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Erika Palomino

Rita Lee criou estilo único de moda e performance

Domínio da imagem e sensibilidade para figurinos colocam a cantora na categoria de ícone

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Erika Palomino

Jornalista, consultora criativa e autora de “Babado Forte” (ed. Mandarim) e “A Moda” (Publifolha)

[RESUMO] Afora o talento musical, Rita Lee construiu sua trajetória única também com seu estilo originalíssimo, influenciando a moda do país nas últimas seis décadas. Couro, leggings, coletes, botas de plataforma, tecidos sintéticos, macacão, fraque, óculos de lentes coloridas: Rita se valeu de grande sensibilidade para o poder da imagem e dos códigos do vestir para criar sua icônica persona de eterno encanto.

A mulher que fazia rock com o útero e os ovários deixa no Brasil, e para sempre, a sua marca. Rita Lee Jones escreveu uma trajetória única em sua musicalidade e extraordinária por seus sucessos, dona de estilo originalíssimo.

Enquanto acompanhava as ondas do zeitgeist, inventava também as próprias modas, ao longo de quase seis décadas de atuação e influência na cultura do país. Desviante por natureza, assumia-se como ovelha negra. De cabelos vermelhos e franjinha.

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Rita Lee, usando peça da estilista Barbara Hulanicki, é fotografada por Vânia Toledo em seu estúdio em 1980 - Vânia Toledo

Os figurinos de quem sobe ao palco são prato farto para processos de individuação, e Rita Lee se utilizou de específica sensibilidade para o poder da imagem e dos códigos do vestir na criação de personas e na expressão pessoal e política que se dá por meio de roupas, acessórios e maquiagem.

Nem sempre é assim. Podemos pensar no que fazia David Bowie nessa seara. O domínio do conceito das fantasias de cena, o controle sobre a construção imagética das capas dos discos, o impulso provocador e o desacato às autoridades ao redor colocam Rita Lee na categoria de ícone.

Tudo isso começou nos anos 1960. Naqueles tempos longínquos, no século passado, mulheres de bom tom não trajavam calças compridas. Também não podiam usar saia muito curta nem sair da cartilha prevista pelo patriarcado —até que chegasse o ponto de ebulição da cultura hippie e do flower power, que Rita Lee abraçou. Não somente, aqui se desenhava o tropicalismo, que por sua vez abraçou Rita Lee e os Mutantes.

Assim, no final daquela década, em 1967, diante da TV, nascia uma cantora por quem o Brasil imediatamente se apaixonou. Em seus 20 anos, os cabelos louros, as sardas no rosto, os olhos brilhantes e azuis, tocando prato e cantando "Domingo no Parque", com Gilberto Gil, no Festival da Record, vestidinho azul de veludo e mangas bufantes.

O cabelo ainda era louro, pintado pela própria artista com uma receita de chá de camomila, cascas de cebola, parafina e água oxigenada. "Levava o dia inteiro, ficava meio palha, mas valia a pena o look Françoise Hardy da Vila Mariana", contou em sua autobiografia de 2016, mencionando a cantora francesa cult daqueles tempos em que Rita morava no bairro de classe média paulistana em que ela cresceu e tanto viveu.

Dramáticos, como não poderiam deixar de ser, os figurinos dos Mutantes eram parte do espetáculo determinado a épater la bourgeoisie e as pessoas da sala de jantar. Para tanto, nada como o vestido de noiva da apresentação do Festival Internacional da Canção de 1968, na Rede Globo.

Leila Diniz atuou um pouco antes na emissora na novela "O Sheik de Agadir", onde usou a roupa, e a cantora pediu o vestido emprestado. Só que, no palco, Rita Lee fez uma versão grávida do look, algo bem transgressor para a época. Em curso, a revolução sexual era então televisionada para o público brasileiro.

Rita Lee não performava: ela era a performance. Sempre uma curva adiante, desafiando os parâmetros da moda como marcadora do tempo, em seu anacronismo vanguardista, Rita Lee era tão moderna que transformava tudo à sua volta imediatamente em passado.

Foi assim quando ela deixou os Mutantes. Viajou para Londres e descobriu a henna, voltando com os cabelos vermelhos que assim seguiram, em diferentes tons, tingidos também por ela, até 2013, quando liberou os fios brancos de vez. "Como toda mulher querendo mudar de vida, comecei pelo cabelo", contou também em sua primeira autobiografia (a segunda sai agora, em 22 de maio).

