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Martim Vasques da Cunha

Como Lana Del Rey canta para barrar extrema direita

Discos da cantora apresentam a luta da astúcia feminina contra os tiranos 'homens de bem'

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Martim Vasques da Cunha

Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de "A Tirania dos Especialistas" (Civilização Brasileira) e "O Contágio da Mentira" (Âyiné)

[RESUMO] Lana Del Rey, que se apresenta em São Paulo (3/6) no Festival Mita, estruturou seus discos a partir de referências, cifradas ou explícitas, aos personagens do romance "O Grande Gatsby", clássico de F. Scott Fitzgerald. Tida pela mídia como mais uma cantora pop, ela compôs canções subversivas sobre o desejo feminino que buscam no fracasso dos tiranos "homens de bem" uma saída para os extremismos de hoje.

Querem impedir o avanço da extrema direita? Então ouçam com atenção a obra de Lana Del Rey.

A chave para entender esta relação encontra-se em dois autores e seus livros concebidos há cem anos.

O primeiro é o americano F. Scott Fitzgerald. Em 1922, ele iniciou a redação de um romance que, três anos depois, transformou-se em "O Grande Gatsby". O segundo é o alemão Oswald Spengler, que, em 1923, lançava a edição definitiva, em dois volumes, de seu grande painel de filosofia da história, "A Decadência do Ocidente".

A cantora Lana Del Rey se apresenta no festival Lollapalooza, em São Paulo, em 2018 - Bruno Santos/Folhapress

A trama de "Gatsby" é simples. Nick Carraway, um idealista que não sabe se será um escritor ou mais um investidor em Wall Street (antes do crash de 1929), conta como um contrabandista milionário, Jay Gatsby, recriou a sua biografia apenas para reconquistar um amor do passado, a interesseira Daisy Buchanan, casada com Tom, um brutamontes entupido de dinheiro e crente de que é um "homem de bem", apesar de maltratar a esposa.

Acompanhado pela astuta Jordan Baker, Nick testemunha as festas luxuosas que Gatsby dá para chamar a atenção de Daisy —assim como a tragédia decorrente do triângulo amoroso que acontece entre o casal e o personagem-título do romance.

Já "A Decadência do Ocidente" desenvolve a tese de que a civilização estava em uma fase de petrificação política e cultural, e não haveria outro destino exceto a ruína de nossas instituições democráticas, destruindo assim séculos de conquistas religiosas e culturais.

Para reverter este processo em curso —semelhante à decomposição de um organismo, o que fez Spengler dar uma importância exagerada à "raça"— era fundamental aceitar o advento do cesarismo, no qual um "homem forte" dominaria tudo o que fosse possível dentro do seu alcance.

No meio deste sanduíche insólito, está Lana Del Rey —ou melhor, Elizabeth Grant, nascida em 1985, filha de um publicitário e de uma professora, moça da alta classe média americana.

Ela estudou filosofia na Universidade de Fordham, instituição católica de Nova York (a mesma que teve entre seus alunos o mágico David Copperfield e o ator Denzel Washington), e insistiu em afirmar a Deus e ao mundo que era uma cantora capaz de unir os diversos fragmentos da cultura dos EUA. A princípio, ninguém a levou a sério.

Assim, Elizabeth (nessa fase identificando-se como " Lizzy") entregou-se à bebida e aos distúrbios alimentares, ao mesmo tempo em que consumia a literatura de Vladimir Nabokov ("Lolita", obviamente) e os filmes de David Lynch ("Twin Peaks" e "Coração Selvagem", com certeza).

Pouco a pouco, reencontrou o prumo e fez seu primeiro álbum, intitulado "Lizzy Grant" (2010). Descontente com o rumo que a gravadora tinha dado ao disco e com a sua própria persona pública, ela mudou subitamente de ideia, arquivou a estreia como cantora profissional e criou um novo nome: Lana Del Rey.

