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Francisco Bosco

Face cultural do bolsonarismo explica destruição de obras de arte

Agenda reacionária que sonha em resgatar alma cristã se opõe à ideia de nação mestiça e cosmopolita

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Detalhe de 'As Mulatas', painel de Di Cavalcanti danificado por golpistas no Palácio do Planalto Ueslei Marcelino - 9.jan.23/Reuters

Francisco Bosco

Doutor em teoria literária pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ensaísta, foi presidente da Funarte (Fundação Nacional de Artes) de 2015 até o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Autor, entre outros livros, de "O Diálogo Possível: Por uma Reconstrução do Debate Público Brasileiro"

[RESUMO] A dimensão cultural do bolsonarismo e sua agenda reacionária ajudam a explicar a destruição de obras de arte durante os ataques golpistas aos três Poderes no último domingo (8). As ideias que fundamentaram a pauta cultural do antigo governo estão contidas em textos do ex-chanceler Ernesto Araújo, para quem a nação tem primazia sobre o Estado, e a cultura cristã, sobre as formas jurídicas. Essa nação com Deus é contrária aos sentidos mais singulares da cultura brasileira —diversa, popular, modernista e cosmopolita. A médio prazo, resta tentar integrar dezenas de milhões de pessoas que não se reconhecem como parte desse majestoso leito cultural.

Perplexo com o ataque dos bolsonaristas (me recuso a usar a expressão bolsonaristas radicais, um pleonasmo) aos prédios públicos projetados por seu bisavô, o também arquiteto Paulo Niemeyer se indagou: "Quem destrói a própria casa?". A resposta me parece evidente: quem não considera ser sua a casa em que mora.

O bolsonarismo é um movimento cuja face institucional é antissistêmica e cuja face política é iliberal. Essas duas dimensões foram as mais evidentes no ataque aos prédios que hospedam os três Poderes da República. A "vox populi" bolsonarista investe há um tempo contra o sistema político, nas figuras do Executivo e do Legislativo, e contra a Suprema Corte, tida como usurpadora da soberania popular, por sua atuação considerada contrária à posição da malta autopercebida como a maioria conservadora.

Janela quebrada por golpistas no Palácio do Planalto - Gabriela Biló - 8.jan.23/Folhapress

O bolsonarismo, no entanto, tem também uma face cultural, como se sabe. Essa dimensão é tão importante quanto as demais. Seu aspecto mais evidente é toda a agenda reacionária, que veio disputar a hegemonia cultural progressista tanto na sociedade quanto nas instituições que instauram políticas públicas.

Esse conflito configura as chamadas guerras culturais, que se tornaram explícitas no Brasil desde o famigerado episódio, ocorrido nos idos de 2011, quando o governo Dilma lançou um programa de combate à homofobia nas escolas, logo chamado pelos ultraconservadores de kit gay e considerado proselitismo sexual ("ideologia de gênero").

Foi nessa página infeliz de nossa história que Jair Bolsonaro começou a ganhar protagonismo nacional. Desde então, a maioria silenciosa conservadora se tornou vociferante e, com o triunfo institucional de seus representantes, passou a dar o tom nas disputas culturais, bloqueando os avanços da agenda liberal e encontrando sua maior resistência na atuação do STF, que, por isso, se tornou ele mesmo objeto de disputa e inimigo-mor dos conservadores.

Tudo isso é bastante conhecido. Entretanto, seria oportuno perguntar o que têm a ver com a querela as obras de Di Cavalcanti, Victor Brecheret, Burle Marx, Bruno Giorgi e Frans Krajcberg , entre outras, todas vandalizadas, rasgadas, defenestradas, destruídas ou mesmo mijadas. A mijada, aliás, é especialmente reveladora do ressentimento dos agressores em relação a essas obras.

No entanto, "As Mulatas", de Di Cavalcanti, "O Flautista", de Giorgi, e a tapeçaria de Burle Marx não são exatamente uma performance interativa com o corpo de um homem nu ou quaisquer das peças da mostra "Queermuseu" que tanto ameaçaram a identidade ultraconservadora. O que levou os bolsonaristas a expandir sua fúria sobre essas obras de arte, com o requinte de ódio de urinar sobre o tapete do maior entre nossos paisagistas, internacionalmente reconhecido?

