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Com saída de Bezos do comando, Amazon espera melhorar imagem

Bilionário será substituído por Andy Jassy como presidente-executivo nesta segunda (5)

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Dave Lee
São Francisco (Califórnia) | Financial Times

Quando Ann Hiatt recebeu um telefonema avisando que o helicóptero que transportava Jeff Bezos tinha caído no oeste do Texas, o primeiro pensamento que lhe ocorreu foi: o que foi que eu fiz?

Hiatt tinha reservado o voo para que seu chefe estudasse locais para instalar a Blue Origin, sua companhia embrionária de exploração espacial.

“Eu não só posso ter acabado de matar Jeff Bezos”, ela se lembra de ter pensado, no pânico do momento, “como a companhia inteira pode ter ido por água abaixo”.

Felizmente, Bezos e os demais passageiros do voo escaparam intactos.

Detalhes do acidente acontecido em março de 2003 —no qual os passageiros tiveram de sair se arrastando dos destroços do helicóptero para dentro de um riacho— foram mantidos em segredo por mais de uma semana, para evitar que os empregados e os investidores da Amazon tivessem de encarar a possibilidade de um futuro sem Bezos no comando da empresa.

“A Amazon não teria sobrevivido sem ele”, diz Hiatt, que deixou a empresa em 2005. “Eu apostaria tudo que tenho nisso. A empresa ainda não tinha condição de fazê-lo”.

Homem branco e careca discursa
O fundador da Amazon, Jeff Bezos, que deixa o comando operacional da empresa nesta segunda (5) - Eric Baradat - 19.set.19/AFP

Passados 18 anos, a questão de se a Amazon é capaz de sobreviver sem Bezos, 57, continua a ser uma preocupação premente.

Hiatt está contando sua história apenas dias antes da data em que o fundador da Amazon deixará a presidência executiva da empresa, e poucas semanas antes que o empreendedor seja lançado ao espaço, como um dos quatro primeiros passageiros humanos de um foguete da Blue Origin.

As notícias sobre ambos os planos monumentais, anunciadas separadamente, pouco fizeram para movimentar os preços das ações da Amazon, ou abalar seu valor de mercado de US$ 1,7 trilhão.

A despreocupação dos mercados talvez seja prova da confiança que os investidores agora têm na máquina corporativa que Bezos criou nos últimos 27 anos, que hoje é vista como muito bem azeitada em seus processos de desenvolvimento de novos produtos, administração da forma pela qual novas ideias são discutidas, e tomada de decisões.

Também é um sinal de confiança no substituto de Bezos, Andy Jassy, mais conhecido por criar o colossal negócio de computação em nuvem da Amazon, a AWS.

“Eu não diria que ele seja um alter ego de Bezos como visionário; não é assim que ele é”, diz Michael Skok, executivo de capital para empreendimentos e associado próximo de Jassy por muitos anos. “Mas ele realmente encoraja o pessoal de criação a ser criativo, a sair de sua zona de conforto, e a fazer alguma coisa desafiadora —a quebrar as regras para descobrir uma maneira de fazer algo de novo”.

Depondo ao Congresso

A iminente promoção de Jassy, 53, —que assume o comando da empresa nesta segunda-feira (5), aniversário da criação da Amazon, em 1994—, significa que deixou de ser impensável imaginar a companhia sem Bezos como presidente-executivo.

Homem branco discursa sentado
Andy Jassy, que era responsável pela Amazon Web Services e assume o comando da Amazon nesta segunda (5) - Mike Blake - 25.out.16/Reuters

De fato, algumas pessoas acreditam que a saída dele seja crucial para que a companhia prospere contra o intenso escrutínio regulatório e político que vem sofrendo, o que inclui apelos por sua cisão compulsória.

Diversas pessoas que trabalharam com Jassy falam de seus modos afáveis mas precisos —baseados em uma memória impressionante para detalhes técnicos e dados—, que devem lhe servir bem sob os holofotes políticos, já que ele terá de encarar níveis de hostilidade sem precedentes, dirigidos às grandes empresas de tecnologia e particularmente à Amazon.

