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José Miguel Wisnik

Zé Celso foi vulcão que viveu a tragédia humana até o fim

Reverência profunda do diretor pela morte como transmutação está na raiz da criação do Teatro Oficina

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Zé Celso no Teatro Oficina Karime Xavier - 26.out.21/Folhapress

José Miguel Wisnik

Professor sênior de literatura brasileira na USP, ensaísta e compositor, é autor, entre outros, dos livros “Maquinação do Mundo” (2018) e “Veneno Remédio” (2008)

[RESUMO] A morte do dramaturgo e diretor do Teatro Oficina, que completa um mês, se soma às recentes catástrofes do fogo que trazem a sensação de aniquilamento civilizatório ao país, mas não é deprimente, por simbolizar uma explosão de energia que carrega o testemunho vital de quem viveu, pela arte, a dimensão redentora da tragédia humana até o fim.

À primeira vista, a morte de José Celso Martinez Corrêa, que faz um mês neste domingo (6), decorreu de um acidente caseiro, casual e atroz, que o atingiu em um momento em que ele se preparava, aos 86 anos, para o projeto teatral que vinha considerando o mais desafiador de sua vida: a encenação de "A Queda do Céu", testemunho xamânico e cosmopolítico do líder yanomami Davi Kopenawa.

Para nós que o admiramos e o amamos, para quem conhece a importância incomensurável da sua presença, um incêndio acidental no quarto de quem dorme, provocado, ao que tudo indica, por um aquecedor doméstico, parece doloroso demais e fortuito demais para selar uma vida portentosa. Soa ao mesmo tempo terrivelmente evitável e terrivelmente fatal.

José Celso Martinez Corrêa durante ensaio de 'Os Sertões' no Teatro Oficina - Eduardo Knapp - 20.dez.2000/Folhapress

Ocorrida exatamente um mês depois da cerimônia de casamento com Marcelo Drummond no Teatro Oficina, celebração que foi por si só um acontecimento artístico glorioso, agregador e inspirador —juntando forças vivas do teatro e da música, de Marina Lima a Daniela Mercury, de Bete Coelho a Leona Cavalli, dos guaranis do Jaraguá à Vai-Vai—, a morte de Zé Celso veio com o travo da interrupção brutal e, mais que isso, do acaso gratuito e da falta de sentido.

Venho aqui um mês depois para revirar esse sentimento, arcando com as dificuldades inerentes ao tema e à falta de distância. Sem negar o que há de indigerível no acontecimento, há nele dimensões menos evidentes que é preciso encarar, tanto no que tem de difícil como no que tem de paradoxalmente mobilizador.

Começo pelo fato de que Zé Celso sempre foi um afirmador da vida contra tudo, tomando por isso mesmo a morte como manifestação crucial da vida a ser honrada, evocada e transmudada. Seus mortos sempre foram seus contemporâneos, ritualmente presentes a cada volta dos ciclos.

Não fosse essa reverência profunda pelo sentido da morte como transmutação, ele não teria fundado seu teatro sobre as bases da tragédia grega (o projeto arquitetônico do Teatro Oficina concebido como cenário permanente de "As Bacantes", de Eurípedes, peça de quase 2.500 anos), não teria atravessado com ânimo acintosamente afirmativo a potência corrosiva de "Ham-let", não teria instilado e extraído força do massacre de Canudos nos cinco espetáculos épicos de "Os Sertões".

Nenhum desses espetáculos era para ele mera "representação" levada a efeito por um "metteur en scène", como se diz em francês para "diretor". Muito mais que isso, ele metia em cena, nos extremos do irrepresentável e do gozozamente compartilhado com o público, o destino atual, terrível e poderoso do Brasil-mundo —fosse na Grécia Antiga, na Inglaterra elisabetana ou na Primeira República. Seu alcance e sua originalidade são absolutamente únicos em qualquer patamar que se queira.

Entro agora em uma dimensão mais delicada e insondável envolvida, creio eu, em sua morte. Tenho a impressão, pelos meus últimos contatos com ele e pelo que depreendo dos relatos de quem convivia com ele diariamente, que Zé Celso estava vivendo uma luta íntima, talvez inconsciente ou de difícil elaboração, no mínimo, entre dois fogos: a chama acesa de quem não baixava o facho, que sustentou a vida inteira contra todos os obstáculos, e a chama que se apagava no corpo debilitado que perdia energia e mobilidade, a ponto de não poder mais se deslocar sem apoio e sem ajuda.

