Descrição de chapéu talibã Ásia

Minha vida e a de quem quer um Afeganistão melhor estão em risco, diz cineasta

Sonia Nassery Cole afirma que o Talibã distorce a fé muçulmana e acabará com cinema

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Ana Maria Bahiana

Jornalista da área cultural e editora-adjunta do site goldenglobes.com, é autora, entre outros livros, de "Nada Será Como Antes - MPB nos Anos 70" (Civilização Brasileira, 1980)

[RESUMO] Em entrevista, Sonia Nassery Cole, cineasta de origem afegã radicada nos EUA, diz não ver ver saída para seu país de origem a curto prazo, após a volta do Talibã ao poder. Criadora de uma ONG de auxílio a refugiados, ela relata seu empenho para conseguir vistos e passaportes e as medidas desesperadas, como o suicídio, de mulheres que não conseguem sair do Afeganistão.

“Eu preferia não dizer isto, mas, sinceramente, minha vida está em perigo. Todos os que são pelo Afeganistão estão em perigo, neste momento. Há um preço na minha cabeça. Preciso estar sempre em alerta.”

Elegante, controlada, fluente, sentada à sua mesa de trabalho em um apartamento em Nova York, Sonia Nassery Cole respira fundo regularmente, às vezes olhando para baixo e pedindo para parar por alguns instantes, às vezes chorando copiosamente no meio de uma fala.

Nascida em Cabul, refugiada nos Estados Unidos desde 1979, quando era uma adolescente e seu pai era um diplomata na capital afegã, Sonia nunca perdeu o contato com seu país natal. “Está na minha pele, no meu coração, no meu DNA”, ela diz. “Quando o Afeganistão sofre, eu sofro também.”

A cineasta Sonia Nassery Cole durante a filmagem de  “I Am You” (2019), a história de um menino tentando fugir da guerra no Afeganistão
A cineasta Sonia Nassery Cole durante a filmagem de “I Am You” (2019), a história de um menino tentando fugir da guerra no Afeganistão - Divulgação

Apoiada pelo pai, Sonia cresceu estudando política internacional. Aos 17 anos, escreveu uma longa carta para o então presidente estadunidense Ronald Reagan, explicando como era o Afeganistão. Ele ficou impressionado e convidou-a a visitar a Casa Branca para poder “conversar melhor”.

Em 1994, Sonia começou a trabalhar em cinema, como assistente de direção. Atuou também em pequenos papéis em filmes e séries. Ao mesmo tempo, trabalhava com ONGs de auxílio aos refugiados do seu país, levantando fundos.

Em 2002, fundou sua própria ONG, a Afghan World Foundation. Cinco anos depois, lançou seu segundo curta-metragem, o documentário “The Bread Winner”, filmado nas ruas de Cabul. “Tornou-se uma paixão”, ela diz. “Um instrumento, um modo de dar voz aos que não tinham voz no meu país.”

Com o curta bem recebido, Sonia se dedicou ao primeiro longa, que ela chama de “meu filme mais perigoso”: “Black Tulip” (2010). “Filmamos no Afeganistão, debaixo dos olhos do Talibã”, ela conta. “Tínhamos ataques e bombardeios quase todos os dias. Todos nós éramos ameaçados —a equipe, os atores.”

Em seu filme mais recente, “I Am You” (2019), a história de um menino tentando fugir da guerra, Sonia decidiu recriar o Afeganistão na Turquia. “A Turquia foi uma boa escolha, fomos muito bem acolhidos”, ela diz. “Fiquei triste, mas não havia modo de fazer o que eu mais queria, colocar meu país na tela, de novo.”

Agora, ela comentou em entrevista a situação do Afeganistão após o fim da operação americana no país e a retomada do poder pelo grupo extremista islâmico Talibã.

Você está acompanhando os acontecimentos do seu país de origem. Como você se sente? Estou absolutamente ferida, furiosa com o que está acontecendo. Tenho recebido muitas narrativas de pessoas amigas de Cabul. Uma dessas histórias destroçou meu coração. Uma mulher, uma tradutora, estava na fila esperando para entrar no avião de resgate. Quase na vez dela, veio o ataque com bombas no aeroporto.