“É nisso que ele difere de Bezos”, diz Skok. “Ele é imensamente factual na sua argumentação, e sua abordagem é a de entrar em minúcias, se preciso, quando é necessário lidar com as pessoas quanto a detalhes”.

Diversos projetos de lei relacionados às grandes empresas de tecnologia e apresentados ao Congresso em junho podem perturbar e até desmantelar o poder da Amazon, e a Comissão Federal do Comércio (FTC, na sigla em inglês) dos Estados Unidos, agora presidida por Lina Khan, grande crítica da Amazon, está investigando a companhia e deve examinar sua recente transação de US$ 8,45 bilhões para adquirir o estúdio de cinema MGM.

A Amazon também enfrenta diversas investigações individuais por departamentos estaduais de justiça nos Estados Unidos, sobre questões que variam de manipulação de preços a uso indevido de dados sobre concorrentes.

Em Bruxelas, a Amazon é alvo de duas investigações significativas, em parte relacionadas a potenciais conflitos de interesse derivados do papel duplo da empresa como comerciante e operadora do mercado Amazon.com.

Há esperanças dentro da Amazon, de acordo com diversas pessoas informadas sobre a estratégia política da empresa, de que Jassy substitua Bezos como face pública da companhia.

O objetivo é substituir um dos empreendedores mais reconhecíveis do planeta —para algumas pessoas, a verdadeira personificação dos excessos do capitalismo— por um homem muito mais discreto, um fã do esporte.

A participação acionária de Jassy na Amazon tem valor pouco superior a US$ 300 milhões, ante a fortuna de US$ 175 bilhões de Bezos.

“Creio que uma das principais diferenças entre o regime de Bezos e o de Andy será que Andy tem uma nova função: responder ao Congresso”, diz Tim Bray, antigo engenheiro sênior da AWS que deixou a companhia em 2020 como protesto contra a demissão de algumas pessoas que fizeram denúncias sobre a Amazon.

E embora a Amazon pareça ter evitado a ameaça de formação de um sindicato em uma de suas unidades no Alabama, Jassy assumirá seu posto no momento em que o poderoso Teamsters, o sindicato dos caminhoneiros americanos, declarou que a Amazon será sua maior prioridade em todo o país.

“Jassy terá de dedicar muito mais energia ao relacionamento da Amazon com a sociedade em geral, e à regulamentação pelo governo, do que Jeff jamais precisou fazer”, Bray afirma. “Está claro que o pêndulo se moveu e as grandes empresas de tecnologia já não são populares”.

Criador da nuvem

Acólito de Bezos há mais de duas décadas, Jassy é reverenciado dentro da empresa e no mundo empresarial mais amplo por seu papel instrumental na criação da AWS, a sala de máquinas dos lucros da Amazon e foco dos esforços do G7 para extrair mais impostos da empresa.

Foi esse o negócio que ajudou a reverter rapidamente a opinião em Wall Street de que a Amazon —que até a criação da AWS só operava no varejo, um mercado de baixa margem de lucro—talvez jamais viesse a se tornar uma empreitada muito lucrativa. Ninguém mais pensa isso. Em 2020, embora respondesse por apenas 12% da receita da Amazon, a AWS gerou quase 60% do lucro operacional da empresa.

Quando a transferência de poder for concluída, Bezos se tornará um chairman executivo –afastado das operações cotidianas da empresa mas ainda participando das decisões mais importantes, nos momentos que os executivos da Amazon definem como “portas de sentido único”, dos quais não existe retorno depois que uma decisão seja tomada. E isso não acontecerá com frequência, diz Jassy.

“Apenas 1% ou 2% das decisões são verdadeiramente portas de sentido único, pelas quais não se pode voltar facilmente”, ele disse aos empregados da empresa em uma reunião interna em junho. “Quanto a essas [decisões] teremos de agir mais devagar... Mas compreender como preservar a cultura, e como manter um alto nível de experimentação por unidade de tempo, é incrivelmente importante”.

Em uma transcrição parcial da reunião, fornecida pela Amazon, Jassy disse que o recrutamento seria outra prioridade, para definir como melhor escolher pessoas de fora que podem não compartilhar do “DNA” da companhia, em um período em que a Amazon –que recrutou mais de 500 mil trabalhadores desde o começo da pandemia– está crescendo com extrema rapidez.

