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Boi toma lugar da floresta na cultura da Amazônia, afirma João Moreira Salles

Autor discute modelo predatório que gera 'usos vagabundos' e diz que destruição é marcador de identidade e gesto de poder

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Eduardo Sombini
Eduardo Sombini

Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

"Quando eu cheguei, aqui não tinha nada." João Moreira Salles conta que os colonos que encontrou no Pará repetiam essa frase com frequência, o que mostra, para ele, como a ocupação da Amazônia por forasteiros aconteceu contra a floresta.

Esse nada —as paisagens monumentais, a vida extremamente complexa e diversa— precisava ser preenchido por uma ordem já conhecida, adestrada e cartesiana, como os pastos e a monocultura de soja.

Moreira Salles, documentarista, fundador da revista piauí e do Serrapilheira, instituto privado de apoio à ciência, lançou em dezembro "Arrabalde" (Companhia das Letras). O título expressa a ideia de que o país despreza o bioma e o trata como periferia ou resto.

A obra é resultado de uma temporada de seis meses no Pará e examina diferentes aspectos da realidade da Amazônia. O modelo predatório de colonização, os megaprojetos que fracassaram e a inteligência ecológica dos povos originários são algumas das questões discutidas no livro.

Retrato de João Moreira Salles, autor de 'Arrabalde' - Zô Guimarães - 10.abr.17/Folhapress

Neste episódio, o autor afirma que o Brasil perdeu a soberania sobre a Amazônia durante o governo Bolsonaro (PL), com o avanço do crime organizado, e que, sem uma ação incisiva do Estado, os produtores que cumprem a lei sempre perderão para as atividades ilegais.

Moreira Salles também aponta que o país nunca incorporou a Amazônia ao seu imaginário nacional. Para ele, o agronegócio não é só uma atividade econômica, mas um modo de estar no mundo de boa parte da população da região.

Vazia de floresta, a cultura hegemônica da Amazônia tem como pilares, hoje, o boi, as picapes 4x4 e a música sertaneja, o que cria, em sua avaliação, um entrave imenso à preservação do bioma.

Acho obsceno reduzir a floresta a um ativo econômico. A gente não pode cair no erro de transformar um bem humano em um bem material, substituir a beleza e o milagre da floresta por um preço. Acho que preservar a maior floresta tropical do mundo é, antes de tudo, um dever de civilização. Independentemente de ter ou não preço, a Amazônia tem valor porque lá vivem coisas. Não são só pessoas humanas; são plantas, animais, fungos, microorganismos. Tudo isso tem o direito de continuar a existir, e é nosso dever preservar. Se a gente não conseguir defender a Amazônia, a gente vai estar diante de um desastre moral

João Moreira Salles

documentarista e escritor

Leia a transcrição da entrevista abaixo.

A grande tese do livro —expressa no título, "Arrabalde"— é que, ao longo da história, a Amazônia foi vista pela sociedade brasileira como um nada, um resto, um vazio. A gente costuma ser ignorante ou indiferente com a floresta e seus habitantes, humanos e não humanos. O Ailton Krenak, aliás, falou no último episódio sobre como a maioria esmagadora da população brasileira despreza a Amazônia ou, quando se importa, tem uma visão utilitarista: a Amazônia precisa ser preservada não por ser o que é, mas por poder nos salvar da catástrofe climática. Você sintetiza isso com uma frase que ficou na minha cabeça: "O processo de ocupação da Amazônia pode ser entendido como um grande fracasso epistêmico". O que explica esse fracasso epistêmico? Por que a sociedade brasileira nunca foi capaz de prestar atenção, de olhar para a Amazônia e enxergar o que ela é de fato? Acho que são muitas as coisas que explicam essa indiferença. Talvez a principal é que é, sem dúvida nenhuma, é mais fácil ocupar de forma predatória aquilo que não está investido de curiosidade, de afeto, de interesse. É mais fácil destruir aquilo que você não conhece e que você não se preocupou em conhecer.

A Amazônia sofreu desse mal desde o início. A primeira viagem documentada de um europeu que percorreu o rio Amazonas inteiro, da nascente até a foz, aconteceu em meados do século 16 e foi registrada por um frei chamado Gaspar de Carvajal. Quando ele chega ao final da viagem, ali pela altura da ilha do Marajó, ele olha para a margem do rio e o que ele vê ali é a Europa. Ele descreve o que ele está vendo. Ele diz: "Eu estou vendo carvalhos, orégano". Um pouco antes da viagem, ele vê carneiros, porque ele traz consigo a paisagem da sua cultura e projeta essa paisagem nesse mundo desconhecido que ele imediatamente transforma, em uma metamorfose imaginária, em um mundo que ele conhece.

A gente vem repetindo esse processo desde então. Hoje em dia, se você chega à Amazônia e conversa com as pessoas que chegaram lá nas décadas de 1960 e 70 e que enriqueceram e prosperaram —poucas prosperaram—, você vai na casa delas e, geralmente, as varandas das casas dão para aquilo que elas construíram durante toda a vida de trabalho lá. O que você vê, assim como Carvajal viu a Espanha na Amazônia, os colonos que vieram nas décadas de 1960 e 70 para lá levaram os pampas do Rio Grande do Sul, os pastos de São Paulo, a paisagem da sua juventude e reproduziram essa paisagem lá —e mostram aquilo com grande orgulho. Então, você olha daquela varanda e vê tudo, menos a Amazônia. Você vê tudo, menos a floresta.

