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Livro discute como selfies e imagens digitais se confundiram com experiência real

Giselle Beiguelman analisa com afeto e rigor vertigens de um mundo dominado por fotos e vídeos

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Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade"

[RESUMO] Em livro brilhante, Giselle Beiguelman analisa, de forma afetiva e ao mesmo tempo rigorosa, sem recair em conceitos por demais abstratos ou herméticos, a vertigem de imagens que nos acossa pelos mais diversos meios (celulares, TVs, computadores, tablets), configurando uma nova forma de relação com a realidade e de experiência estética em que a imagem ocupou o lugar da intensidade vivida.

Vemos hoje uma fabulosa quantidade de imagens em nossos celulares, computadores e tablets. Elas incorporaram nossa experiência do “real”, confundindo-se com ele. Situação nova, que se modificou muito rapidamente: nos invadiu e nos atordoa.

Um livro recente e muito brilhante estimula a interrogar sobre essa vertigem dos olhos. É “Políticas da Imagem – Vigilância e Resistência na Dadosfera”, de Giselle Beiguelman (Ubu).

A autora consagrou-se à imagem. Fez dela objeto de reflexão teórica, mas a incorporou também em sua prática, por meio de intervenções artísticas no espaço público com mídias digitais. Dedica-se ao ensino dessas reflexões, como professora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. O livro, por sinal, tem esta dedicatória: “Aos meus alunos, por me pedirem respostas às perguntas que nunca fiz”.

A dedicatória em tom caloroso acena, já de início, para uma característica muito fecunda e sedutora dos textos que o livro apresenta. “Políticas da Imagem” está muito longe de possuir a rarefação abstrata de tantos teóricos ou o vocabulário esdrúxulo, para iniciados, de tantas publicações universitárias. Caracteriza-o o afeto pelas obras que analisa e que lhe permitem traçar seu percurso.

É muito evidente o amor de Giselle Beiguelman pelo cinema, pela fotografia, pelas diversas manifestações artísticas que analisa, assim como seu fascínio pelas grandes modificações que se operam no campo das imagens.

Pois se trata, antes de tudo, de um livro analítico —afetivamente analítico, eu diria. Ele é heurístico nas escolhas das obras que ajudam a pensar e nos comentários, nos percursos, que as fecundam. Essas obras estimulam a leitura, que avança, ávida: elas não estão ali apenas como ilustração ou exemplo, mas constituem um foco essencial para a reflexão, como parte integrante, se não for a mais importante.

“Políticas da Imagem” reúne textos diferentes, mas gravitando à volta de preocupações coerentes. A natureza dessas novas imagens digitais —“superfícies bidimensionais, que nos resta contemplar, ou, no máximo, clicar”— introduz uma revolução na própria imagem.

No primeiro texto, “Olhar além dos olhos”, uma perspectiva histórica, vinda sobretudo por meio do cinema, faz surgir, em ramificação complexa, a questão crucial que Giselle Beiguelman discerne no filme “Blow-Up” (1966), de Antonioni: o que você visualiza é o que você vê?

Estamos entre fantasmas, que transitam “entre a presença e a ausência, o real e o virtual”. Esses fantasmas, porém, ambíguos e avassaladores, dominaram o mundo. É impressionante o dado de que, “em uma tarde de maio de 2021, mais de mil fotos por segundo eram disponibilizadas no Instagram”!

Fantasmas que canibalizaram as imagens e o próprio mundo. No entanto, por frestas, a visão amorosa e rigorosa de Giselle Beiguelman acena para resultados possivelmente positivos. A tela canibalizada rompe com inflexões pedagógicas ou profissionais rotineiras. Desencadeia uma forma de subversão, porque escapam, inventam-se fora dos “regimes consolidados nas escolas de cinema e de artes e rompem cânones de estilo e de mercado”.

Um prêmio para quem souber dizer o que será o amanhã disso tudo. Em todo caso, a imagem ocupou o lugar da intensidade vivida, já que o fotografar e o filmar tornaram-se mais importante que a experiência concreta: não estou lá para ver, mas para fotografar.