Quem assistiu ao filme televisivo de Tadeu Jungle "Evoé – Retrato de um Antropófogo", filmado anos antes, se lembrará dele dizendo com enorme prazer que corpo e espírito são uma coisa só. Para quem apostava tudo nessa conjunção plena, é certamente quase insustentável viver a discrepância entre o espírito aceso no tesão da urgência criadora e um corpo bruxuleante e definhante a cada dia e noite.

Quando o visitamos, eu e Laura Vinci, companheiros de vida e companheiros em Zé (Laura ia fazer a direção de arte de "A Queda do Céu"), Zé Celso nos disse que estava sentindo muita dificuldade em viver "essa fase". Para quem nunca considerou nenhum limite como absoluto, as limitações do envelhecimento apareciam a ele como circunstância passageira.

Com a mesma quase inocência desconcertante expressava, conforme o andamento da conversa, um entusiasmo real por conhecer e palmilhar a China, parecendo não considerar as enormes dificuldades que teria para realizar esse desejo. Seu apetite de vida em ato era assombroso.

"Vimos como quem vinga uma montanha altíssima", diz Euclides da Cunha no final de "Os Sertões". Zé Celso vingou (no sentido, aqui, de transpor) muitas montanhas altíssimas e trabalhava toda noite, em grupo, na dramaturgia de "A Queda do Céu", montanha altíssima a ser vingada, na qual estava empenhada a espiritualidade indígena e a sabedoria da floresta frente aos ataques passados e presentes da brutalidade exploradora. Tratava-se de empenhar todas as forças do teatro na salvação dos yanomamis e, com eles, os indígenas, os viventes, a floresta, o planeta, o Brasil e o mundo a transformar.

É nessa contingência que eu peço licença para imaginá-lo, carente de calor na noite de inverno, puxando o aquecedor para demasiado perto da cama, contra todos os conselhos, avisos e advertências, levando as cobertas à combustão. Considerada a situação como um todo, esse não é um acaso qualquer. A sós com sua questão (cada habitante do apartamento dormia em quartos separados, seguindo seus ritmos noturnos próprios), parece que ele precisou demais chamar a chama para si. Vai nesse detalhe singelo uma pequena e grande desmedida, uma espécie de falha trágica em escala íntima, se me entendem.

Sinto certo mal-estar em tentar devassar com os recursos precários da suposição essa cena que para sempre nos escapará. Mas me recuso —nos recusamos— a desconhecer o quanto de vida e de arte ressoa nessa morte rigorosamente trágica e teatral em um sentido profundo. Lembremos que, não por acaso, o Zé Celso dramaturgo fez todo o teatro brasileiro reviver e desfilar no coma de Cacilda Becker, em nada menos que seis espetáculos da série "Cacilda!", a partir de uma associação genial da inconsciência da atriz no transe da morte com o delírio da personagem Alaíde no "Vestido de Noiva" de Nelson Rodrigues.

Não é menos que isso que se passa no seu trato final com o fogo, que foi sempre o seu elemento. O Teatro Oficina renasceu do incêndio, em 1966, logo antes de "O Rei da Vela", de 1967. "O Rei da Vela" e tudo que se segue são uma apoteótica mutação de fênix, e Zé Celso trouxe cada vez mais o fogo vivo para dentro do teatro, como se pode ver, entre muitas outras coisas, no esplêndido e impactante documentário "Máquina do Desejo", de Joaquim Castro e Lucas Weglinski, ainda em cartaz.

No dia do incêndio, Victor Rosa o trouxe heroicamente para fora das chamas do quarto (me apoio nos depoimentos públicos dos três atores que moravam com ele). A Ricardo Bittencourt, Zé Celso disse com energia, mesmo com o corpo todo queimado: "As mãos, me dê as mãos", como que dirigindo ainda a cena. Já no hall externo ao apartamento, se abraçou a Marcelo, no chão, enlaçando nele a perna como no último ato de dois amantes.