Confirmando isso, eles te dizem, e não foi um só que me disse, foram vários desses senhores —e são homens, que hoje em dia tem 70, 80 anos—, eles olham para aquilo que é a obra da vida deles e com orgulho dizem para você: "Quando eu cheguei, aqui não tinha nada". Isso é um resumo de como a gente sempre viu a Amazônia: é um nada a ser transformado.

A ocupação da Amazônia foi um processo pelo qual a gente, desde o início, trocou o que era estranho por aquilo que é familiar: a paisagem que você não conhece, a floresta com sua complexidade, por aquilo que você conhece, o que você trouxe da sua juventude. Você faz da Amazônia aquilo que você deixou para trás: substitui uma flora por outra flora, uma fauna por outra fauna, você tira os animais e coloca o boi, você tira a floresta e coloca a soja. Você ordena a floresta, tira a desordem, que é o princípio da selva —esse imbricamento de coisas que não respeita a ordem do engenheiro, uma coisa depois da outra, uma coisa que acaba e outra começa— e você põe ali uma plantação que é exatamente isso, o ordenamento cartesiano do território.

Esse é o nosso processo, e acho que esse fracasso epistêmico do qual eu falo é exatamente essa dificuldade ou esse impulso de não conhecer a Amazônia, porque eu tenho impressão que é mais fácil você ocupá-la de maneira predatória porque o que você está destruindo não está investido de nada, de nenhum amor.

Nessa linha, você escreve que a floresta, além de ser hostil ao corpo e ao espírito, afronta também o intelecto. É um trecho em que você faz referência às tramas invisíveis e complexas, a rede subterrânea de fungos que transporta matéria e informação entre árvores de diferentes espécies, mas também aquele sem-fim de outras interações ecológicas das quais a gente nem sabe direito. Eu fiquei pensando se olhar para as plantas, para os animais, para os fungos, para o solo e a interação entre todos esses elementos de alguma maneira pode transformar a forma como a gente concebe o mundo. Prestar atenção na Amazônia, esse chamado que você faz no livro, em vez de derrubar tudo sem se preocupar com o que está sendo destruído, tem o potencial de levar a uma virada epistêmica? Acho que sim e que certamente é um mundo epistêmico em que habitam os povos originários.

O antropólogo Carlos Fausto escreve de forma muito bonita sobre isso, sobre como os povos originários entendem os pequenos intervalos. Eles olham para a floresta e entendem a abundância de vida e a inexistência de espaço entre essa abundância. Isso nos ofende, do lado de cá, vindo com uma cabeça cartesiana que tenta ordenar as coisas e separa-las. O contínuo, o emaranhado nos ofendem; o discreto, aquilo que é uma coisa, intervalo, outra coisa, a gente compreende. Isso que eu acabei de descrever é a plantation, aquilo que eu estava descrevendo antes, esse emaranhado, é o mundo orgânico da floresta em que tudo conversa com tudo, em que tudo está em emaranhado com tudo, em que tudo está enrolado em tudo, em que tudo está organicamente imbricado em tudo e que produz essas interações que são de uma complexidade extraordinária.

Conversando uma vez com um grande ecologista de uma universidade americana, ele me disse que há poucas coisas no universo inteiro tão complexas quanto o sistema tropical, se é que há alguma. Colocar um homem na Lua é brincadeira —ele falando— comparada à dificuldade que é compreender a complexidade dessas interações.

Então, você tira a floresta e coloca um pasto ou uma plantação de soja: é mais fácil compreender um pasto ou a plantação de soja. O processo de ocupação da Amazônia pode também ser percebido como um processo de conversão do muito ao simples, do muito ao pouco, da complexidade para a simplicidade. Na verdade, o nosso processo de ocupação é um processo pelo qual a gente simplifica a paisagem. Uma paisagem simplificada é uma paisagem mais fácil de ser compreendida.

Aí você se coloca nessa outra episteme que não é a nossa, que é a episteme, digamos, propriamente ecológica, que tenta descobrir as interações, tenta compreendê-las, tenta ler esse mundo orgânico em que tudo conversa com tudo. Para você estar nesse mundo, a primeira coisa, eu acho, é abrir mão da ambição de querer conhecer tudo, porque você nunca vai conhecer tudo. Há sempre alguma coisa que escapa. É tão rico, é tão complexo, é tão excessivo que a sua inteligência é incapaz de abarcar aquilo que está diante de você. Portanto, exige uma certa relação humilde com a paisagem na qual você é apenas mais um elemento desse sistema ecológico. Você interage com ele, mas você não é senhor dele.

