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Disco de Black Alien é oásis em deserto de ideias

Músicas do novo álbum do rapper, o melhor do ano, foram executadas mais de 15 milhões de vezes

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Lucas Nobile

“Assim Falou Zaratustra”, “Apocalypse Now”, “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, “A Divina Comédia”. Acrescente à lista Nina Simone, Bob Marley, Ramones, Kurt Cobain, Amy Winehouse, Black Flag, Yellow Man, Os Paralamas do Sucesso, Jane’s Addiction, Nelson Gonçalves, Jimi Hendrix, mestre Yoda, “Procurando Nemo”, “Matrix”, “E.T.”, Carl Jung. 

Soltas, essas referências parecem verbetes de um almanaque da cultura pop ocidental ou aquelas listas de vestibular. Bem costuradas, ganham sentido ao longo dos 26 minutos de “Abaixo de Zero: Hello Hell”, disco lançado por Black Alien em abril nas plataformas digitais —e que acaba de sair em LP pelo serviço de assinatura Noize. 

Em menos de quatro meses, as nove músicas do álbum foram executadas mais de 15 milhões de vezes só no Spotify. Ver um disco como este —com versos como “Quem me viu mentiu/ País da fake news/ Entre milhões de views/ E milhões de ninguém viu” ou “Presidentes são temporários/ Meu despertar, temporão/ Música boa é pra sempre/ Esses otários jamais serão” ou “É tempo de templo/ Só rato cinza na via”— ser ouvido por tanta gente é um alento. 

No rádio ou na TV, escuta-se em geral uma massa sonora pasteurizada, com fórmulas que se repetem, resultando num pop apoteótico de arena. No caso das letras, o deserto de ideias é ainda mais árido. Os versos limitam-se a falar de “balada”, “pegação” e um conceito de amor-próprio distorcido na base da vingança. Esse é o retrato apresentado pelo ranking das mais tocadas nas últimas semanas no Spotify.

“Se por ele eu sofro sem pausa/ Quem quiser me amar/ Também vai sofrer nessa bagaça” (Marília Mendonça); ou “Me mata não, essa internet virou arma na sua mão” (Jorge e Mateus).

Quem ouve letras como essas tem a impressão de que o país é um camarote, um condomínio fechado ou que se resume a um Tinder (aplicativo de relacionamentos) continental. Nem parece que há mais de 500 dias uma vereadora foi assassinada —e ainda não se sabe quem mandou matar Marielle Franco

Assim como não parece que o presidente chamou os governadores do Nordeste de “paraíbas”, que o desmatamento na Amazônia aumentou ou que militares do Exército mataram “por engano” um músico com 80 tiros. O like, o lacre e a festa são necessários, mas não deveriam reinar solitários.

Fora dessa cena dominante, artistas com audiências menores seguem fazendo música que dialoga com a realidade do país: Ava Rocha, Karina Buhr, Aíla, Negro Leo, Douglas Germano e muitos outros. Sem falar em nomes que já atingem públicos maiores, como BaianaSystem, Xênia França e Baco Exu do Blues, cada qual com sua identidade.

Por sua essência, o rap é o gênero que nunca deixou de ser combativo. Nos últimos anos, Criolo, Emicida e Rael têm chegado a plateias volumosas. Recentemente, destacam-se Rincon Sapiência, Karol Conka, Djonga e Drik Barbosa. Neste 2019, do rap desponta o melhor disco do ano: “Abaixo de Zero: Hello Hell”. Mais sereno aos 47 anos, Black Alien retrata como poucos a realidade própria e a das ruas. Assim, permanece professor sem ser professoral.

Nascido em Niterói (RJ), Gustavo de Almeida Ribeiro iniciou sua trajetória na música nos anos 1990, com o codinome Bulletproof (em português, à prova de bala). Adicionando influências do rock, do soul, do reggae, do jazz e principalmente do ragga (estilo jamaicano) ao rap, despontou em duo com o produtor Speedfreaks. Depois da projeção nacional como integrante do Planet Hemp, lançou “Babylon by Gus, Volume 1 - O Ano do Macaco” (2004), seu primeiro álbum solo, um dos mais importantes da história do rap nacional.

Na última década, entre idas e vindas de internações em clínicas de dependência química, Black Alien quase morreu. Após se recuperar, buscando retomar a melhor forma, lançou em 2015 “No Princípio Era o Verbo - Babylon by Gus, Volume 2”, que não correspondeu às expectativas. 

No novo disco, em faixas como “Aniversário de Sobriedade”, o compositor fala de um assunto delicado, a reabilitação, sem ser piegas nem evangelizador: “Tô sem frases, o que me trazes?/ Isso é metanfetamina, a droga dos kamikazes/ Precisam de coragem pra poder morrer na guerra/ E eu preciso de coragem pra viver fazendo as pazes”. 

Musicalmente, os versos de Black Alien encontraram nos beats de Papatinho —jovem produtor que atraiu a atenção de nomes como Anitta, Ludmilla e Snoop Dogg— a combinação ideal para chegar a mais de 15 milhões de fones e também às pistas. Prova de que engajamento e entretenimento, crítica e ritmo dançante podem, sim, ecoar na mesma batida.

Na música brasileira, dá-se muito valor à divisão, isto é, à maneira como o intérprete brinca ao dividir as frases. Nesta arte, destacam-se João Gilberto, Jackson do Pandeiro, Caco Velho e Dona Ivone Lara. No rap, é o que se chama de “flow”. Nessa seara, seja fazendo crítica social, falando de si ou de amor, Black Alien enverga a camisa 10. Como Maradona no futebol ou Orson Welles no cinema, faz o complicado parecer fácil.

Em 2004, o rapper exaltava suas referências: “Homenageio gente que eu admiro/ Chico Buarque, Van Gogh, Robert de Niro, Francisco França (Chico Science), Mauro Mateus (Sabotage)”. Neste novo álbum —como um zeitgeist musical de 2019—, o alienígena negro da “lírica bereta” retorna acima da média e se mostra, novamente, à altura de seus homenageados. 


Lucas Nobile, jornalista, é autor dos livros “Dona Ivone Lara: A Primeira-Dama do Samba” (Sonora) e “Raphael Rabello: O Violão em Erupção” (Editora 34)

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