Brasileiro conta como virou maestro do coro da Capela Sistina

Nomeado pelo papa Francisco em novembro, padre Marcos Pavan comenta o impacto da pandemia em seu trabalho e seus planos para o grupo

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Márvio dos Anjos

Jornalista e crítico musical

[RESUMO] Escolhido em novembro pelo papa Francisco para ser maestro titular do coro da Capela Sistina, o padre Marcos Pavan, primeiro brasileiro no posto, comenta em entrevista a rotina de comandar um conjunto formado há mais de cinco séculos, as mudanças impostas ao trabalho pelo coronavírus e seus planos de gravar um álbum só de canto gregoriano.

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Em 1990, o palco do Theatro Municipal de São Paulo borbulhava com “O Morcego”, a opereta de Johann Strauss 2º que retrata, de forma cômica, os salões frívolos da Viena imperial. Fiel às recomendações do compositor, a montagem de Yacov Hillel guardou para depois da temporada, sem saber, a sua maior surpresa.

Foi quando o barítono Marcos Pavan, que encarnou o mulherengo Eisenstein, anunciou que abandonaria a carreira para se tornar padre: aos 28 anos, havia ganhado uma bolsa para estudar teologia em Roma.

“Aquela montagem foi divertidíssima e marcante, por isso a gente do elenco costumava se encontrar muitas vezes depois. Foi um choque, no bom sentido, quando o Marcos nos contou que ia abandonar a carreira para estudar teologia”, conta a soprano Patricia Endo, que fez a “mulher” de Pavan no palco. “Ele era um colega muito profissional e também muito divertido. Não tinha como a gente saber, ele nunca deu pistas. Mas ele sabia muito bem qual era o caminho dele.”

Concerto do coro da Capela Sistina na Biblioteca Apostólica Vaticana
Concerto do coro da Capela Sistina na Biblioteca Apostólica Vaticana - Riccardo Rossi / pcpne.va

Se a ópera perdeu um cantor (e o direito, um bacharel formado na USP, no largo de São Francisco), a liturgia do Vaticano ganhou uma autoridade experiente de 58 anos: em 22 de novembro passado (dia de Santa Cecília, padroeira da música), Pavan foi nomeado pelo papa Francisco maestro titular do coro da Capela Sistina, a maior autoridade musical do Vaticano.

Foi um cargo gradualmente conquistado, bem ao ritmo do papado: desde 1998, o monsenhor Pavan dirigia a formação musical dos Pueri Cantores, a escola preparatória dos coristas infantis do Vaticano, de posse de diplomas de técnica vocal e canto gregoriano obtidos em Roma e Nova York. Em julho de 2019, como interino, começou na função de reger os 20 cantores adultos e os 35 meninos do grupo vocal oficial do papa.

“Recebi com surpresa, apesar de estar interinamente no cargo havia um ano e meio. Como a saída do maestro anterior [o italiano Massimo Palombella, em meio a uma investigação de fraude financeira no coral] se deu de forma repentina, era um pouco natural que eu assumisse as funções até que surgisse um nome. Mas eu não esperava ser oficializado”, diz Pavan à Folha, com um leve sotaque romano, por videochamada de seu apartamento em Roma.

“Pensava que ia continuar trabalhando com as crianças, que é um trabalho que eu gosto, mas fiquei muito honrado.” Oficializado em 22 de novembro (dia de Santa Cecília, padroeira dos músicos), Pavan se tornou o primeiro não italiano numa função razoavelmente recente na história, ao menos para os padrões católicos.

Pavan cresceu numa família católica entre os bairros da Consolação e do Sumaré, em São Paulo. Quando enfim disse à família que queria ser padre, o pai foi assertivo: antes, vá fazer uma faculdade.
A vontade de ser padre e a de ser músico surgiram juntas na infância, segundo Pavan. “É como um mistério, é um chamado. Você pode fingir que não está ouvindo, eu mesmo enrolei um pouco, tentei ser cantor de ópera, depois aceitei.”

O monsenhor Marcos Pavan, novo maestro diretor da Capela Sistina
O monsenhor Marcos Pavan, novo maestro diretor da Capela Sistina - Vatican News

Depois do seminário em Roma, foi ordenado padre no Campo Limpo. Na parede laranja de sua sala, que serve de fundo para a videochamada com a Folha, uma foto aérea do Municipal de São Paulo é a única referência ao seu passado na música secular.