Se você ler os relatos indígenas, e você pensa, por exemplo, nos solos e na fertilidade construída dos solos que a gente chama de terra preta de índio, que são solos construídos ao longo de gerações e gerações e gerações e que dão fertilidade a um solo que é naturalmente muito pobre. Você diz: "Foram vocês que fizeram isso". Os indígenas dizem: "Não, nós somos coautores, junto com fungos, junto com os animais, junto com a chuva, junto com o vento". Eles não têm a preponderância da criação, eles não são os mestres da criação, eles são apenas mais um pequeno ator dessa peça sinfônica, em que todo o mundo contribui para criar alguma coisa que é maior do que cada ator individual.

Não é a maneira como nós, vindo de uma cultura do domínio, uma cultura ocidental, ficamos à vontade. Essa roupa não nos cabe muito bem, porque a gente quer ser o senhor do processo. Então, essa virada epistêmica pode acontecer, mas ela exige uma mudança de perspectiva e um ato de humildade diante da paisagem que você está vendo.

Eu vou te dizer uma coisa, Eduardo: eu não conhecia a Amazônia. Eu fui para lá, e o "Arrabalde" nasce dessa minha intranquilidade de ser um brasileiro com meios de viajar e de ir para os lugares e me dei conta que, com 50 e tantos anos de vida, eu não conhecia a Amazônia e conhecia um bom pedaço do resto do mundo. Eu sou um brasileiro, e 60% da Amazônia está sob a nossa guarda. Tem uma coisa errada aí. Então, eu decidi ir para lá para tentar ver o que estava acontecendo, principalmente ver o que estava acontecendo no governo que atacava a Amazônia. Estou falando do governo que se foi.

Em determinado momento, eu fui para uma área muito protegida da Amazônia, no norte do Pará, na Calha Norte, uma terra quilombola na beira do rio Trombetas. Lá, tem uma pousada, que fica alta, e você vê a floresta a perder de vista e é um milagre. A sensação é de um milagre e, como todo milagre, infinito, muito maior do que a sua capacidade de compreendê-lo.

Durante alguns instantes, essa virada epistêmica, da qual você falou, eu percebi o que ela é. Depois você volta para o seu mundo, porque a nossa bitola é uma bitola na qual a gente está desde sempre, então é difícil você sair dela e se sentir confortável na outra. Mas essa sensação de você ser uma coisa muito pequena e aquilo ser muito grande e maravilhosamente grande e é maravilhoso você ser pequeno diante daquela coisa grande, de ser apenas mais uma coisa pequena diante de tantas outras coisas pequenas que juntas fazem aquilo ser oceânico.

O Euclides [da Cunha] dizia: a Amazônia é um excesso de céu sobre um excesso de águas. Isso pode te deixar afrontado, intranquilo, ou pode te colocar em uma posição de maravilhamento, que é um pouco o que acontece com os viajantes, com os naturalistas que veem essa coisa imensa, sabem que são pequenos diante dessa coisa imensa e isso não é elemento de angústia, é elemento de deslumbramento. Essa virada é você conseguir passar da angústia para o deslumbramento e é possível. Tem que ir para lá e ver.

João, ao longo do livro você está sempre fazendo referência a essa possibilidade de virada epistêmica. Tem outro ponto que você sempre retoma: a ideia de que foi tudo destruído para nada, que o que sobra não é uma Califórnia do agronegócio, altamente produtiva e tecnológica, mas ruína, pasto degradado, área abandonada, cidade precária, miséria, sofrimento, violência etc. Para dar conta disso, em um dos capítulos você se debruça sobre o modelo boom-colapso, bastante conhecido essa ideia de que o roubo de terras públicas, a exploração de madeira, o desmatamento, o garimpo no começo levam a uma euforia econômica, por alguns anos, mas que a bancarrota chega pouco tempo depois. A lógica a que esse modelo faz referência é sempre da pilhagem, da especulação, nunca de um desenvolvimento econômico com o mínimo de comprometimento com os lugares. O que me chamou atenção é que esse modelo, obviamente, é escandaloso, mas de alguma forma compreensível se a gente considera a estrutura de incentivos e a vista grossa do Estado. O que parece um pouco mais difícil de entender é como esse modelo destrutivo continua vigente hoje e continua seduzindo os governos locais e os governos estaduais. Nesse caso específico, a gente está diante de um sistema que continua premiando quem lucra com a destruição da floresta ou a explicação passa, mais uma vez, pela indiferença deliberada, pela ignorância? Como você enxerga a persistência dessa lógica? Eu acho que essas duas coisas estão muito ligadas. A indiferença, que é também do Estado brasileiro em relação à Amazônia, permite que o processo de ocupação seja o de boom-colapso, porque o que está sendo destruído não tem valor aos olhos do Estado brasileiro.

A gente teve uma experiência reversa. Durante os anos virtuosos da Marina [Silva] à frente do Ministério do Meio Ambiente, houve uma redução brutal do desmatamento na Amazônia concomitantemente a um aumento expressivo, de quase 40%, da produção agropecuária da região, o que prova por A mais B que você pode produzir sem desmatar e que a redução do desmatamento não compromete a produção, pelo contrário, porque naquele momento houve aumento de produção e queda do desmatamento.

Como é que o governo incentiva a ocupação predatória do território? É simples, e isso está no trabalho estupendo, salvo engano de 1995, um paper de um economista do Banco Mundial chamado Robert Schneider em que ele explica a dinâmica do desmatamento. O modelo que descreveu lá acho que continua valendo hoje.