Parece impensável, olhando hoje a sua vida inteira, que ele morresse como um cisne ou um passarinho, na agonia lenta da própria energia. Sua morte é uma explosão da energia, ali onde ela parecia faltar.

Em conversa com João Camillo Penna, meu amigo e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), ele deu à dimensão extraordinária desse pacto com o fogo no destino de Zé Celso um novo giro vertiginoso, ao lembrar que Hölderlin, quando se desafiou a escrever, em fins do século 18, aquela que seria "a verdadeira tragédia moderna" (à altura dos gregos mas na beira dos abismos e das novas incertezas que já se abriam para a história humana revolucionada), se voltou para a figura de Empédocles, o filósofo, poeta e taumaturgo de Agrigento que se atira no Etna em busca de uma relação fusional com o vulcão.

Hölderlin escreveu três versões fragmentárias de "A Morte de Empédocles", cada vez mais curtas e enigmáticas, sobre esse ato irrepresentável e, afinal, fracassado como programa literário, mas que permanece como emblema impenetrável e perturbador dos impasses da nossa condição moderna, já nos seus primórdios.

A fusão com o fogo tentava suprir, em Hölderlin, a carência de um mundo do qual os deuses teriam se retirado, mergulhando o Ocidente na miséria espiritual. Reconhecendo a inviabilidade de escrever a moderna tragédia grega, Hölderlin passou a traduzi-la de um modo novo, que é o que fez com "Édipo e Antígona", de Sófocles. Para ele, os gregos eram os "filhos do fogo" que vêm com o Sol do Oriente. É na própria natureza tempestuosa e pânica do fogo que Nietzsche, bebendo-o em Hölderlin, identificou o dionisismo na origem da tragédia —dionisismo que, afinal, alimentou o teatro de Zé Celso.

Hölderlin, como Zé Celso, pensava intervir no mundo moderno com a redescoberta da Grécia através do teatro. Não se trata de uma questão de influência, mas de afinidade. Ambos o fazem com ânimo libertário, emancipador, não regressivo, propulsor de novas comunidades. Mas há impasses para um alemão do século 18 aos quais o teatro de Zé Celso responde de outra forma.

"Por que poetas em tempo de indigência?", pergunta a conhecida elegia de Hölderlin, "Pão e Vinho". Fundindo dionisismo e cristianismo em chave órfica, o poeta alemão respondia à própria pergunta invocando o pão e o vinho como dádivas que, além de alimentos dos mortais, são oferendas divinas que nos fazem imortais —endeusados pela embriaguez do entusiasmo.

Zé Celso foi buscar esse mesmo motivo mais longe e mais perto: nas próprias fontes trágicas de "As Bacantes" e na tragédia-carnaval brasileira, a "tragycomediorgia", como a chamou. Por caminhos enviesados, o "Pão e Vinho" de Hölderlin se converte em "Comida e Bebida" em Zé Celso, na cena em que o cego-vidente Tirésias ensina ao recalcitrante governador de Tebas, Penteu, os atributos divinizantes do que se come e do que se bebe: "Só duas coisas têm valor na vida/ Comida e bebida/ Comida e bebida// Comida é terra/ Deusa terra/ Dê-me terra/ Tua velha conhecida/ Que você chama/ Pelo nome que te apraz/ Pois com comida sólida ela dá de mamar/ Ela dá de mamar/ Ela dá de mamar aos mortais". (Fiz a música dessa passagem em parceria com Zé Celso, e ela foi gravada por Elza Soares no álbum "São Paulo Rio").

A cadência trágica puxada para o samba infunde no Brasil uma Grécia dionisíaca em que o apelo faminto pelos frutos da Terra Mãe ecoa ainda a marchinha de Carnaval "Mamãe eu quero/ Mamãe eu quero/ Mamãe eu quero mamar". O nome da deusa grega Terra, Deméter, se converte por sua vez em "dê-me terra" —imprimindo ao mito uma dimensão política atualizada ("Comida é terra/ Deusa terra/ Dê-me terra").

