Descrição de chapéu Rita Lee

Rita Lee foi vanguarda feminina na vanguarda tropicalista

Parcerias com Caetano, Gil e Tom Zé deram diversidade à tropicália e mudaram a linguagem da artista

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] Dona de ideias próprias, poderosa presença de palco e apurado sentido para figurinos, Rita Lee, com os Mutantes, contribuiu para a construção da diversidade musical do tropicalismo, com seu brilho alienígena em um ambiente quase todo masculino. Ao mesmo tempo, com as sugestões de Caetano, Gil e Tom Zé que acolheu e aprofundou, abriu sua percepção para a vanguarda brasileira e refinou seu deboche e o gosto por misturas de gêneros, marcas de sua carreira até o fim.

Em 1968, Rita Lee e os Mutantes tinham o visual de extraterrestres pousados no planeta Tropicália em um dia de sol. A indumentária não mentia. Em São Paulo, no 3º Festival Internacional da Canção (FIC), na defesa de "É Proibido Proibir", os trajes futuristas de plástico de Caetano Veloso e dos mutantes Rita, Sérgio Dias e Arnaldo Baptista, desenhados pela figurinista Regina Boni, escancaravam a estranheza alienígena da estética tropicalista.

A roupa de jornada espacial seria trocada em seguida por outra de corte terreno. No Rio, na eliminatória daquele FIC, Rita reapareceu como noiva na apresentação de "Caminhante Noturno", a música inscrita pelo grupo de rock. Ela usava um vestido de noiva tomado da atriz Leila Diniz e surripiado do guarda-roupa da TV Globo, a organizadora do festival. Firmava-se a estrela de sua rebeldia. Em mais um gesto de insolência, a cantora pegou um gravador K7 e pôs no microfone o discurso de Caetano em confronto com a plateia paulista, na fase anterior.

Lançamento do disco "Tropicália" na casa noturna Som.de Cristal com [da esq. para dir.] Gal.Costa, Nara Leão, Rogério Duprat, Caetano Veloso, Gilberto.Gil, Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Baptista - Reprodução

Outra ofensiva. No 4º Festival da Record, em novembro e dezembro de 1968, ela assumiu o sotaque caipira e novas roupas de plástico de Regina Boni. A canção "2001" representava o deboche dos Mutantes e, em particular, a genialidade musical nascente de Rita, que vestiu os versos de Tom Zé com uma moda caipira. "Astronauta libertado/ Minha vida me ultrapassa/ Em qualquer rota que eu faça/ Dei um grito no escuro/ Sou parceiro do futuro/ Na reluzente galáxia".

Os Mutantes portavam a insinuação interplanetária desde o batismo, em 15 de outubro de 1966. Como conta o biógrafo Carlos Calado, em "A Divina Comédia dos Mutantes" (Ed. 34), o nome do grupo veio do cantor Ronnie Von, leitor de "O Império dos Mutantes", do francês Stefan Wul. De tanto ouvir Ronnie falar dessa história, o produtor Alberto Helena perguntou por que diabos ele não sugeria que o trio fosse chamado de "mutantes" no programa da TV Record.

De cabelo aloirado, maçãs e sorrisos alvos, franjinha à la Juliette Gréco, Rita Lee reluzia na galáxia da música popular e enfiava feminilidade no tropicalismo, um papel também desempenhado pelas cantoras Gal Costa, Nara Leão e por Dedé Veloso, então mulher de Caetano.

Mas, sim, o brilho de Rita era especialmente alienígena. Em um cenário artístico de predominância masculina, ela era cantora, compositora, instrumentista, figurinista e coreógrafa, criando uma bolha de vanguarda feminina na vanguarda antropofágica dos anos 1960.

O argentino Tony Osanah, dos Beat Boys, a banda de apoio de "Alegria, Alegria" (Caetano) e "Questão de Ordem" (Gil), recorda-se da alegre timidez de Rita nos bastidores da Record. "Era uma menina cheia de entusiasmo por participar de um festival. Ela nos fazia rir com as suas imitações de personagens conhecidos e de um papagaio", conta Osanah. Mais um talento extramusical aparecia para Regina Boni. "Ela era capaz de criar um figurino que encantava as pessoas. Fiz pouquíssimo figurino para ela. Sempre que eu fazia um maravilhoso, ela vinha com um mais maravilhoso ainda."