Basicamente, o governo pode aumentar a oferta de terras seja espraiando a malha viária, levando estradas Amazônia adentro, seja tornando mais flexível o regramento fundiário, por exemplo, anistiando quem grilou há dez ou cinco anos, dizendo "tome terra pública que dentro de cinco, dez anos o Congresso vai te anistiar e você vai poderia legalizar sua terra", seja demonstrando leniência em relação ao roubo de terra pública (e o roubo de terra pública no Brasil é absolutamente escandaloso. Nos últimos 3 anos a gente perdeu alguma coisa como 35 mil km² de floresta, o que é mais que uma Bélgica). Essas terras que eram floresta e eram públicas, portanto eram nossas, foram ocupadas e com isso, o governo aumentou a oferta de terra.

O que que acontece quando o governo faz isso? É que, como a terra é muito barata, não custa nada, você pode ocupá-la de maneira vagabunda. Você não precisa se preocupar com a fertilidade, com questões de erosão, você simplesmente garimpa o nutriente dessa terra. Você taca fogo. Como muito material orgânico foi queimado, a terra que é pobre se torna fértil para um par de anos —digamos uns dez, 12 anos. Durante esses dez, 12 anos, você garimpa esses nutrientes. Você acha que é um agricultor ou um pecuarista. Você não é. Você é um garimpeiro, só que, nesse caso, de nutrientes. Como toda atividade minerária, esses nutrientes se esgotam, a terra fica absolutamente empobrecida e é abandonada.

Você tem, no Brasil, alguma coisa como 17 mil km² —isso é quase um Kuwait— de terras abandonadas nesse processo. Porque o sujeito invadiu, tacou fogo, cultivou o que dava para cultivar, colocou os bois magros que puderam sobreviver durante dez, 12 anos, quando os nutrientes se esgotaram. Como o governo diz "tem oferta de terra abundante para frente, pode ir que eu não vou fazer nada, pode derrubar, pode ocupar", a terra nunca vai valer nada. Quando a terra não vale nada, vale a pena não investir nela. Vale a pena avançar e avançar, deixando para trás um deserto humano.

Como é que você reverte esse processo? A receita é produzir uma escassez artificial de terra, é tirar terra do mercado. Você tira terra do mercado de que maneira? Reduzindo a oferta. No caso de terra pública, você faz isso de maneira muito simples, criando unidades de conservação e terras indígenas, que funcionam como uma barreira contra o avanço das fronteiras. Foi o que aconteceu durante o período da Marina. Você destinou as terras públicas, criou unidades de conservação que funcionaram como uma barreira a esse avanço. Se não houver essa barreira, esse modelo será sempre vencedor, porque sempre valerá mais a pena ocupar a terra pela qual você não precisa se preocupar, zelar por ela, porque você esgota e sabe que vai poder continuar a avançar e avançar.

O resultado disso é que você anda nas estradas por algumas regiões do Pará e é capaz de percorrer 40, 50 minutos de carro sem ver rigorosamente nada. Você vê uma cerca caída, um curral que não tem mais teto, um paiol cuja parede caiu porque são essas terras que foram ocupadas, esgotadas, deixadas para trás e o sujeito avançou e agora está produzindo isso 100, 300 km à frente. Ele está fazendo isso hoje em Itaituba, em Novo Progresso, no Sul do Amazonas, que começa a ser roído por esse processo.

O que acontece com essa terra abandonada? Foi feito um estudo demográfico pouco tempo atrás por uma universidade de Minas Gerais. Hoje em dia, você tem uma força de expulsão de população nessas regiões desmatadas. Elas são incapazes de sustentar a vida. Essas regiões, hoje em dia, perdem população. Você não produziu a Califórnia do agronegócio brasileiro lá, você produziu, na verdade, um deserto humano. Esse processo vem acontecendo na Amazônia já há muito tempo com alguns momentos em que você conseguiu bloquear essa dinâmica.

O momento mais glorioso foi esse, no início desse novo século —espero que isso volte a acontecer agora, neste novo governo—, mas essa é uma dinâmica perversa, porque, de fato, nenhuma atividade legal, o sujeito que cuida da terra dele e que, portanto, investe em tecnologia, pela fertilidade do pedaço de chão que ele conquistou, vai sempre perder para o sujeito que está ao lado e que ocupou de maneira ilegal e criminosa. Tudo que é legal na Amazônia perde para tudo que é ilegal, e a única maneira de você reverter esse processo é fazer valer a lei.

Você precisa de lei e de ordem, que era a outra ferramenta, talvez a principal ferramenta do PPCDAm, que foi o plano de proteção da Amazônia que vigeu durante aqueles anos de Marina. Se você não tiver Ibama funcionando, Polícia Federal, Ministério Público cuidando do território e impedindo que esse garimpeiro de nutrientes continue a avançar, do ponto de vista meramente econômico, esse é o modelo que vence. Os incentivos são todos favoráveis a esse modelo.

