor, autor de “Lampião & Lancelote” (Zahar).

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