Dou aqui, nesse sentido, um exemplo concreto —exemplo meu, mas que se afina com o livro. Recentemente, o Museu do Louvre foi objeto de modificações internas, e a "Mona Lisa" teve que ser deslocada provisoriamente. Os visitantes deviam passar diante dela em uma fila obediente que impunha um lapso curto de tempo para a observação.

Todavia, como se compensando esse estranho ritual de cultura, se previu um ponto em que o visitante podia tirar uma selfie diante da sorridente Gioconda antes de partir.

Pessoas tirando selfies com 'Mona Lisa' ao fundo em parede escura
Visitantes tiram fotos em frente à 'Mona Lisa', de Leonardo da Vinci, no Museu do Louvre, em Paris - Eric Feferberg - 7.out.19/AFP

O que passou a significar a experiência estética em um mundo em que o essencial é atestar a minha presença diante de algum objeto ou lugar excepcional e não de fruir, no imediato, daquela experiência? O olhar reduz suas faculdades cognitivas, e a autora, com razão convincente, nos fala da passagem em que os corpos dóceis, disciplinados pela sociedade industrial, vêm-se, agora, dotados de olhares dóceis.

Outra vertigem, nesse livro de vertigens, é o processo de matematização das imagens, e não só delas, pelos algoritmos. O reconhecimento facial, os sistemas de identificação e todos os meios de controle que crescem de forma acelerada estabelecem modos relacionais, surgindo na exterioridade do espetáculo, mas que se fundamentam na vigilância sempre mais ativa.

A vertigem não cessa: Giselle Beiguelman assinala o seguinte “desconcertante paradoxo”: somos vistos a partir do que vemos. O Big Brother de Orwell era um olho universal que me via. Agora, o Big Brother está em nós. Ou, como diz o livro, “os grandes olhos que nos monitoram veem pelos nossos olhos”.

Nosso post no Facebook é imediatamente incorporado, metabolizado, assimilado e devolvido por meio de convenientes interferências publicitárias ou outras. O paradoxo se torna menos desconcertante, ao atentarmos pelo que nos diz a autora: as redes sociais são o lugar do exibicionismo. Aparecer é essencial, fazer com que nossa imagem atinja o maior número possível de pessoas é o nosso desejo. Isso não vai sem retorno, ou sem preço.

Tal reviravolta encontra eco em fenômeno estudado em outro capítulo. A cidade ofereceu-se à objetiva desde que o cinema e a fotografia puderam captá-la em suas lentes. Ocorre, porém, que a cidade tornou-se “o lugar que nos olha”.

Poderíamos lembrar a “paranoia da vizinhança”, esse interferir na vida dos outros pelas formas de pressão social dos diversos grupos, tão antiga quanto o mundo, nas quais o rumor e a fofoca têm um lugar privilegiado. Nunca a mediação social, contudo, foi feita de tal modo, como hoje, pelas imagens. É preciso ler em detalhe, percorrendo os labirintos traçados pela autora, esse impressionante capítulo intitulado “Ágora distribuída”.

Giselle Beiguelman nos fala sobre o “olhar” dos algoritmos —eles não “enxergam”, é fato, mas, talvez pior, “sabem”. Funcionam para a censura —uma censura automatizada, não humana. Funcionam também para corresponder aos nossos desejos ou, quem sabe, para prevê-los. Ou preveni-los. O fascínio pela ordem e a tendência para a padronização encontram aí seu instrumento máximo. Fica a pergunta, bem formulada: “Mas e o que fica fora do padrão? Que lugar social poderá ocupar?”.

O último capítulo, “Políticas do ponto br ao ponto net”, é iluminador da terrível imediatez que vivemos, em que uma estética da morte recobre o mundo ameaçado na sua própria existência pela destruição ambiental, e de um Brasil entregue à barbárie que nos governa, manipuladora de imagens e textos —memes— com truculência pela internet. Capítulo tremendo, revelando uma trágica estética necropolítica.

Escrever sobre “Políticas da Imagem” causa uma sensação frustrante, porque suas qualidades não podem ser resumidas em uma resenha. Ele deve ser lido.

Políticas da Imagem – Vigilância e Resistência na Dadosfera

  • Preço R$ 59,90 (224 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autor Giselle Beiguelman
  • Editora Ubu
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