Na roda de 1968, Rita entoou o grafite "é proibido proibir" do maio francês, mas as passeatas contra a ditadura a amofinavam.

"Eu era da turma do ‘sexo, drogas e rock and roll’, no máximo tomava um LSD e ia para a praça assistir aos comícios dos estudantes engajados que eram bonitinhos", me disse Rita Lee em 2008, em entrevista até aqui inédita. O pé-atrás com a política virou uma marca da cantora de expressão social. "Os políticos do planeta todo são muito canastrões, sou macaca velha em matéria de personagens fakes."

Ela se considerava "marginal" no mundo, mas não caía em amargura. "Bronca nenhuma, nunca fui um bom exemplo, mas sempre posso servir e aviso", brincou. Em 2008, ela afirmara em um show que entre as vantagens da velhice estava a de poder "falar os maiores absurdos que todo mundo respeita". Comparou-se ao presidente Lula. Na entrevista, Rita declarou, bem-humorada: "Lula é um camaleão, dança conforme a música, e o povo gosta disso".

Cinco anos antes de encerrar a carreira, ela admirava outra garota malcomportada, a cantora britânica Amy Winehouse. "Amy pode fazer o que bem entender da sua vida que eu vou cair de boca nela."

Com o tempo, observei a Rita Lee, sua identidade de "tropicalista" e "roqueira" seriam reviradas no desenvolvimento de sua trajetória pop, depois da expulsão dos Mutantes, em 1972, e ao longo da parceria com seu marido, Roberto de Carvalho, a partir de 1976. "Rótulos não me incomodam em absoluto, um belo dia ainda serei chamada de cantora de boleros", ironizou Rita. "Tem sempre os críticos ‘bola da vez’ das Redações de revistas e jornais. Estou por fora dos atuais."

A fã de James Dean, Elvis Presley e Beatles não escapara do clássico duelo pop da Rádio Nacional. "Minha mãe era Emilinha, e minha tia, Marlene. Eu era vira casaca, dependendo de qual das irmãs estava por perto", lembrou Rita, que se aproximou ainda menina dos irmãos Arnaldo e Sérgio Dias Baptista.

"Conheci a Rita quando trabalhava no Stardust [boate paulista], através do Serginho e do Arnaldo, na casa deles na Pompeia. Fazíamos som lá toda semana, e a Rita cantava. Linda e talentosa", lembra o guitarrista Lanny Gordin.

Os três mutantes entraram na roda-gigante tropicalista em 1967, através da gravação de "Bom Dia", parceria de Nana Caymmi e Gilberto Gil, então namorados. Nana corrige a informação corrente de que o maestro Rogério Duprat recomendou a participação dos Mutantes na faixa. "Eu os chamei. Fiquei muito amiga de Rita por causa da Record. Vi o conjunto e conversei com Duprat", diz Nana.

"Os Mutantes participavam dos programas da TV. Eu os vi tocando. Eu tive a ideia. Duprat trabalhou em cima disso. Duprat não indicou nada", acrescenta Nana. "Fui a primeira com ‘Bom Dia’ e ‘Alegria, Alegria’ [em compacto duplo de 1967]. Foi quando começaram os Beatles. Se alguém prestar atenção, aqueles acordes grandes de guitarra lembravam os Beatles. Gil botou depois os Mutantes no teatro, queria aparecer com aquelas roupas. Eu botei primeiro em disco."

Na autobiografia de 2016, Rita Lee conta com elipses e sem precisão a história de sua chegada à tropicália. Sua memória não era afiada, mas preservou o pasmo do grupo em ser convidado por Gil, no estúdio com Nana, a tocar "Domingo no Parque" em um festival de música popular brasileira. Os mutantes argumentaram que sabiam tocar rock, e não música brasileira. "Então vamos fazer rock brasileiro", contornou Gil, em um esboço do rompimento dessa fronteira.

Os Mutantes contribuíram para a construção da diversidade musical dos tropicalistas, mas, em sentido inverso, o tropicalismo trouxe as guitarras dos Mutantes para uma atmosfera de vanguarda brasileira.