Em resumo, Zé Celso tratou os clássicos com fidelidade e gravidade tremendas, exatamente porque sem nenhuma cerimônia. Para a tragédia, convergem todos os teatros, incluindo o Carnaval, o rebolado, o circo e o programa de auditório —a já citada "tragycomediorgia". Caem as máscaras das pompas fúnebres do teatrão para que apareçam os papéis sociais e políticos do teatro da dominação. As máscaras fundantes do teatro, por sua vez, comparecem ostensivamente, essas sim, como fé cênica, isto é, como poder de instauração ("fingir fingir fingir e atingir o ser").

Seu "Ham-let" é Cazuza e canastrão assumido, rebelde sem causa na terra do Sol, não abismado na melancolização encruada da personagem, mas às voltas com a usurpação do poder encobrindo um assassinato e falando da ordem neoliberal no Brasil e no mundo. Na sua última versão de Beckett, Zé Celso decreta que Godot morreu e morto é quem o espera. Esse estar à vontade com a matéria clássica foi aprendido certamente em Oswald de Andrade.

Zé Celso vai aos arquétipos do teatro enquanto ato fundador, daí aos gregos, mas sem a chatice da solenidade ritual. Manejou com destreza o distanciamento brechtiano quando quis, como em "Galileu Galilei". Talvez se possa dizer que politizou o teatro catártico exatamente por imprimir-lhe jatos de distanciamento crítico, cênico, paródico nos quais, às vezes, se divisa a improvável conjunção de Dionísio com Brecht.

Para ele, o teatro é vida pública e a vida pública é um teatro a ser assumido e desnudado. Buscou sempre essa permeabilidade entre uma coisa e outra, à custa de um alegorismo muitas vezes excessivo. Mas se orgulhava do "rigor" de seu trabalho teatral quando conseguiu, em uma audiência pública, fazer com que Paulo Maluf lesse Penteu contracenando com Elke Maravilha no papel de Dionísio. Sonhava dirigir Jânio Quadros, que considerava um dos maiores atores brasileiros, no papel de Cadmo, o ancião da elite tebana, pai de Penteu, que se embriaga atraído pelos poderes de Dionísio.

Para além dessas cenas explícitas de política teatralizada, é reveladora a passagem de "Máquina do Desejo" em que, avaliando sua trajetória, já na velhice, Zé Celso se identifica com o papel do Palhaço que antagoniza com o Palácio —o palco italiano das estruturas políticas engessadas que escondem os desejos e os interesses que as movem.

Silvio Santos é reconhecido enquanto o Palhaço que também é, mas enfrentado como o antagonista que quer engolir a arquitetura única do Oficina (patrimônio cultural material e imaterial tombado e considerado em uma lista do jornal The Guardian o teatro mais especial do mundo) dentro das torres mercantis do Baú da Felicidade, como se seu destino final fosse desembocar em uma praça de alimentação de shopping center.

Essa batalha cultural e econômica que atravessou as décadas se tornou uma verdadeira alegoria prática do embate atual entre arte e capital, estendendo-se ao debate urbanístico sobre a destinação privada de todos os espaços e a demanda pela abertura rasgada do parque do Bexiga no entorno que abraça o teatro-sambódromo Oficina Uzyna Uzona e faz dele o Anhangabaú da Feliz Cidade.

Ao longo do tempo, o teatro criado por Zé Celso se fez e veio se fazendo atravessado por comunidades (incluindo populações de moradores sem-teto do Bexiga, que tiveram participação importante em "Os Sertões") e é, a seu modo, quilombo, aldeia e experimento coral das potências que se abrem quando velhas divisórias brasileiras caem por terra.

O Brasil recente é marcado por muitas catástrofes desoladoras e deprimentes, pela sensação de aniquilamento civilizatório que trazem —desmatamento, queimadas, Mariana, Brumadinho e, entre todas, pelo seu simbolismo histórico, o incêndio do Museu Nacional. A morte de Zé Celso é também uma catástrofe do fogo que nos atinge, mesmo que não saibamos o quanto.

No entanto, por tudo o que tentei dizer aqui, ela não é deprimente. Ela traz todas as marcas do testemunho vital de quem viveu, pela arte, a dimensão redentora da tragédia humana até o fim. Godot morreu. Zé Excelsius não. A gente é que saiba o que fazer com isso. Talvez finalmente possamos entender o que ele disse tantas vezes: que a palavra-chave da cosmopolítica não é resistência, mas reexistência.

Merda!

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