Furto de 2.000 itens põe na berlinda modelo de gestão do Museu Britânico

Episódio pode minar propósito fundador da instituição como guardiã dos tesouros do mundo

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Imagem mostra fachada de Museu Britânico, no centro de Londres.

O Museu Britânico, no centro de Londres Daniel Leal - 16.ago.23/AFP

John Gapper
Londres

Os visitantes do grande edifício neoclássico do Museu Britânico, em Bloomsbury, no centro de Londres, foram recebidos por um rosto inesperado no balcão de informações na semana passada: "dame" Mary Beard, a estudiosa e professora de cultura clássica, administradora do museu. Ela chegou para tranquilizar os funcionários após um dos maiores escândalos que atingiu a instituição em seus 270 anos de história.

"Conversei com um simpático visitante australiano que brincou: 'Pensei apenas em verificar se o lugar todo não tinha sido roubado'", disse Beard. Foi uma brincadeira dolorosa. Os curadores fizeram uma reunião depois que se descobriu, em agosto, que 2.000 itens tinham sido retirados de sua enorme coleção, o que levou à renúncia de Hartwig Fischer, seu diretor. As peças incluem pedras semipreciosas antigas e joias de ouro.

O museu demitiu um de seus mais antigos curadores e a polícia iniciou uma investigação. O alarme foi dado pela primeira vez diretamente por Ittai Gradel, especialista e negociante de antiguidades, em 2021, depois que ele encontrou alguns dos itens à venda no eBay. Mas uma investigação inicial realizada por funcionários graduados do museu não deu pela falta de nada.

O escândalo lança uma luz fria sobre a falta de segurança para impedir o roubo interno por parte dos curadores do museu, especialistas altamente respeitados mas modestamente pagos que exercem enorme autoridade nos seus feudos. O museu acredita agora que o roubo ocorreu ao longo de duas décadas, com pedras preciosas num depósito seguro sendo arrancadas de armações e registros de computador alterados para sugerir que algumas tinham desaparecido na década de 1930.

No inferior da imagem, é possível ver as silhuetas de vários visitantes. Em cima, há o interior do museu.
Visitantes no Museu Britânico, em Londres - Toby Melville - 25.jan.23/Reuters

As revelações chegam num momento delicado: o museu tem sido pressionado a devolver peças contestadas aos países de origem, incluindo bronzes decorativos apreendidos no Benim pelas forças britânicas em 1897. George Osborne, antigo chanceler do Reino Unido e presidente dos curadores, está negociando com o governo grego o empréstimo de algumas das esculturas do Partenon —também chamadas de Mármores de Elgin– retiradas de Atenas no início do século 19.

As notícias dos roubos ampliaram os apelos para que mais tesouros sejam repatriados. O jornal estatal chinês Global Times pediu na semana passada que o museu devolva as relíquias chinesas adquiridas por "meios sujos e pecaminosos".

Dan Hicks, professor de arqueologia contemporânea na Universidade de Oxford, disse que as reivindicações do museu de ser um zelador confiável agora soam vazias: "Como é que uma instituição que fez de sua capacidade de proteger o patrimônio mundial uma virtude tão grande se sai com a notícia de que esteve roubando de si mesmo?"

Também mina o propósito central da instituição, fundada em 1753 como um dos primeiros museus universais ou enciclopédicos do mundo, com a intenção de representar uma ampla gama de conhecimento humano. Ele foi seguido pelo Museu do Louvre em Paris e pelo Museu Metropolitano de Arte em Nova York.

O Museu Britânico começou com uma coleção de livros, moedas e plantas secas formada por sir Hans Sloane, médico que se casou com uma herdeira de plantações com mão de obra escrava na Jamaica, e vem se expandindo desde então. Hoje, sua coleção de 8 milhões de itens é tão grande e variada que 1% está em exposição pública e apenas cerca de metade foi catalogada. A tarefa de recuperar itens roubados será muito dificultada pela falta de documentação.