A estética desse tal de Roque Enrow cabia com graça no corpo esguio que se movia de forma explosiva, rolando pelo chão do palco, pulando, às vezes em linguagem clown (depois, eventualmente, com gestual, gola e nariz de palhaço).

Couro, leggings, coletes, botas de plataforma, tecidos sintéticos e os óculos de lentes coloridas que lhe atenuavam a fotofobia e reforçavam seu charme —Rita Lee foi aprimorando a atitude e o modo de usar.

Basta ver alguns dos registros de Bob Wolfenson, fotógrafo das modas e das grandes personalidades deste Brasil, que postou em seu Instagram uma foto dela bem rock and roll, ombreiras e saia sobre macacão de prata com fios brilhosos, óculos espelhados em formato de gatinho, pegada glam-rock.

Imagem de Rita Lee que faz parte do livro do fotógrafo Bob Wolfenson, "Bob Wolfenson: O Livro Falado" - Bob Wolfenson

Desta fase faz parte o macacão de fino tule transparente bordado com estrelas prateadas, de 1978, que ao longo da triste semana que passou foi postado e repostado por muita gente nas redes sociais.

A bota prateada de plataforma da boutique Biba foi outra das peças lembradas pelo público da moda, que ama Rita Lee. A Biba se ofereceu para fazer seus figurinos depois da visita da cantora na lendária loja londrina de Hulanicki, ainda segundo ela, em seu livro. O resultado apareceu na turnê "Babilônia"(1978).

Nos anos 1990, o estilista paulistano Ocimar Versolato (1961-2017) desenvolveu um fraque para a canção "Dona Doida" na turnê "Santa Rita de Sampa", de 1997. Composto de calça, camisa e colete (outro item favorito), incluía um costeiro com seis cabeças da cantora, desenvolvido pelo carnavalesco e figurinista Chico Spinoza.

Outra peça de grife foi o macacão assinado pela estilista norte-americana Norma Kamali, da capa do álbum "Lança Perfume" (1980), marco retumbante de sua trajetória, no registro do badalado fotógrafo de moda Miro, usado depois em um especial da Rede Globo.

Rita Lee em desfile de moda do estilista Ocimar Versolato, em 1996 - Claudia Guimarães/Folhapress

Elis Regina gostou tanto dele que decidiu incorporar o visual para os shows de sua histórica turnê "Trem Azul", em que ela cantava "Baila Comigo" e "Lança Perfume" em homenagem à amiga, a quem foi prestar apoio no conhecido episódio da prisão.

Depois de um falso flagrante em sua casa, Rita foi levada presa e ficou detida por duas semanas. Era 1976, e ela estava grávida de três meses de seu primeiro filho, Beto Lee. No primeiro show após ser liberada, surgiu então vestida em figurino de presidiária, provocação ao regime militar que tentou detê-la. Como em sua música, a ironia —e a autoironia, sobretudo— aparece com frequência e naturalidade.

Mais completa tradução de Sampa, segundo Caetano Veloso na canção de 1978 que o Brasil canta em coro, a corintiana e capricorniana Rita Lee criou para si uma identidade visual plurifacetada e cheia de camadas, em luvas de cano alto, echarpes, coletes e batas.

Incorporou o uso da cor (marcadamente os laranjas e os verdes, além de o vermelho nas blusas, no cabelo e na boca), das estamparias de pegada psicodélica ou oriental (o Paisley, a iconografia hindu), de elementos do movimento new wave e do pop, além de um certo misticismo new age.

Bruxona que era, esse arquétipo também aparece bastante ao longo da trajetória nos palcos, bem como referências vindas do universo dos super-heróis. Super Rita contra o baixo astral.

Avessa à caretice também no vestir, há coerência nesse liquidificador de estilos. "Ai de mim que sou romântica", ela cantou em "Mutante", do álbum "Saúde" (1981), feita em parceria com companheiro da vida, o músico Roberto de Carvalho.

Fica para a história sua contribuição à felicidade geral da nação, em hits que marcaram tantas gerações e serão cantados ainda por muito tempo. O sonho sempre foi ser imortal, meu amor.

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