João, você mencionou agora o PPCDAm. Lembrei daquele trecho do livro em que você, a partir de uma pesquisa, aponta que essas ações de comando e controle, como são conhecidas (os fiscais do Ibama em campo, destruindo equipamentos, prendendo criminosos etc.), foram as medidas mais efetivas para levar àquela queda vertiginosa do desmatamento. A gente está esperando, com a volta da Marina ao Ministério do Meio Ambiente, que algo parecido como o PPCDAm venha a ser discutido e apresentado nos próximos meses. Como você enxerga esse tipo de medida na conjuntura atual da Amazônia? Já ouvi você e outros especialistas falando que a situação de 2023 é incomparavelmente pior que a de 2003 e 2004 —uma região muito mais conflagrada, as pessoas armadas, o crime organizado que explodiu. Como pensar esse tipo de medida no cenário atual da Amazônia? Vai ser muito mais difícil, porque você tinha a desordem da Amazônia no período da Marina 1, digamos assim, mas você não tinha, por exemplo, o crime organizado.

Foi feito um estudo pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública que deixou muito claro que, hoje em dia, o grande teatro da disputa pelo poder das grandes facções criminosas no Brasil não é mais a periferia das grandes cidades e sim a Amazônia. O Instituto Igarapé também fez um estudo que mostra que inúmeras cidades ribeirinhas hoje em dia vivem única e exclusivamente do crime. Não que os ribeirinhos sejam em si criminosos, mas eles prestam serviços para o crime, por exemplo, translado de droga. Eles fornecem alimentação, combustível etc., toda a infraestrutura.

Como você desmonta isso é danado de difícil, e a grande ironia perversa disso que aconteceu nos últimos dez anos e que se intensificou muito nos últimos quatro é que a gente sabe que essa sempre foi a grande paranoia do pensamento militar: a soberania da Amazônia, a internacionalização da Amazônia, a ONU quer tomar conta da Amazônia, os americanos querem tomar conta da Amazônia, os alemães vão descer com helicópteros na Amazônia, a China quer a Amazônia. Pois bem, foi durante o governo civil mais militarizado da nossa história que o Brasil perdeu de fato a soberania sobre regiões extensíssimas do bioma porque está entregue ao crime e à anarquia.

Tem um exemplo muito, para mim, eloquente, dessa opção preferencial do governo Bolsonaro pelo crime. No início do governo, em 2019, o Ibama fez uma apreensão de equipamentos pesados em uma floresta pública que tinha sido concedida para manejo sustentável por uma empresa consolidada e estruturada. Então, você tinha uma empresa, que se chamava Amata, que operava essa floresta pública extraindo maneira de forma manejável, ou seja, mantendo a floresta de pé e pagando royalties para o governo. Entraram lá grileiros com seus equipamentos de destruição, o Ibama apreendeu e queimou. Na mesma hora, Ricardo Salles e Jair Bolsonaro fizeram uma live dizendo que isso não aconteceria mais, não se queimaria mais o equipamento de pessoas que estão tentando sobreviver na Amazônia —eram criminosos.

Aí, você vê qual é a mensagem que está sendo transmitida no primeiro ou no segundo mês de governo. De um lado, você tem uma empresa constituída que paga impostos e royalties para o Estado brasileiro para poder explorar aquela floresta. Do outro, você tem criminosos que, evidentemente, não pagam nada e que estão na ilegalidade. O governo, nesse momento, se colocou ao lado dos ilegais. Evidentemente, a empresa jogou a toalha, disse "não dá mais" e partiu. Tem uma lista imensa de empresas na Amazônia que foram embora, porque não conseguem mais sobreviver, dado que a anarquia e o crime se espalharam pela Amazônia.

Se você, por exemplo, está lidando com ativos biológicos e está explorando madeira de maneira sustentável —e é possível fazer isso—, você não tem mais como explicar para o seu comprador lá fora que a sua madeira não está contaminada pelo desmatamento ilegal da Amazônia, porque o desmatamento ilegal na Amazônia se tornou endêmico, ele está em todo lugar. Isso vale para tudo, vai valer para a carne daqui a pouco. A pecuária é o maior problema na Amazônia, é o que responde por acho que quase 80% do desmatamento na Amazônia, grilagem de terra e uma pecuária vagabunda. Como é que você vai explicar que a sua carne não está contaminada pelo desmatamento?

A anarquia da Amazônia, que se torna muito mais intensa no período dos últimos cinco, seis, sete anos, é o problema com que o PPCDAm não teve que lidar e agora vai ter que lidar com questões de segurança pública, porque as pessoas de fato estão muito mais armadas, o crime está lá e dá pertencimento. Esse é um outro problema gravíssimo aí. A Eliane Brum conta que ela foi na Terra do Meio, em um lugar muito afastado de tudo, onde sequer o crime chegou ainda, e ela viu meninos de 12, 13 anos, em pequenas comunidades, já com as tatuagens das facções (Comando Vermelho, PCC). Ou seja, é uma maneira de estar no mundo.

Já que não tem uma presença do Estado brasileiro que valorize a floresta, que que crie cultura da floresta, que crie a ideia de que aquilo tem valor e precisa ser defendido, outra cultura se impõe. Nesse caso, é a do crime. Esse é um problemaço. Vamos ver como como pode ser enfrentado. Terá que ser enfrentado.

