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Entenda por que a 'emissão de moeda' para pagar a conta do coronavírus pode derrubar os juros, mas não deve gerar inflação

Um dos caminhos para 'criar' dinheiro é permitir que o BC compre títulos do Tesouro e faça um crédito na conta da instituição

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São Paulo

O aumento de gastos para enfrentamento da pandemia de coronavírus levantou o debate sobre como financiar essas despesas, inclusive com a sugestão de aumentar a emissão de dinheiro para permitir que o Banco Central financie os gastos do Tesouro Nacional. Para isso, no entanto, é necessário mudar a legislação e rever o sistema de metas de inflação.

Essa emissão não significa pedir à Casa da Moeda que imprima mais cédulas e moedas, algo que ela já faz para repor estoques e suprir o aumento de demanda por dinheiro em espécie.

Um dos caminhos para aumentar a quantidade de dinheiro é permitir que o BC compre títulos emitidos pelo Tesouro e faça um crédito em valor equivalente na conta única da instituição, criando moeda por meio eletrônico, explica o professor do Departamento de Economia da PUC-Rio Márcio Garcia. O Tesouro usaria o recurso, por exemplo, para pagar despesas por meio de transferências.

A ação de dois órgãos se deve ao fato de que somente o Tesouro pode emitir títulos e pagar despesas do governo federal, e apenas o BC pode emitir moeda, segundo a Constituição. A Carta, no entanto, proíbe o BC de conceder empréstimos ao Tesouro. A autoridade monetária só pode comprar e vender títulos públicos para regular a oferta de moeda ou a taxa básica de juros, segundo Garcia.

Surge aí o segundo entrave para esse tipo de operação. O sistema de metas de inflação criado em 1999 determina que cabe ao BC regular a taxa básica de juros (Selic). Como não é possível determinar ao mesmo tempo a quantidade e o preço do dinheiro, o BC define a Selic. Depois, atua comprando e vendendo títulos públicos, de forma que a quantidade de dinheiro no sistema seja a necessária para manter a taxa próxima ao valor definido pelo Copom (Comitê de Política Monetária).

Para Garcia, o BC deve continuar reduzindo a Selic, mas sem abandonar o sistema de metas. “Se o BC quer manter a taxa de juros [no nível definido pelo Copom], precisa deixar a quantidade de dinheiro subir ou cair de acordo com a demanda. Não tem como controlar a quantidade de moeda. Senão, o BC vai dar dinheiro com a mão direita e tirar com a esquerda. Ou terá de colocar a taxa de juros em zero. Pode ser que a crise se agrave de tal maneira que a gente chegue lá.”

Para ele, o caminho para financiar os gastos extraordinários é aumentar receitas ou cortar outros gastos.

Nelson Marconi, professor da FGV e pesquisador visitante da Universidade de Harvard, diz que a melhor forma para financiar as despesas extraordinárias com a pandemia é permitir o financiamento do Tesouro pelo BC. Para ele, a mudança na legislação e a redução dos juros pelo Copom poderiam viabilizar isso.

“A melhor forma para financiar esse gasto seria fazer uma venda de títulos do Tesouro para o BC, que em troca entregaria moeda. O Tesouro aumentaria a posição no caixa único e poderia financiar seus gastos. Pode ter uma programação de recompra desses títulos ao longo do tempo, uma situação mais favorável do que fazer essa dívida no mercado”, afirma Marconi.

“A Selic tem de cair mesmo. A taxa real de juros [descontando a inflação] teria de ir para zero, talvez até ficar negativa em um primeiro momento, para que a gente conseguisse enfrentar esse cenário. Pensar que o problema é desviar a Selic da meta é um luxo que não dá para pensar.”

Marconi afirma que, em termos de pressão sobre preços, não seria um problema ter mais dinheiro no mercado. “Esse choque é tão forte, provoca uma ruptura tão grande na atividade, que não é esse aumento de oferta de moeda que vai provocar inflação.

Eduardo Zilberman, professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, afirma que a discussão sobre imprimir dinheiro para pagar a conta do aumento de despesas ignora o fato de que o BC pode colocar mais recursos na economia simplesmente reduzindo a taxa básica, sem que haja necessidade de alterar o arcabouço institucional e legal.

“Toda vez que o Banco Central decide uma determinada política de juros, ele faz isso comprando e vendendo títulos. Quando ele baixa os juros, está expandindo a base monetária. Quando aumenta os juros, reduz a base monetária. Essa expansão e redução da base é como se implementa a decisão do Copom.”

“Sou contra abandonar o sistema de metas. A taxa de juros deixaria de ser o objeto da decisão do Copom. Se a decisão passa a ser expandir a base monetária, não importa o que aconteça com os juros, há uma ruptura institucional.”

Para Zilberman, o financiamento dos gastos extraordinários deve ser feito pelos meios tradicionais: aumento de arrecadação e corte de gastos.

“Tem de gastar, prover seguridade social para os mais necessitados, mandar crédito para as firmas sobreviverem, mas é importante que tudo isso esteja temporário. Aí você consegue equacionar essa conta lá na frente com aumento de imposto ou corte de gasto temporários. Se esses gastos se tornarem permanentes, vamos precisar de aumento de impostos ou corte de gastos permanentes.”

“O que a gente aprende na escola, que banco central imprime dinheiro, é historinha. Banco central nenhum imprime dinheiro. Imprime papel-moeda. E papel-moeda é totalmente irrelevante nas transações contemporâneas. O grosso é feito por mudanças de reservas bancárias. Esquece moeda. Banco central basicamente cria e destrói reservas bancárias”, afirmou o economista Persio Arida, ex-presidente do BC, durante debate realizado na semana passada.

Arida disse que o que se denomina como emissão de moeda foi feito na crise de 2008 e está sendo repetido agora por vários países desenvolvidos, por meio de depósitos de recursos feitos diretamente por um banco central na conta do Tesouro, como na Inglaterra, ou por meio do afrouxamento monetário realizado pelo banco central dos EUA ao comprar títulos, algo que será permitido ao BC do Brasil caso a proposta de orçamento de guerra seja aprovada.

Segundo ele, a experiência nos países desenvolvidos mostra que dificilmente a expansão da base monetária gera aumento de preços, o que só ocorreria se ela pressionasse a demanda a ponto de gerar pressões inflacionárias, o que geralmente só ocorre quando a economia opera com pleno emprego.

“Inflação é excesso de demanda agregada em relação à oferta. Enquanto a expansão de liquidez não causar excesso de demanda agregada, ela pode ser feita sim. O que a evidência tem demonstrado é que a inflação é um fenômeno mais inercial do que se imaginava, e o que a gente chama de excesso de demanda agregada demora muito mais para se materializar”, afirmou Arida.

“Como você gerou essa narrativa de que emissão de moeda e aumento de passivo do Banco Central gera inflação, fica muito difícil para o BC se movimentar. Para administrar as expectativas, você tem de levar em conta essa narrativa. O Brasil está um pouco atrasado nesse debate, infelizmente”, disse o ex-presidente do BC.

A atual administração do BC já informou que pretende utilizar o mecanismo conhecido como “twist”, que consiste na compra títulos de longo prazo, injetando dinheiro na economia em um primeiro momento, mas retirando os mesmos recursos com a venda de títulos públicos de curto prazo, sem alterar a quantidade de dinheiro em circulação, o que evitaria jogar a Selic efetiva abaixo dos atuais 3,75% ao ano sem que haja decisão do Copom nesse sentido.

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