Sei que as lideranças atuantes do bolsonarismo já são pavorosas o suficiente, mas peço licença ao extenuado democrata liberal para exumar uma figura que nos ajuda a compreender a dimensão cultural do bolsonarismo: o ex-chanceler Ernesto Araújo foi talvez quem mais se propôs a explicitar o que seria o programa cultural dos cidadãos de bem, patriotas e doidivanas de barracas.

Discípulo de Olavo de Carvalho, foi nesse tempo o ideólogo oficial do governo, enquanto seu mestre seguia como ideólogo-geral do movimento. Suas ideias contêm todas as principais perspectivas da tradição antimoderna, desde o século 18. Por exemplo, o nacionalismo, uma das trincheiras fundamentais de Araújo.

Diferentemente do nacionalismo fascista ou nazista, afirmados em um contexto de ameaça existencial à soberania territorial, aquele defendido por Araújo começa por se opor à modernidade e termina por se opor, internamente, à ideia de nação hegemônica no Brasil ao longo do século 20.

Para ele, é inaceitável que a modernidade tenha reduzido a nação ao Estado. Como Herder (1744-1803) em sua cruzada anti-Iluminista, ele procura restabelecer a primazia cultural e comunitária sobre o estatuto meramente político e jurídico da ideia de Estado.

Em nota schmittiana, ele comenta: "Nação era um povo que se sentia povo, um sujeito histórico frente a outros sujeitos históricos, diferente dos demais povos". Nada, portanto, de globalismo, ONU, essas instituições degradantes do Homo economicus materialista. A nação tem primazia sobre o Estado. A cultura, sobre as formas jurídicas. Mas de que cultura se trata? Antes de tudo, de uma cultura cristã.

Em artigo na revista New Criterion, o chanceler lamentava que "falar de Deus parece que preocupa as pessoas. Isso é triste". É escusado lembrá-lo de que ele pode falar de Deus à vontade; o que preocupava as pessoas é que sua crença determinasse as decisões da política interna e externa brasileira. Araújo não se intimidava: "Meus detratores me chamaram de louco por acreditar em Deus e por acreditar que Deus age na história —mas eu não me importo. Deus está de volta, e a nação está de volta: uma nação com Deus".

O problema é que essa nação com Deus vai contra os sentidos culturais mais singulares que o Brasil foi capaz de produzir e que permanecem sendo nossa maior contribuição civilizatória ao mundo. Esses sentidos foram afirmados pelo modernismo brasileiro, mas Araújo elege o romantismo como momento de fundação de seu nacionalismo.

Não o romantismo de um Castro Alves, mas aquele que imagina nações míticas, épicas, fantasiosas. O romantismo sob cujas premissas colonizadas um dramaturgo brasileiro, lembra Antonio Candido, certa vez encenou um drama nativista, sobre indígenas, em francês —assim como Araújo encena uma doutrina nacionalista imitadora do trumpismo.

Mas nem haveria contradição nisso, pois é essa a nação brasileira para o ex-chanceler: o "fruto supremo" desse "mistério" que é o "ritual iniciático" das grandes navegações portuguesas, como escreve no artigo para a New Criterion. Não existe o Brasil brasileiro, e sim o projeto expansionista cristão.

Nem mulatos, cafuzos ou mamelucos; nem maxixe, samba, cafuné, chulé ou Pelé. O Brasil do chanceler "tem uma origem profunda e sagrada, ligada aos mais profundos arcanos da alma ocidental tal qual manifestados na nação portuguesa".

Quinhentos anos depois, depois de Gregório de Matos, do lundu, da língua portuguesa desossada pelos africanos, da gramatiquinha de Mário de Andrade, de Pixinguinha, dos orixás na Bahia, das lutas de guaranis-kaiowás, krenaks, yanomamis, depois do reino da elipse no futebol, depois da bossa nova, depois dos Racionais, depois de tudo o que constitui o Brasil como um país singular, a proposta de Araújo é a "recuperação da alma do Ocidente a partir do sentimento nacional".