Essa vivência de choque mudou a linguagem de Rita Lee. O deboche afinado com Oswald de Andrade, a fluidez entre os gêneros musicais e as citações não a abandonariam até o fim da carreira. No álbum "Tropicália", de 1968, os Mutantes integraram as faixas "Panis et Circenses", "Parque Industrial" e "Hino do Senhor do Bonfim".

Em suas memórias, ela equipara a uma universidade as conversas com artistas como Maria Esther Stockler e José Agrippino de Paula, no apartamento de Dedé e Caetano, na avenida São Luís, em São Paulo. "Posso lhe dizer que Rita sempre me pareceu possuir capacidade de falar por conta própria. Mais do que os dois irmãos, excelentes músicos. Falar em tom pop. Oficialmente, a gente sabia que ela era namorada de Arnaldo. Ou a gente pensava assim. Ou eles atuavam para parecer isso", conta o compositor Caetano Veloso.

"No [Pedro] Bial, ela disse que tinha mais firme memória de coisas da infância, ou de muitos anos atrás. Mas [na autobiografia] narra com detalhes algo que não aconteceu. Ela não foi impedida de entrar em nossa casa de Londres. Na verdade, ela estava com um namorado preto americano e entrou e conversou conosco bem animada. Rita era mais inteligente, numa dimensão, do que seus colegas de banda. Eles lideravam, mas ela sempre pareceu precisar sair."

Na noite após a morte da cantora, Caetano ouviu a canção "Homem Vinho", do álbum "Santa Rita de Sampa" (1997), uma resposta tardia da amiga a sua canção "Sampa", que celebra Rita como "a mais completa tradução" da cidade. "O que é que Caetano tem?/ Que nem todo baiano tem/ Ele é o coringa e o rei/ Meu eterno Dorian Gray".

O compacto duplo "Caetano Veloso e os Mutantes Ao Vivo", lançado pela Philips em novembro de 1968, merece ser visto como um dos pontos altos do rock brasileiro. O registro estendeu o alcance do show censurado na boate Sucata, no Rio. Os mutantes fizeram intervenções irracionais em "Baby", "Saudosismo", "Marcianita" e "A Voz do Morto".

Gil e Caetano a estimularam no salto para a carreira solo. "‘Mamãe Natureza’ e ‘Agora Só Falta Você’ são dois dos maiores rocks do mundo. Sempre achei isso. Rita fez um disco intermediário, pop mais convencional, pouco autoral, que não repercutiu. Quando ela achou o caminho próprio, arrasou. O encontro com Roberto a pôs num lugar mais próximo ao lirismo emepebista, o que não a empobreceu em nada. Ela tinha estado no lançamento de ‘Domingo no Parque’, no de ‘É Proibido Proibir’, no show da Sucata. Tinha humor e imaginação para acolher as sugestões tropicalistas. Foi, em muitas vias, bem mais longe do que elas", avalia Caetano.

"Ela tem um procedimento nas composições que é como uma agulhada na sociedade, naquele Brasil careta", define Tom Zé, parceiro da cantora em "2001". "Nesse tempo, a gente estava sob uma ditadura. As coisas dela tinham rebeldia por fora e por dentro, na sublinguagem, porque se fosse na linguagem, não deixavam cantar." O tropicalista elogia o faro de "psicólogo" do empresário Guilherme Araújo por entregar a letra de "2001" para Rita.

"Eu chamava aquilo de ‘Astronauta Libertado’. Um dia, Guilherme jogou uma fita pra mim. ‘Olhe a sua música!’. Eu olhei, vi escrito ‘2001’ e falei: ‘isso aqui não é meu’. ‘É seu’. Eu aí ouvi. A pessoa cai pra trás diante de uma coisa daquela. Principalmente porque a letra era muito sofisticada. Gil várias vezes me falou isso, Caetano também era carinhoso com a letra. E de repente ela teve a ideia genial, puta que pariu, de fazer uma música caipira", vibra Tom Zé. "Rita tinha outra compreensão de tudo dentro dos Mutantes. Ninguém podia imaginar que ela fosse tão ponta de faca, tão ligeira no ataque, tão fértil na produção."

Rita Lee morreu em 8 de maio, aos 75 anos, em São Paulo, e foi velada no planetário do parque Ibirapuera. Entre lunetas e mapas de órbita, ficou mais fácil ela voltar para sua galáxia.

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