“Outra coisa que acontece com o tempo, quando as companhias crescem, é que às vezes elas deixam de lado a mentalidade insurgente e adotam a mentalidade incumbente”, disse Jassy. “E se conformam com ter soluções boas o bastante [mas não ótimas]”.

“Em minha opinião sincera”, ele acrescentou, “temos de continuar inventando e apostando de maneira significativa, e é o que faremos”.

Jassy cresceu em Scarsdale, uma cidade afluente no estado de Nova York, e fez o ensino médio lá antes de estudar na Universidade Harvard. Ele foi contratado pela Amazon quando concluiu o curso da Escola de Administração de Empresas de Harvard, em 1997.

Na época, a empresa tinha apenas algumas centenas de empregados e estava a ponto de abrir seu capital, com ações cotadas a US$ 1,50, se considerarmos os desdobramentos de ações subsequentes.

“Fiz meu exame final de pós-graduação na primeira sexta-feira de maio de 1997”, disse Jassy em uma entrevista ao site Recoder em 2019. “Comecei na Amazon na segunda-feira seguinte. Não sabia qual seria o meu trabalho”.


Amazon então e agora, em números

Dado 1997 Agora

Empregados
150 1,3 milhão
Capitalização de mercado US$ 438 milhões US$ 1,7 trilhões
Receita anual US$150 milhões US$ 386 bilhões
Lucro líquido anual US$ 28 milhões US$ 21,3 bilhões
Patrimônio Bezos (estimado) US$ 150 milhões US$ 195 bilhões
Produtos na Amazon.com 2,5 milhões de livros Centenas de milhões

Fontes: Documentos da empresa; Forbes




Pouco depois, ele foi convidado a se tornar “consultor técnico” de Bezos. Era um posto que se tornou amplamente conhecido dentro da companhia como o de “sombra” de Bezos, mas o trabalho era exigente, segundo Hiatt.

“Ele foi treinado para pensar como Jeff, mas desafiar suas ideias”, ela diz. “O trabalho dele, em tempo integral, era o de duelar com Bezos intelectualmente, porque ninguém mais na empresa era capaz disso”.

Jassy inicialmente relutou em aceitar o posto, preocupado com a possibilidade de que isso o impedisse de responder pessoalmente por realizações da empresa. Mas depois de ele estabelecer as fundações da AWS, pouca gente questionaria suas credenciais e sua competência para dirigir uma grande empresa —e para lidar com Bezos.

O fundador da Amazon e da Blue Origin, Jeff Bezos - Isaiah J. Downing -5.abr.17/ Reuters

Wendell Weeks, presidente-executivo da Corning, uma empresa que fabrica artefatos de vidro, e membro não executivo do conselho da Amazon desde 2016, diz que Bezos e Jassy tiveram desacordos significativos, ao longo dos anos. Embora se recuse a oferecer detalhes específicos, Weeks diz que Jassy em muitos desses desacordos saiu por cima.

“Na Amazon, termos essa abordagem de que, mesmo quando você está em desacordo com alguém, a questão passa a ser: mesmo discordando, você é capaz de apoiar essa decisão? Jeff em muitas ocasiões discordou de algo que Andy queria fazer mas apoiou a decisão mesmo assim, de modo que se isso acontecer agora, será bastante normal”.

Bezos 'sempre em cima dele'

Mas mesmo diante desse histórico, há quem sinta que Jassy terá dificuldade para traçar um caminho independente de seu espalhafatoso mentor.

“Ele terá de provar ao mercado que tem uma mente independente”, diz Sonia Kowal, da Zevin Asset Management, que investe na Amazon. “Ele com certeza não poderá mudar a estratégia da Amazon se Bezos estiver sempre em cima dele”.

Em sua carta final aos acionistas como presidente-executivo, Bezos disse que esperava melhorar a reputação da Amazon como empregadora. Para uma empresa cuja força de trabalho agora tem mais de 1,3 milhão de pessoas, isso é um desafio. E um desafio intenso, dizem, alguns investidores, dada a escala mundial de suas operações e o risco de novos abalos na reputação da empresa.