Nada de axé, Dodô e Curuzu. O verdadeiro Brasil está na alma cristã que cimenta uma suposta comunidade ocidental. Tudo vazado em um tom altissonante, grandiloquente, que o torna merecedor do "complexo de épico" de que falava Tom Zé.

É claro que os prosaicos zumbiotas terroristas não estão a par do nefelibatismo do ex-Quixote do Itamaraty, às voltas com a batalha de Salamina, as Termópilas, o Santo Graal, o sonho de Constantino, a conversão dos vikings, a virgem negra de Czestochowa e um punhado mais dos heróis, ancestrais e profundos arcanos do Ocidente, que precisamos recuperar para salvar esse Brasil brasileiro, terra de samba e pandeiro.

Mas, essencialmente, o patriota bolsonarista compartilha, sabendo-o ou não, de uma concepção cultural que não se identifica com a formação mestiça, modernista, antropofágica da cultura brasileira.

A cultura bolsonarista, quando esclarecida, quer diluir a brasilidade em uma reverenciada alta cultura ocidental, feita de obras que "honram Deus" (era a linha do ex-presidente-relâmpago da Funarte, o exorcista cultural Dante Mantovani). Na sua versão baixa cultura, produz um amálgama que bota no mesmo saco desde o modernismo à "máfia do dendê" —expressão do "borderline-mor" da República, Carluxo, que, por sua vez, designa um amálgama de ódio ao progressismo e à distorção do funcionamento da lei Rouanet.

Tudo isso esteve contido na urina despejada sobre Burle Marx, na casa de Niemeyer, ambos representantes culturais —é imperioso observar— de uma modernidade que se revelou incapaz de cumprir suas promessas. São essas promessas "manquées" da história brasileira a fonte inesgotável de produção de ressentimento e adesão a contraprojetos políticos, sociais e culturais.

Assim como temos o desafio de integrar os grupos sociais vulneráveis na dignidade econômica e social, temos que fazer com que grupos que não se identificam com a cultura brasileira mestiça, modernista e cosmopolita passem a se reconhecer nela. Ao mesmo tempo, precisamos fazer com que as elites legitimadoras (hoje menos poderosas em razão do novo ecossistema comunicacional) reconheçam também outras formas culturais como parte da diversidade brasileira.

Desafio imenso, a exigir outro texto, com sugestões nesse sentido. Será preciso, por exemplo, integrar os evangélicos à cultura brasileira de prestígio (Caetano Veloso deu um passo nessa direção ao gravar a canção "Deus Cuida de Mim" com o pastor Kleber Lucas ). Também integrar —por que não?— no repertório laico a canção católica de um padre Marcelo Rossi ou padre Fábio de Mello, ambos compositores de louvores que nada devem em qualidade musical à média de uma boa canção pop. Será preciso reconhecer o valor estético e social de toda a história da canção do Centro-Oeste (ou mais exatamente o Mega-Centro-Oeste), das duplas caipiras ao feminejo.

Não me parece por acaso que essa seja a região mais bolsonarista entre todas, junto com o Sul, cuja cultura foi igualmente pouco incorporada ao veio central da cultura brasileira, de hegemonia sudestina-nordestina. Os juízos estéticos das elites culturais sudestinas para com a produção do Centro-Oeste foram quase sempre degradantes. Será preciso quebrar esse padrão.

No campo da cultura, a identificação dos sertanejos com o bolsonarismo não é perfeita, como costuma lembrar o crítico Gustavo Alonso. É preciso aproveitar as brechas para os movimentos de reintegração (e, contudo, não havia nem sequer um sertanejo no Festival do Futuro, dimensão musical de um governo de que se deseja "união e reconstrução").

O momento imediato é de investigar e punir os bárbaros que atentaram contra o Estado de Direito. Mas, considerando que o bolsonarismo é feito de dezenas de milhões de pessoas e que essas pessoas não se reconhecem no majestoso leito da cultura brasileira —diversa, popular, modernista, cosmopolita etc.—, a médio e longo prazo precisaremos tentar inverter o sentido do movimento: integrar, em vez de segregar.

Afinal, um país com metade da população feita de bárbaros, de estrangeiros em sua casa, é um país em guerra.

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