Ele dispensa a pompa no tratamento de reverendíssimo monsenhor (“pode me chamar de padre Marcos”) e adianta ao repórter: não tem qualquer amizade pessoal com o papa argentino.

Desde os primeiros séculos do cristianismo, o bispo de Roma sempre contou com um grupo de cantores para a liturgia. Só que a reforma na antiga capela do Palácio Apostólico, ordenada pelo papa Sisto 4º em 1477, criou um novo status para o conjunto.

Foi quando surgiu em 1481 a Capela Pontifícia Musical, dita “Sistina”, nome que apelidou tanto o espaço mundialmente famoso pelos afrescos de Michelangelo e Botticelli quanto o grupo musical de 12 cantores que se apresentava ali.

A figura de um maestro do coro, porém, só se nota no século 19 —coincidentemente, o mesmo momento em que as orquestras também usam a figura de um líder silencioso.

“Nós não somos uma torre de marfim. A Capela Sistina recebeu e recebe influência do mundo musical ao seu redor. No século 19, havia muita influência da ópera, da música lírica, o que levou o papa São Pio 10 a fazer uma reforma para moralizar os exageros da liturgia”, conta Pavan.

De fato, reformas, inovações e adaptações de gosto atuaram muito fortemente nos séculos em que a igreja era mais curvada às vontades de papas ultrapersonalistas.

Mesmo o canto gregoriano, ouvido como uma instituição atemporal da igreja, teve sua temporada no inferno. Estabelecido entre os séculos 8 e 9, ele se desenvolveu a partir do que também era necessidade da missa medieval: quando cantava, a voz do celebrante aproveitava o eco das catedrais e era mais bem compreendida pelos presentes.

No entanto, esse canto uníssono entrou em crise no século 11, quando as primeiras polifonias (diferentes melodias cantadas juntas em harmonia), oriundas especialmente da Catedral de Notre Dame, diversificaram a harmonização das vozes, caíram no gosto dos monges e encantaram a assembleia.

“O auge da polifonia, no século 16, foi o fundo do poço do canto gregoriano. Cortaram as melodias, fizeram toda uma operação que acabou destruindo o gregoriano até o século 19”, conta Pavan.
No século 19, a restauração da ordem beneditina na França incentiva movimentos de restauração do gênero, que é reconhecido por musicólogos do mundo inteiro como o ponto de partida da música ocidental.

Uma das referências de Pavan, o monge Eugène Cardine da Abadia de Solesmes, foi o principal estudioso dos símbolos usados na escrita musical, que revelaram conceitos inteiramente esquecidos sobre o ritmo gregoriano.

Com tudo isso, impressiona que o primeiro álbum profissional do coro da Capela Sistina tenha demorado tanto. Apesar de alguns registros esparsos, nunca houve um contrato com gravadoras como os que celebrizaram outros coros litúrgicos de larga discografia, como o da abadia londrina de Westminster e o da Igreja de São Tomás em Leipzig (Alemanha), que teve o próprio Bach como maestro.

Boa parte dessa guinada se deve à recente profissionalização das rotinas do coro, executada pelo antecessor de Pavan, o italiano Massimo Palombella.

Os ensaios se tornaram diários e mais longos, e as turnês ficaram mais frequentes. Segundo Palombella, essa guinada era nada mais do que um meio para a missão de evangelizar pela música. O conclave que elegeu Francisco, em 2013, acabou propiciando um teste ao vivo com a prestigiosa gravadora Deutsche Grammophon, selo subsidiário da Universal Music.

Lançado em 2014, “Habemus Papam” foi bem-sucedido o suficiente para ser seguido por outros quatro álbuns, todos eles gravados na Capela Sistina: “Cantate Domino” (2015, coletânea de obras compostas para os papas), “Palestrina” (2016, dedicado àquele que é considerado o “Beethoven” da liturgia católica), o natalino “Veni Domine” (2017) e “O Crux Benedicta” (2019), com temas para a quaresma e a Páscoa.

Com a saída de Palombella, Pavan poderá ser incluído numa lista escassa de brasileiros que estrelaram álbuns da Deutsche Grammophon, como o violoncelista Antonio Meneses e o pianista Nelson Freire.