João, você falou agora de uma maneira de estar no mundo, do vácuo do Estado e essa cultura do crime que toma esse lugar. Um dos dos pontos que me chamaram muita atenção no seu livro é essa preocupação em não explicar os processos só pela lógica econômica. Tem um olhar muito cuidadoso seu para a dimensão simbólica de tudo o que acontece na Amazônia. Em um trecho, você diz que eliminar a floresta é "um marcador de identidade, um gesto de poder e domínio, a forma como um grupo exprime os seus valores e os impõe à coletividade". Ou seja, na ausência de uma cultura, de um imaginário que consiga projetar a floresta, o boi, a caminhonete 4x4, o sertanejo ocupam esse lugar e se tornam a cultura hegemônica. Você esteve em Paragominas, circulou entre a elite local e faz um retrato muito minucioso do que você ouviu, das conversas que você teve. Queria te pedir para falar um pouco sobre as implicações dessa cultura do boi e do sertanejo para o futuro da Amazônia. É possível haver uma conciliação, um compromisso com a preservação da floresta ou essa cultura é um entrave à preservação da Amazônia? Acho que essa cultura é um baita de uma entrada e talvez seja o elemento menos tratado. É difícil você colocar em uma tabela Excel a cultura ou fazer uma regressão econômica sobre qual é o incentivo que precisa ser dado para que essa cultura seja trocada por outra. Cultura é uma maneira de você estar no mundo, é como você se vê, é como você se sente em casa, é o que te dá identidade.

Tem um fracasso epistêmico do qual a gente falou —o fato de a gente jamais ter desejado conhecer a floresta— e tem o fracasso da imaginação brasileira, e talvez uma coisa esteja ligada à outra. Quer dizer, o fato de você não ter desejado conhecer a floresta, a consequência disso é que você não criou um imaginário sobre ela, assim como, por exemplo, os americanos criaram um imaginário sobre o Oeste americano, que é uma região que também foi ocupada com muita violência por gente que saiu de um canto e foi para lá expulsando as populações originárias, dizimando, um processo de ocupação colonial e violenta. No entanto, estavam abertos para serem tocados por aquilo que eles viram, e o Oeste americano virou matéria imaginária. A gente vê essa matéria imaginária no cinema, na música, na literatura americanos.

Nada parecido aconteceu no Brasil em relação a nossa ocupação da floresta. É claro que eu não estou falando do pensamento indígena, sequer dos grandes escritores que estão lá, mas eles não conseguiram —e o problema é nosso, não é deles— entrar no veio central da nossa imaginação. A nossa imaginação não está contaminada pela floresta e, em parte, é o que permite que ela seja destruída sem que a gente se sinta indignado, sem que isso pareça um pecado ou uma heresia.

É uma coisa muito impressionante você viajar por regiões imensas da Amazônia —eu estive em Rondônia durante as eleições e no Pará durante os seis, sete meses que eu passei lá— e a floresta não é uma presença, ela só é uma presença se você vai para um território indígena ou quilombola, mas nas cidades, nas fazendas, na ocupação do colono, que foi para lá principalmente nas décadas de 1960 e 70, a floresta não existe como elemento de pertencimento. O que existe é o boi, é a cultura do boi, com tudo o que isso implica. Não é só o boi, é o que você come, é como você se veste, é como você se locomove, é o que você vai fazer no fim de semana —você vai no rodeio—, é a música que você ouve, que é a sertaneja, todo esse mundo mental que te constitui como pessoa.

Como é que você muda isso? É danado de difícil e só pela cultura. Não há outro caminho, e é por isso que eu acho que um programa bacana de governo seria fazer um pouco o que o Roosevelt fez fez durante a Grande Depressão americana, quando ele mandou grandes fotógrafos, cineastas, escritores, poetas para o Sul dos Estados Unidos para produzir uma imagem daquilo que estava acontecendo lá e que os habitantes do Leste industrializado desconheciam. Aí, você tem a produção do Walker Evans, da Dorothea Lange, enfim, de todo o mundo que foi para lá e produziu a nossa imagem mental do que foi a Grande Depressão.

Você poderia fazer uma coisa aqui parecida. Pega os grandes poetas, escritores, cineastas, artistas plásticos que não conhecem a Amazônia e manda eles para lá e pega os grandes cineastas, os poetas, os escritores amazônidas e trazem eles para cá e faz uma espécie de embaixada cruzada para fertilizar as nossas imaginações e para que [a floresta] vire matéria simbólica. Ela não é matéria simbólica. Esse é o problema.

Estou com um trechinho aqui na minha frente, que eu fui buscar, do Joaquim Nabuco no livro "Minha Formação", um dos livros que explicam o Brasil. Às tantas, o Joaquim Nabuco escreve o seguinte: "O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação europeia. As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de Salerno a Amalfi, um pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre. No meio do luxo dos teatros, da moda, da política, somos sempre squatters, como se estivéssemos ainda derrubando a mata virgem".