“Ele está falando que liderará um esforço para fazer da Amazon ‘o melhor empregador do planeta’ e ‘o local de trabalho mais seguro do planeta’”, diz Kowal. “Isso não parece indicar que Bezos planeja se afastar. Parece que ele vai tentar retornar a problemas que ajudou a criar”.

A Zevin liderou um esforço recente e frustrado para forçar a Amazon a apontar um presidente do conselho independente, em lugar de Bezos, por meio de uma iniciativa de acionistas.

Os acionistas também votaram contra uma demanda por informações mais detalhadas sobre a disparidade de remuneração entre os gêneros na empresa, em meio a queixas continuadas de que os escalões superiores da gestão da Amazon continuam a ser ocupados por uma esmagadora maioria de homens brancos.

Em 2020, 55% da força de trabalho da empresa era formada por homens, mas em sua liderança sênior a proporção de homens era de 78%. Parte do problema, diz um antigo empregado sênior da AWS, é que a cultura que a Amazon tanto alardeia recompensa comportamentos que dificultam a ascensão das mulheres —e não se espera que isso mude sob o comando de Jassy.

“Eu com certeza não vejo chance de uma mulher fazer sucesso lá”, acrescenta a pessoa. “É uma cultura profundamente perturbadora. Um mundo de competição agressiva. Todos competem. Ser arrogante e rude é considerado um sinal de liderança, lá, e isso vale para todos os escalões, até o topo”.

Em resposta à proposta dos acionistas, a Amazon declarou em maio que “estava comprometida com ampliar a diversidade de gênero e a diversidade racial, inclusive em nossos escalões de liderança”.

Weeks acrescenta que “podemos fazer melhor, e o faremos. Pode demorar um pouco. Se considerarmos nosso tamanho, nossa escala, as rodas demoram um pouco a girar —mas logo começaremos a ver resultados”.

Não é mais o 'dia 1'

Alguns investidores têm dúvidas de espécie diferente.

“Estamos cautelosos quanto à saída de Bezos como presidente-executivo porque isso pode reduzir o apetite da empresa por experiências audaciosas”, dizia uma nota recente aos investidores assinada por Tom Slater, um dos executivos da administradora de investimentos Scottish Mortgage Investment Trust, na qual anunciava a redução dos investimentos de sua empresa na Amazon.

“A empresa já não tem um fundador como presidente-executivo”, a nota prosseguia. “Tememos que, nos termos inimitáveis de Bezos, já não estejamos mais no ‘dia 1 em Seattle’, embora a estrada futura da empresa pareça longa e lucrativa”.

O lema sobre o “dia 1” é parte central da filosofia de liderança da companhia, e tem o objetivo de protegê-la da complacência, diz o fundador. “O dia 2 é o da parada, e depois disso vem a irrelevância”, explicou Bezos ao seu pessoal em uma reunião em março de 2017, “seguida por um doloroso e terrível declínio. E pela morte. E por isso é preciso que cada dia seja sempre o dia 1”.

Jennifer Cast, uma das primeiras 25 pessoas contratadas pela Amazon e que trabalhou em estreito contato com Jassy por mais de uma década, diz que confia em que a gestão dele não criará o tipo de estagnação que preocupa Bezos.

“Jassy jamais assumiria um papel que o mantivesse imobilizado”, diz Cast, que agora é consultora. “Se você prestar atenção ao que distingue Andy da maioria das pessoas da empresa, é seu apetite por aprender. Ele vive faminto”.

E em respeito a outro dos princípios da Amazon —a frugalidade—, a companhia não pretende fazer uma grande festa de despedida por seu fundador. A menos que a viagem, espacial de 20 de julho —para a qual um assento em companhia de Bezos e seu irmão Mark foi vendida em leilão, para um comprador desconhecido, por US$ 28 milhões— seja vista como presente de despedida.

“A vida de Jeff é cool”, disse Weeks, antes de evitar responder a uma pergunta sobre se o conselho da Amazon havia pedido que Bezos renunciasse à presidência executiva antes de viajar ao espaço.

“Olha, tenho muita confiança na Blue Origin. Se aquele outro lugar no voo não tivesse sido vendido por mais dinheiro do que posso pagar, eu estaria sentado ao lado dele”, diz Weeks. “Acho que vai correr tudo bem”.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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