Ela sobreviveu, mas perdeu todas as esperanças. Voltou para casa e se matou, pondo fogo em si mesma e no apartamento. [Faz pausa, soluçando] Não tinha mais esperança... nenhuma esperança... [Pausa] Sinceramente, o único modo de descrever meu país, agora, é “inferno na Terra”.

Não consegui dormir por dias. Não conseguia me desgrudar das notícias. Recebi dezenas de telefonemas de pessoas tentando obter um passaporte, um visto, porque eu podia auxiliar neste momento.

A diferença de horário é enorme [Cabul está oito horas e 30 minutos à frente de Nova York], e estive de pé, trabalhando, praticamente dia e noite, tentando salvar vidas. Conheço muitas dessas pessoas —jornalistas, escritores, atores, músicos.

Mulheres, especialmente. E sim, elas estão se suicidando. Essa é a realidade que enfrento. O que me salva é a meditação. Faço duas vezes por dia, para que eu mesma não me destrua. Quero continuar ativa, servindo de um veículo para todas essas pessoas.

Imagino que o que se passa neste momento no Afeganistão tenha um impacto direto no cinema do país. Minha paixão pelo cinema, pela presença do cinema no Afeganistão, me empolgava. Eu queria fazer filmes no Afeganistão. Os primeiros filmes que fiz estavam entre os primeiros filmes afegãos.

Eu estava empolgada com a evolução do cinema no meu país —isso abriu uma janela para o mundo, mostrando o que estava realmente acontecendo no Afeganistão, como se vivia, como se sofria, como as pessoas resistiam.

Fizemos cinema em condições muito difíceis. Eu queria fazer mais filmes no Afeganistão. O país, depois da saída do Exército russo, em 1989, estava começando, o cinema estava começando, primeiros diretores, mulheres diretoras, realizadores de todo tipo, fazendo documentários, fazendo narrativas.

Eu estava sempre em contato com os jovens, meninas e meninos que queriam fazer filmes sobre suas famílias, suas experiências, avó capturada e torturada, os ataques às suas vilas.

Eu dizia, pegue seis iPhones e façam seus filmes, não há leis, não há regras para se fazer um filme, só vá em frente e faça. Eu estava criando um site para mostrar esses pequenos filmes, fazer um tipo de festival onde pudéssemos dar prêmios a esses novos criadores, para incentivá-los.

Mas... [Ela começa a chorar]... Desculpe, mas acho que não vai haver cinema no Afeganistão nos próximos 30 anos. [Para, chora. Pede uma pausa].

Desculpe por estar tão emotiva. Ultimamente não tenho conseguido falar sem muita emoção. Está tudo acabado. Pelo menos por agora. Se uma mulher não pode ir ao mercado fazer compras para sua família sem ser acompanhada por um homem, imagine o que vai acontecer com o cinema.

A abertura de seu filme “Black Tulip” leva a plateia a uma visão da vida cotidiana no Afeganistão contemporâneo, já num momento tenso, mas com pessoas na rua, indo aos mercados, crianças brincando... Você usa estas memórias nos seus filmes? Minhas memórias não estão nos meus filmes. Estão comigo. Minha memória é meu pai diplomata e Cabul cheia de cinemas, de teatros. Eu me lembro de música, muita música, as discotecas que meu pai e minha mãe frequentavam e onde eu sempre queria ir, mas não podia porque era jovem demais [ri]. A favorita deles, eu me lembro, era a Marco Polo.

Eu me lembro das mulheres de minissaia, sapatos altos, joias, andando nas ruas de mãos dadas com os maridos, os namorados. Eu me lembro das lojas, das árvores, dos parques, das butiques com os últimos modelos da alta costura, as lojas chiques frequentadas pela elite de Cabul.

Eu me lembro de cristãos, judeus, indus, muçulmanos, todos vivendo e prosperando em Cabul. O Afeganistão não era um país muçulmano fanático, de jeito nenhum. Nada era imposto, nada era forçado, nada era obrigatório. Todo mundo era bem-vindo, todo mundo era recebido com amizade.