Esse é o sentimento que eu percebi. Isso aqui foi escrito no século 19. Você chega lá, os colonos da década de 1960 e 70 que estão lá e os que estão chegando agora dizem rigorosamente a mesma coisa, assim como o governo brasileiro disse isso o tempo todo. Outro dia, vi um anúncio da década de 1970: leve sua boiada —eles usaram em 1971 a mesma expressão do Salles— para o maior pasto do mundo. O maior pasto do mundo era a Amazônia.

Eu falo também do livro do Euclides, que é um livro terrivelmente maravilhoso, porque eu acho que o Euclides é o maior escritor que passou pela Amazônia e eu já falei isso em alguns lugares. Ele escreveu um livro que foi publicado postumamente com o título "À Margem da História". O primeiro capítulo do livro leva o título de "Amazônia, terra sem história", porque a Amazônia, nessa imaginação, não é nada e só será alguma coisa quando nós, brancos, ocidentais, chegarmos lá e começamos a escrever a história —e é uma história dessa substituição, daquela paisagem por outra paisagem.

Nesse livro, que todo o mundo deveria ler, o Euclides é muito sensível ao drama social, ele descreve de forma pungente o drama social da Amazônia. Mas em relação ao sistema biológico, a floresta em si e as suas criaturas, o desprezo dele é absoluto. Nas três primeiras páginas —eu estou com esse trechinho na minha frente também— ele diz que o rio Amazonas é um desapontamento, que a paisagem é monótona, que os horizontes são vazios, que a natureza é pura desordem —a gente já falou dela, a desordem é afronta—, que a flora é imperfeita, que a fauna é monstruosa. Esses adjetivos são todos dele. Que os anfíbios são paleozoicos, que um pássaro que ele vê voando é desprezível e que a natureza é incompleta. Essa é a maneira como a gente encarou e encara ainda a floresta.

Eu só quero fazer esse pequeno adendo: essa é uma generalização. Quando eu digo a gente, eu estou falando desse contingente de não amazônidas que ocupou a Amazônia e que é responsável por já ter destruído 20% dela.

Queria te pedir para falar um pouco sobre uma posição que você enfatiza no livro. Você começa o livro assim, você termina o livro assim, que é a ideia de que o retrato atual, o diagnóstico que se faz da Amazônia não é nada animador, mas que é preciso recusar o imobilismo e entender que a Amazônia nos convoca a ser otimistas, por oferecer a possibilidade de o Brasil ser o que jamais foi —e aqui eu estou citando um trecho do livro— "um país à altura de uma tarefa global". A gente tem ouvido falar muito sobre mercado de carbono, pagamento de serviços ambientais, a perspectiva de o Brasil se tornar uma potência ambiental como nenhuma outra etc. Mas parece que isso geralmente aparece como uma fórmula mágica, um caminho possível, mas que dificilmente vai se concretizar. Você acha que o Brasil tem condições de pôr em prática essa possibilidade que se abre? Eu acho, mas ele tem que querer ser isso. Não vai acontecer por geração espontânea. Você vai conseguir fazer isso com investimento, tecnologia, conhecimento e consciência.

O Brasil não era uma potência agrícola. Em 1973, quando houve a crise do petróleo, o Brasil percebeu que passava fome e que tinha que receber como caridade leite dos Estados Unidos. O governo militar —talvez das poucas coisas que fez direito— se deu conta que era inviável um país da dimensão do Brasil ser tão carente de tudo e decidiu então investir, via Embrapa, para transformar o Brasil em um país autossuficiente. Fizeram tão bem esse trabalho que o Brasil não só virou autossuficiente como virou um exportador de bens agrícolas. Isso é uma decisão do Estado brasileiro: a gente tropicalizou espécies, trouxe a soja, que é uma planta do mundo temperado, e soube fazê-la crescer aqui.

A gente tem agora a possibilidade de tomar uma outra decisão, porque aquela decisão fazia sentido naquele momento, mas os estragos ambientais são esses que a gente vê hoje: Amazônia destruída, 50% do cerrado já se foi, esses sistemas de plantation que, hoje em dia, se tornam cada vez mais inviáveis. A gente pode sim se tornar uma potência econômica verde, e acho que esse é um lindo projeto de país. Que projeto seria esse? Seria compreender essa riqueza da floresta e, a partir daí, transformar o Brasil naquilo que pouquíssimos países estão preparados para ser, uma potência ambiental dos trópicos. Como eu disse, se você fortalece o conhecimento, investe em cientista, leva inovação para fora dos laboratórios, encampando uma política internacional de defesa das práticas sustentáveis como princípio econômico essencial.

É notável o que o governo Bolsonaro fez: detonou nas reuniões internacionais todo tipo de regulação ambiental. Isso é um pouco como a Alemanha ir para fóruns internacionais para brigar contra a indústria automobilística. É um pouco isso que o Brasil fez em relação ao mundo verde, porque toda vez que você tem um acordo mais apertado, que exige que os países reduzam mais as suas emissões, isso favorece o Brasil, porque não existe tecnologia por enquanto e, pelos próximos 30 anos, não existirá nenhuma tecnologia melhor para capturar carbono do que uma árvore —e nenhuma árvore cresce tão rápido quanto nos trópicos.

