Descrição de chapéu Energia Limpa

Energia nuclear vive renascimento na era da transição energética, com cinco novas 'Itaipus' em construção

60 usinas estão em desenvolvimento em 17 países, e planos para outras 110 já foram anunciados

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São Paulo

A corrida pela transição energética tem reposicionado a energia nuclear no tabuleiro. Prestes a completar 70 anos de uso comercial, a mais polêmica das matrizes limpas vive agora uma espécie de "renascimento", conforme mais países anunciam planos de construção e expansão de plantas atômicas.

De acordo com levantamento do World Nuclear Association, 60 usinas estão em desenvolvimento em 17 países, e planos para outras 110 já foram anunciados. Trata-se de um novo fôlego a uma fonte que passou anos em declínio, sobretudo após os acidentes de Tchernóbil (1986), na antiga União Soviética, e Fukushima Daiichi (2011), no Japão.

A estimativa é que os 60 novos projetos em construção gerem mais de 70 GWh de energia elétrica –o equivalente a cinco Itaipus. É um montante que vai se juntar aos 400 GWh já gerados anualmente pelas mais de 410 usinas em operação, responsáveis, segundo a IEA (Agência Internacional de Energia), por 10% de toda a energia elétrica global.

Vapor sobe de torres de resfriamento da usina nuclear Bugey, em Saint-Vulbas, na França - Olivier Chassignole/AFP

A tendência faz parte de um movimento que deve ganhar força nos próximos anos. Em dezembro passado, 23 países firmaram o compromisso de triplicar a capacidade global de geração de energia nuclear até 2050 na COP28 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), em Dubai.

São eles: Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, França, Japão, Emirados Árabes Unidos, Bulgária, Canadá, República Tcheca, Finlândia, Gana, Hungria, Coreia do Sul, Moldávia, Mongólia, Marrocos, Países Baixos, Polônia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Suécia e Ucrânia.


Mas é a China que lidera em números de reatores em desenvolvimento. Segundo a World Nuclear Association, a segunda maior economia do mundo tem 28,875 GW de capacidade líquida em construção, seguida por Índia (4,928 GW), Turquia (4,456 GW) e Egito (4,400 GW).

O impulso não é sem motivo. A urgência pela descarbonização do setor energético —ou seja, pela substituição dos combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão)— tem colocado alternativas no centro do debate.

A energia nuclear, ainda que produza resíduos radioativos, é considerada uma das mais limpas que existem, graças à emissão quase nula de gases de efeito estufa. Além disso, enquanto as fontes solar e eólica são instáveis por depender do clima, a nuclear tem geração ininterrupta, funcionando como uma fonte de segurança para o sistema.

A lista de ‘prós’ cresce quando se considera o fato de ela ser uma tecnologia conhecida, e, portanto, viável de aplicar em larga escala. Além disso, é uma opção eficiente de energia limpa para países com baixa oferta de fontes renováveis (solar, eólica, biocombustíveis, por exemplo), como os da Europa.

Por lá, a investida atômica ainda tem cunho geopolítico: a Rússia, em guerra com a Ucrânia há dois anos, era a principal fornecedora de gás natural para os europeus, e a busca por diversificar o leque mira independência e segurança no abaste cimento.

"Na política energética, muitas vezes faz falta que as estrelas se alinhem. No caso da energia nuclear, há uma espécie de tempestade perfeita", resumiu à Folha o diretor-geral da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), Rafael Grossi, em janeiro deste ano.

Mas, para a própria IEA, os 60 novos projetos em construção ainda são pouco. Considerando a meta de zerar as emissões de carbono até 2050, é preciso que a potência instalada salte para 545 GW até 2030. Se todos os 110 projetos anunciados saírem do papel, a capacidade ganhará mais 117 GW, levando o total a 587 GW.

A conta fecha, mas não é tão simples assim. Um dos grandes impasses para a energia nuclear é o tempo e o investimento necessários para a construção de uma usina. São cinco anos –no mínimo– de obras, e muito dinheiro para fazer.

As usinas do Brasil, por exemplo, Angra 1 e Angra 2, custaram R$ 8,4 bilhões e R$ 17,2 bilhões, respectivamente. Angra 3, em construção desde 1981, já custou R$ 7,8 bilhões e deve exigir mais R$ 20 bilhões para ser finalizada, de acordo com estimativas da Eletronuclear. A obra foi interrompida diversas vezes por falta de dinheiro, rescisão de contratos e suspeitas de corrupção, e a inauguração, por ora, está prevista para 2028.

Usinas nucleares ao lado do mar
Usinas Angra 2 (à esquerda) e Angra 1 (à direita); os reatores, onde a energia nuclear é gerada, ficam dentro das estruturas brancas - Divulgação/Eletronuclear

É diante desse imbróglio que o mundo também volta esforços para os chamados SMRs (pequenos reatores nucleares, na sigla em inglês). Idealizados para construção modular e em dimensões mais reduzidas, esses reatores têm capacidade de geração de até 0,3 GW por unidade, o equivalente a cerca de um terço dos reatores tradicionais.

O objetivo é que eles se tornem populares e viabilizem a produção em escala, com potencial para redução de custos, melhoria nas questões de segurança e facilidade na instalação. Os projetos, no entanto, ainda devem levar tempo para sair do papel e precisam comprovar viabilidade econômica.

Há ainda o peso da opinião pública. A memória dos acidentes de Tchernóbil e Fukushima, ambos classificados com o nível mais grave da Escala Internacional de Eventos Nucleares, criou uma sensação de insegurança em torno da fonte de energia.

"Ao longo da história, houve uma demonização da energia nuclear. Só houve dois acidentes muito sérios até aqui [Fukushima e Tchernóbil]. Muitas pessoas a confundem com armas nucleares. E há o fato de que a opacidade da indústria colaborou para essa narrativa", afirmou Rafael Grossi, da IAEA.

Mas, para pesquisadores, os acidentes são ocorrências raras ante a quantidade de usinas em atividade e dos 70 anos de uso comercial. "A mineração apresenta um risco maior do que a geração de energia elétrica nuclear", afirma Felipe Gonçalves, superintendente de pesquisa da FGV Energia.

Números associados à letalidade dessa matriz também estão entre os mais baixos, com 0,03 morte por terawatt-hora (TWh) produzida —só acima da solar (0,02) e a uma grande distância do carvão (24,60) e do petróleo (18,4).

Desde Fukushima, o revés na produção de energia nuclear chegou a virar política pública. A Alemanha, por exemplo, colocou como meta desativar todas as usinas em operação à luz do acidente. As últimas três usinas foram descomissionadas no ano passado, marcando o fim da era atômica alemã.

Não foi, contudo, uma decisão consensual. Quem quis o encerramento das usinas apontou riscos de novos acidentes e a gestão de resíduos radioativos. Os contrários ao fechamento argumentaram que as energias eólica e solar não são confiáveis o bastante para substituírem por completo as fontes fósseis.

"Pesquisas já mostram que os alemães apoiam a energia atômica, mas o governo não mudou de posição", disse Gross. Entre a população, 67% querem que as usinas voltem a funcionar, segundo pesquisa do instituto alemão Forsa.

Mas ainda falta verba. "Hoje, é preciso o Estado. Não é qualquer um que pode fazer investir R$ 20 bilhões", disse.

Com reportagem de Giuliana Miranda e Igor Gielow

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