Cabul era uma cidade famosa por ser um destino para luas de mel, vinham casais do mundo todo. Essa é a Cabul de que me lembro. E hoje é um vilarejo bombardeado.

Como é a sua visão do Afeganistão, hoje? O que eu sei é o que recebi de amigos, de pessoas amigas, jornalistas afegãos. Biden fez um acordo com o Paquistão para entregar o Afeganistão ao Talibã.

O Talibã não é afegão, é paquistanês. Um bando de talibãs em motocicletas e toyotas não iam tomar um país. Não faz sentido. Foi uma invasão. E, ao mesmo tempo, os Estados Unidos fizeram um acordo com o governo afegão e puseram 25 generais e líderes num avião direto para Dubai. Que soldado afegão ia querer pegar em armas numa situação dessas? Os EUA não podem pôr a culpa no exército afegão, chamá-los de covardes. Com assim? Desde quando os Estados Unidos negociam com terroristas?

A religião, ou melhor, a visão radical de uma religião é um dos elementos que impulsionam o Talibã? Eu não considero o Talibã como um grupo de muçulmanos. Não são muçulmanos, ponto final. Eles distorceram inteiramente a fé muçulmana. E dizem para o mundo que, se o mundo estiver contra eles, estão contra o islã. Isso não é verdade de jeito nenhum.

O islã é jogar uma bomba numa mesquita com 700 pessoas? O Islã é violentar meninas e meninos de 5, 10 anos? O islã é torturar e matar todos os que são contra eles? O islã prega contra a humanidade, contra o amor? Como o islã pode promover o suicídio, se o suicídio é um dos maiores pecados aos olhos do islã?

Não, não, não. Essas pessoas não são muçulmanas, não leram o Alcorão, não rezam as preces do Alcorão. Elas nem sequer sabem o que é o islã, uma fé que se baseia em amor, em caridade. Não é possível dizer que sejam muçulmanos.

Por que o Afeganistão é o alvo de tantas guerras? Para o Afeganistão, sua posição estratégica na Ásia é uma situação infeliz, pois é estrategicamente perfeita —entre o Golfo Persa e o oceano Índico, cercado em parte ao norte-nordeste por China, Rússia, Irã e Paquistão, e todos eles querem o dinheiro que podem extrair do país.

O Afeganistão tem grandes reservas de urânio e de metais preciosos. E não se esqueça de que 95% das papoulas do mundo crescem no Afeganistão —a fonte da heroína, é claro. É outra máquina de dinheiro que interessa muito a outros países. Somos o país pobre mais rico do mundo.

O Afeganistão nunca foi conquistado. Alexandre, o Grande, no auge de seu poder, tentou conquistar o Afeganistão e não conseguiu. Gengis Khan tentou e não conseguiu.

A União Soviética tentou e não conseguiu. O Talibã tentou e não conseguiu. Os EUA tentaram durante 20 anos e não conseguiram. Enquanto um afegão estiver vivo, os invasores serão expulsos. A única opção para conquistar o Afeganistão é matar todos os afegãos.

Esta crise tem solução? Não há uma saída, agora. Neste momento, não posso ver uma solução. Tenho esperança nos jovens —75% dos afegãos têm menos de 24 anos, porque a população mais velha foi dizimada pelas guerras contínuas. Mas não podemos enfrentar o Talibã e o Paquistão.

Para mim, a única solução seria o filho do general Ahmad Shah Massoud, que foi um verdadeiro herói enfrentando os russos, pondo os russos para fora, e acabou assassinado pelo Al Qaeda de Osama bin Laden dois dias antes do ataque de 11 de Setembro.

O filho do general, Ahmad Massoud, controla a região de Panjshir e se recusa a reconhecer o Talibã. Espero em Deus que a nova Aliança do Norte, a resistência de Panjshir pelo Massoud pai, seja capaz de dar um chute no Talibã. Mas vai ser uma guerra sangrenta, muito sangrenta. Os inocentes morrerão de novo.

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