O Brasil é a fábrica de captura de carbono. A gente está preparado para isso, inclusive pelos defeitos, porque a gente destruiu tanto, tem tanta terra devastada, preparada para receber de novo as florestas. Hoje em dia, à beira de uma emergência climática, em que o mundo desesperadamente precisa parar de emitir e retirar da atmosfera o carbono que está lá, é o mundo tropical que resolve isso, e no cinturão tropical não tem outro país com melhores universidades, cientistas, capacidade técnica de oferecer essas soluções.

Acho que a gente tem pela frente uma coisa absolutamente maravilhosa, se a gente decidir seguir esse caminho. A gente precisa, em primeiro lugar, interromper a destruição —uma coisa não convive com a outra—, evitar que a floresta continue a ser cortada e fazer daqui um centro de referência mundial para a agricultura de baixo carbono, para os novos materiais que você extrai da natureza, para engenharia baseada nas formas vivas, o que eles chamam de biomimética, para ter, no limite do limite, a identificação de moléculas que curam. Quer dizer, você usar o nosso grande patrimônio natural para descobrir curas de doenças, remunerando os povos que preservam essas pessoas, essas plantas e esses biomas, e com isso, a gente poder estar na fronteira de tudo aquilo que se chama, muito genericamente, de bioeconomia. A gente pode ser isso, mas a gente só será isso se tiver um programa sólido, estruturado, de governo e de Estado.

O Brasil não será uma potência científica na área de, por exemplo, inteligência artificial. Esse bonde a gente já perdeu. O bonde do mundo digital nós perdemos. A gente perdeu inúmeros bondes. A gente é o país que a gente conhece, um país relativamente irrelevante no mundo. A gente não é uma potência tecnológica, uma potência científica, uma potência econômica. A gente pode sim ser uma potência ambiental e a gente precisa querer ser isso.

Se a gente for isso, a gente dará uma contribuição absolutamente notável para o mundo neste momento, porque essa é a grande crise. Não tem outra. A grande crise que se apresenta é a crise climática, e o Brasil, tendo 60% da Amazônia dentro dele, confiada à nossa guarda, esse sistema que produz 20% da água doce do mundo, que tem a maior biodiversidade do planeta e que tem a maior quantidade de carbono estocado em matéria orgânica, isso é um ativo absolutamente fenomenal, isso tem um valor incrível. Isso talvez desse para o Brasil a identidade que lhe falta. A gente não sabe bem o que é, a não ser um país que nunca cumpre as suas promessas, que é sempre um país que um dia será grande, mas nunca consegue chegar lá.

Só para concluir, eu quero voltar ao ponto essencial do Krenak, porque eu não quero cair na armadilha de dizer "a Amazônia vale porque há um preço hoje em dia para o carbono e, portanto, ela se transforma em um ativo econômico". Acho que é obsceno reduzir a floresta a um ativo econômico. A gente não pode cair nesse erro. A gente não pode cair no erro de transformar um bem humano em bem material. A gente não pode substituir a beleza da floresta, do milagre da floresta por um preço. Acho que preservar a maior floresta tropical do mundo —estou convencido disso— é, antes de tudo, um dever de civilização. Independentemente de ela ter ou não preço, ela tem valor, porque lá vivem coisas que não são só pessoas humanas, são plantas, animais, micro-organismos. Tudo isso tem o direito de continuar a existir, e é o nosso dever preservar.

Acho que, se a gente não conseguir defender a Amazônia, a gente vai estar diante de um desastre moral. O Brasil terá sido o país que deixou que a Amazônia fosse destruída. O inverso é que, se a gente conseguir preservá-la, a gente, que sempre foi um pouco coadjuvante da história, que fez tão pouco, vai ter finalmente um desafio à altura de uma grande nação.

Acho que, em poucos anos, a gente vai saber que caminho escolheu. O fato de a gente ter mudado agora de governo e optado por um caminho da preservação me deixa otimista, porque me parece que a gente quer mais esse caminho do que o outro. Se isso acontecer, o Brasil terá razão de se orgulhar do que foi e que é.

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O podcast entrevista, a cada duas semanas, autores de livros de não ficção e intelectuais para discutir suas obras e seus temas de pesquisa.

Já participaram do Ilustríssima Conversa Ailton Krenak, que abordou a tragédia do povo yanomami, Gabriela Lotta e Pedro Abramovay, que discutiram os papéis de burocratas e políticos em uma democracia, Felipe Loureiro, que analisou as relações entre EUA e Rússia depois do início da Guerra da Ucrânia, Denise Ferreira da Silva, para quem a violência racial é um pilar da modernidade, Letícia Cesarino, antropóloga que expõe como algoritmos favorecem o populismo, Roberto Moura, que relançou clássico sobre a história negra do Rio, Celso Rocha de Barros, que falou sobre a história e os desafios futuros do PT, Christian Lynch, autor de livro sobre Bolsonaro e o populismo, Juliana Dal Piva, repórter que vem investigando suspeitas de corrupção da família Bolsonaro, Viviane Gouvêa, que discutiu a história da violência estatal contra grupos marginalizados, Esther Solano, socióloga que discutiu o que pensam as mulheres bolsonaristas moderadas, entre outros convidados.

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