Christopher Marinello, fundador da Art Recovery International, que recupera obras roubadas, diz que isso é "completamente imperdoável e uma grande negligência. Você não pode recuperar coisas que não pode provar que possui".

Beard descreve os roubos como "uma tragédia", e diz que o museu deve uma explicação completa ao público, mas é inibido pela investigação policial. "Mantemos as coisas em confiança para a nação e temos o dever de contar o que aconteceu... o melhor que se pode dizer é que isso nos fará olhar ainda mais atentamente para o que o museu deve ser."

Problemas de armazenamento

Demorou muito para se descobrirem os roubos. Gradel queixou-se a um administrador em outubro passado de ter sido ignorado, e Osborne pediu a Fischer que explicasse. Em dezembro, uma auditoria completa descobriu que faltavam peças, e a polícia foi alertada. Fischer anunciou em julho que se aposentaria no próximo ano, mas renunciou abruptamente no mês passado, desculpando-se por ter acusado Gradel de reter provas.

Já existiam tensões entre Osborne e Fischer, um ilustre historiador de arte alemão nomeado em 2015, quando sir Richard Lambert, antigo editor do Financial Times, era presidente.

Um administrador disse que Osborne estava insatisfeito com a liderança de Fischer após sua nomeação em 2021, e os roubos prejudicaram ainda mais seu relacionamento. "Tudo está bem quando um presidente e um diretor se dão bem, mas, quando isso não acontece, é venenoso", comenta um ex-diretor. Fischer não quis comentar.

Não ajudou o fato de Osborne ter assumido publicamente a liderança nas negociações com Kyriakos Mitsotakis, primeiro-ministro da Grécia, sobre as esculturas do Partenon. "Tenho certeza de que é divertido negociar com Mitsotakis, mas não é a função principal de um presidente do conselho de administração", diz um administrador sênior de outro museu. Tanto o museu quanto Fischer dizem que ele esteve totalmente envolvido nas negociações.

Mas os roubos começaram muito antes de Fischer ou Osborne estarem em funções, e refletem um desafio mais amplo no policiamento dos assuntos internos. Embora a maioria dos roubos de arte seja cometida por estranhos, como o roubo de 113 milhões de euros em joias de um museu de Dresden (Alemanha) em 2019, os roubos internos não são exclusivos do Museu Britânico. Anders Burius, principal bibliotecário da Biblioteca Nacional da Suécia, roubou mais de 50 livros raros na década de 1990.

Um problema é que os curadores precisam manusear muitos objetos para pesquisa, e quem tem acesso privilegiado pode facilmente esconder pequenos itens: no Museu Britânico eles não são revistados ao sair. Foi muito chocante para a equipe saber dos desvios de um colega curador: Osborne disse que o "pensamento de grupo" era parcialmente culpado.

Ser confiável para pesquisar de forma independente é uma grande parte do apelo profissional dos curadores, que não são altamente remunerados: o salário médio nos museus do Reino Unido é de 38.500 libras (R$ 240 mil anuais). "É uma profissão mal remunerada, que não acompanhou os salários universitários. Tentar contratar pessoal dos Estados Unidos agora é uma piada", diz um diretor.

Alguns museus têm regras mais rígidas sobre os indivíduos não estarem sozinhos nos arquivos: as galerias Tate, por exemplo, exigem que os funcionários sejam supervisionados no manuseio de desenhos, principalmente para evitar danos acidentais. Mas a escala da coleção do Museu Britânico torna isso mais difícil: há décadas ele se esforça para registrar exatamente o que tem.

Quando livros raros foram roubados da sua biblioteca por um leitor em 1971, o museu contratou seu primeiro agente de segurança em tempo integral, juntamente com pessoal temporário para compensar o atraso na catalogação. Em 1988, o Gabinete Nacional de Auditoria descobriu que tinha 5,5 milhões de itens –2,5 milhões a menos do que hoje– e alertou para um "aumento inexorável no tamanho das grandes coleções" nos museus.