A transformação seria definitiva com o segundo disco, lançado em 2012 e intitulado "Born To Die". Eram outros tempos: ninguém iria imaginar que, pouco depois, o Brasil passaria por manifestações em massa que tirariam uma presidente de esquerda do poder e que um empresário fanfarrão como Donald Trump seria o próximo comandante dos EUA.

A música celebrada por Lana era a recuperação de uma nostalgia que poucos experimentaram nos anos 2000. A sua melancolia, contudo, não era sobre o que aconteceu no passado, mas sim a respeito de um futuro que jamais existiu.

Isso ficou mais evidente nos álbuns seguintes, oito discos em um breve espaço de uma década, e uma dezena de singles distribuídos em edições especiais, coletâneas e trilhas sonoras de séries de TV e filmes.

Em um desses pedaços aparentemente espalhados a esmo, há uma canção chamada "Young and Beautiful", composta para a adaptação cinematográfica que o diretor Baz Luhrmann fez de... "O Grande Gatsby", em 2013..

O elenco do filme tinha Leonardo DiCaprio no papel principal, Carey Mulligan e Joel Edgerton como Daisy e Tom Buchanan, Elizabeth Debicki na pele de Jordan Baker e Tobey Maguire sendo o Nick Carraway que imita o próprio Fitzgerald, com direito a dramatizar o colapso nervoso que o romancista sofreria anos depois, após o fracasso de crítica e público de seu livro.

"Young and Beautiful" parece ser mais um single de venda fácil no catálogo de Lana, mas isso é um engano. Ela sabe muito bem o que faz, controla todos os passos de sua carreira musical (em uma entrevista, Lana citou a expressão atribuída ao filósofo Leo Strauss de que seus discos devem ser "lidos nas entrelinhas").

A canção é um lamento lírico sobre um amor irrecuperável, em sintonia com o triste mundo de Fitzgerald.

A inclusão de Lana Del Rey no universo fitzgeraldiano não é somente uma bela estratégia de marketing. Cada disco dela é uma referência, ora cifrada, ora explícita, ao quarteto central do enredo de "O Grande Gatsby".

A começar pela trajetória da própria Lana, que para ser a superstar de hoje foi obrigada a recriar a sua própria biografia —assim como um tal de Jay Getz fez para se transformar no Gatsby que encanta a narrativa de Nick Carraway.

E, para mostrar que não há acaso na sequência de seus discos, Lana os estruturou de tal forma que é impossível não perceber a conexão de temas de suas melodias e seus versos com a célebre obra de Fitzgerald.

Em primeiro lugar, temos a trilogia moldada em Tom Buchanan, com "Born To Die", "Ultraviolence" (2014) e "Honeymoon" (2015); depois, há o que podemos chamar de "disco solo" de Daisy Buchanan, "Lust For Life" (2017); aí chegamos ao díptico que emula Jordan Baker, "Norman F... Rockwell" (2019) e "Chemtrails over the Country Club" (2021), para depois contemplarmos o que Nick Carraway pensaria sobre os nossos tempos insanos, em "Blue Banisters" (2021).

Todavia, a grande novidade de Lana Del Rey é que ela não faz isso do ponto de vista desses "homens de bem", e sim das mulheres fascinadas por eles. Seu assunto é nada mais, nada menos que o labirinto do desejo —e de como somos incapazes de encontrar um fio de Ariadne para escapar desta prisão.

Nos três primeiros álbuns da sua nova carreira, Lana interpreta uma mulher que se rende a alguém como Tom Buchanan. Em "Gatsby", ele é um boçal que cita opiniões e frases retiradas de livros inspirados em... Oswald Spengler.

Fitzgerald não cita "A Decadência do Ocidente", mas sim um autor marcado por ele, Lothrop Stoddard. Com seu " The Rising Tide of Color" (1920), Stoddard reiterava a abordagem de Spengler no primeiro tomo da sua síntese, lançado em 1918, e afirmava que a Europa em pouco tempo testemunharia a "ascensão dos impérios de cor".