“Vai depender da DG, porque, por enquanto, está tudo suspenso. Com a Covid, nossa atividade foi bastante reduzida”, conta Pavan. “Os ensaios se dão com grupos pequenos, e as apresentações, com metade do coro, para evitar que todo o efetivo fique de quarentena. E eu não gosto de fazer muitos planos porque parece que dá azar. Já cancelamos tantos concertos, turnês no exterior, turnês pela Itália...”

Pavan entende que a Capela Sistina é enorme parte do apelo de mercado do coro, mas faz questão de deixar claro que não é seu lugar preferido. “Nós só nos apresentamos na Capela Sistina uma vez por ano, porque o papa só faz uma celebração anual lá. E ali há um complicador porque, na cantoria, apenas 12 cantores podem se apresentar. O disco que você ouve é gravado no piso da capela, com a ajuda de tapetes para suavizar o eco. Tudo ali é cimento e mármore.”

Todavia, Pavan, que tem predileção pela cantoria de madeira da Basílica de São Pedro, tem suas metas artísticas. Acredita que, mesmo numa instituição milenar, é possível demarcar uma individualidade artística. “Isso não pode ficar do lado de fora, nem tem como. Cada diretor deixa sua marca, desde a escolha dos cantores e suas características até a escolha dos repertórios e o modo como você os executa.”

Se é verdade que o padre brasileiro ainda não desenhou um repertório para o possível disco de estreia, ele tampouco esconde que gostaria de registrar um álbum só de canto gregoriano, além de revisitar Palestrina. “A gente faz muitos concertos no mundo inteiro, que vão do gregoriano à polifonia clássica, e você vê o efeito do gregoriano nas pessoas. É uma forma privilegiada de oração.”

Pavan transparece ser um apreciador profundo do gregoriano. Entende que, para além do uníssono de vozes que sugere a união da igreja, o repertório abarca muita variedade tanto na simplicidade quanto na complexidade, uma vez que permite que os solistas treinados e os fiéis empolgados participem da celebração de forma harmônica.

O único problema de eleger o canto gregoriano como trilha sonora constante das liturgias decorre do fato de ele ser em latim, um obstáculo em muitas dioceses.

Por outro lado, Pavan critica o tipo de música que se escuta hoje, em substituição ao gregoriano. “A gente não canta ‘na’ missa, a gente canta ‘a’ missa. Por isso você não pode cantar um texto do Roberto Carlos. Tem que ser o texto da liturgia, mesmo que seja na tua língua, e há boas traduções cantáveis dos salmos. E depois tem a qualidade do texto. Isso no Brasil deixa muito a desejar. O cuidado é que não vire apenas um fundo musical”. afirma.

“Já as formas musicais são assuntos mais complicados”, prossegue. “Não vou fazer uma polifonia a seis vozes de Palestrina numa igreja em que as pessoas não podem cantar em uníssono. Na minha diocese do Campo Limpo não existe sequer um órgão de tubo. Mas isso não quer dizer que qualquer coisa valha. A igreja também tem um papel educativo.”

Sua visão musical, pelo visto, agradou. Se o papa Francisco não dá palpites frequentes (“ele tem mais o que fazer”), Pavan já pôde atender ao pedido dele por um trecho de Mozart durante o credo da missa.
Comparando os gostos dos três papas com que conviveu (João Paulo 2º, Bento 16 e Francisco), ressalta que, refinamentos musicais à parte, João Paulo gostava de obras mais populares na liturgia, porque funcionavam melhor nas grandes missas campais celebradas pelo polonês. E acredita que haverá espaço até para a Ave Maria de Villa-Lobos numa celebração papal.

“Nós tentamos ser coerentes, numa visão que envolva o mestre das celebrações litúrgicas (dom Guido Marini) e que acompanhe a missa de forma orgânica. Nada pode ser muito longo, segundo a última reforma dessas celebrações.” Mas ainda há espaço para maravilhamentos pessoais através da música, com toda essa rotina que envolve ensaios, crianças, concertos, pesquisas e gravações?

“Às vezes isso acontece durante um ensaio. Uns dias atrás, a gente ensaiava o 'Ad te levavi' com um grupo pequeno, mas os meninos cantaram tão bonito, com as frases superbem colocadas, que todo mundo se arrepiou, até eu. Você se acostuma porque é parte do trabalho, mas é difícil não se arrepiar. Com certeza, ainda há. No dia que isso acabar, é melhor que eu me aposente, como músico e como padre.”

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