Desde então, a tarefa só cresceu. Muitos museus são obrigados a retirar itens de escavações arqueológicas ou descobertos por projetos como o HS2. "Todos os museus enfrentam desafios com armazenamento. Eles estão cheios de caixas e mais caixas de coisas, muitas delas fechadas e sem registro", disse lorde Neil Mendoza, reitor do Oriel College, em Oxford, que liderou uma revisão governamental dos museus do Reino Unido em 2017. Um deles tinha uma coleção de aspiradores de pó em armazenamento permanente, lembra ele.

O Museu Britânico fez progressos. Possui cerca de 2 milhões de registros on-line cobrindo quase 4,5 milhões de itens, incluindo uma trompa de caça esculpida em marfim do século 16 de Serra Leoa e 72 "pederneiras excêntricas". Isso supera o Louvre, que tem cerca de 490 mil itens em seu próprio banco de dados online.

As coisas são importantes

Mas, assim como outros, o Museu Britânico tem um problema do tipo Hotel Califórnia: coisas novas podem chegar a qualquer momento, mas nunca podem sair.

Embora muito do que o Museu Britânico armazena não tenha grande valor financeiro –até mesmo as gemas roubadas de seus cofres foram oferecidas por menos de 100 libras cada no eBay–, existem restrições legais à venda de itens mantidos em confiança, e a maioria dos curadores reluta em se desfazer até mesmo de objetos menores: uma reportagem descreveu isso como um "tabu" da profissão.

Alguns museus dos Estados Unidos estão mais abertos ao que é chamado de "desanexação": vender itens para reduzir a desordem, atualizar coleções e arrecadar dinheiro. "Você não pode me dizer que cada peça de vidro romano tem de estar num museu", disse Marinello. "Pelo amor de Deus, doe para outros museus ou, se não tiver valor para exibição ou pesquisa, venda e conserte o telhado."

Uma razão para sua relutância é que, à medida que a tecnologia de digitalização e datação evolui, mais informações podem ser obtidas de itens que antes pareciam inúteis. "Sei que pode parecer loucura termos todas essas coisas, e Marie Kondo diria para nos livrarmos delas, mas há uma lógica aí. É uma posição conservadora, mas não tola", disse Beard.

O museu está se preparando para arrecadar dinheiro para um programa de reconstrução que pode custar 1 bilhão de libras, e os roubos o colocam sob pressão ainda maior. Ele deverá mover muitos itens para um novo depósito em Berkshire e provar novamente que é um guardião seguro. Recebe 4,5 milhões de visitantes por ano, mas como a entrada é gratuita depende muito de financiamento governamental, que totalizou 68 milhões de libras (R$ 430 milhões) no ano passado.

Hicks diz que não deve deixar de manter um arquivo enorme, mas deve catalogá-lo melhor e abri-lo ao público. Ele cita a Biblioteca Britânica, anteriormente parte do Museu Britânico, que tornou 90% da sua coleção de 160 milhões de livros acessíveis para estudo. "Pelo menos metade do papel dos museus tem de ser disponibilizar objetos ao público para que teça suas próprias histórias", afirma.

A ideia de que os museus deveriam se concentrar mais no que têm em seus arquivos não convence a todos. "A custódia é fundamental, mas os museus do Reino Unido são líderes mundiais em interpretação, conservação e exposições", afirma Tristram Hunt, diretor do Museu Victoria e Albert. "Seríamos loucos se permitíssemos que este momento nos distraísse disso."

Entretanto, o fato de os furtos no Museu Britânico terem passado despercebidos por tanto tempo levanta uma pergunta alarmante: quanto está sendo roubado silenciosamente de outros?

Marinello disse que os museus muitas vezes relutam em admitir o roubo por funcionários porque isso afasta potenciais doadores e mina a confiança na instituição. "Há muitos crimes dos quais nunca sabemos. Alguém precisa confrontar todos eles e perguntar: 'O que foi tirado do seu?'", disse.

Na canção "A Foggy Day (in London Town)", Ira Gershwin escreveu certa vez: "Vi a manhã com muito alarme/ o Museu Britânico tinha perdido seu encanto". Talvez ele não seja o único onde faltam alguns encantos.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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