Mas Tom Buchanan não é o único personagem com delírios de ser um César na vida privada. Gatsby sofre do mesmo problema, e Nick Carraway também. Fitzgerald fez, com esses personagens, uma anatomia implacável do fracasso que é ser um "homem de bem", o homem supostamente honesto que, no fim, deseja ser um pequeno tirano entre suas amadas (e no resto da sociedade por extensão).

Lana Del Rey percebeu isso como poucas artistas contemporâneas —o que é extremamente inovador e subversivo em um mundo como o nosso, intoxicado tanto pelo discurso da extrema direita como pela política identitária. E, com sua obra idiossincrática, ela consegue encontrar uma saída para esse impasse.

Em "Ultraviolence", Lana canta que "fodi o meu caminho até chegar ao topo", uma versão menos sofisticada da famosa observação de Fitzgerald de que a voz de Daisy Buchanan era "cheia de dinheiro".

No "díptico Jordan Baker", Lana brinca com a mecânica de "quem-come-quem", sabendo que, no fim, é uma mocetona que gosta de passear na praia de Venice, em Los Angeles, apenas para praticar seus jogos de sedução.

Em "Blue Banisters", a cantora apela para uma melancolia cada vez mais constante, ao intuir como sofre uma mulher que precisa entender o trauma vivido por Nick Carraway no final trágico de "O Grande Gatsby".

Todavia, é no seu disco mais recente, o sublime "Did You Know That There's a Tunnel Under Ocean Blvd" (2023) que Lana dá seu passo mais insólito: ela simplesmente assume a persona de F. Scott Fitzgerald.

Mas não se trata do escritor bem-sucedido dos loucos anos 1920, e sim do artista atormentado que produziu ensaios memoráveis como "The Crack-Up" (1936), em que narra em detalhes seu mergulho nas trevas da depressão e do alcoolismo.

Lana faz isso de maneira deliberada em duas canções: "A&W" e "Kintsugi". A primeira é uma confissão de como foi usada e abusada pela mídia, que fez de tudo para assassinar sua reputação; a segunda traz uma reflexão comovente a respeito do encontro de Lana com a própria finitude.

"Kintsugi" é também uma referência críptica a um tipo de arte oriental (japonesa, no caso). Ela reelabora uma determinada perspectiva existencial a partir das ruínas que, supostamente, formam a nossa própria trajetória individual.

O pintor Makoto Fujimura, autor de "Arte & Fé", defendeu recentemente esse tipo de manifestação, explicando cuidadosamente que "kintsugi é o remendar que nos conduz ao novo" e a uma nova esperança.

Ora, é justamente o que Lana Del Rey insiste em realizar, como se fosse uma obsessão. A última faixa do novo álbum, "Taco Truck X VB", recria "Venice Bitch", de "Norman F... Rockwell" —álbum que pertence à fase Jordan Baker, se seguirmos a nossa descrição da estratégia à la Fitzgerald.

De novo, isso também não é algo aleatório. Lana sabe que é impossível imitar moças como Daisy Buchanan ou mulheres fascinadas por "homens de bem", como Gatsby, Tom Buchanan e Nick Carraway. Em um mundo contaminado pelos detritos do discurso de Oswald Spengler, copiar a astúcia de uma Jordan Baker é mais do que um manifesto feminista: é uma atitude de sobrevivência.

Lana Del Rey e sua obra retratam a verdade de que vivemos em uma permanente "noite escura da alma". E é apenas este tipo de conhecimento que nos ajuda a impedir a ascensão de qualquer perigo iminente, seja a extrema direita, sejam as nossas próprias ilusões.

Disfarçada pelo manto da beleza, Lana é o espelho maldito dos nossos desejos, pronta para se sacrificar em estilhaços que mostrarão como somos, no fim, segundo as derradeiras palavras de Nick Carraway em "O Gande Gatsby", "barcos indo contra a corrente, impelidos incessantemente de volta ao passado".

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