Renegociação da dívida dos estados pode tirar até R$ 44 bi por ano da União

Projeto em tramitação no Congresso reduz juros e correção monetária sobre os débitos, que somavam R$ 744,2 bilhões no fim de 2023

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Brasília

A renegociação da dívida dos estados aprovada pelo Senado Federal pode tirar até R$ 44 bilhões por ano da União. A perda não afeta as regras do arcabouço fiscal, nem o cumprimento das metas de resultado primário, mas pode impulsionar a dívida pública do país.

Os cálculos foram feitos pela Folha a partir de dados do Tesouro Nacional sobre o saldo devedor dos estados no fim de 2023 (R$ 744,2 bilhões). Os valores simulam o impacto potencial do projeto caso as novas regras aprovadas pelos senadores já estivessem em vigor neste ano e fossem adotadas por todas as unidades da federação.

O texto ainda precisa passar pelo crivo da Câmara dos Deputados. Se for aprovado, as novas condições entram em vigor a partir de 2025 e dependem da adesão de cada estado. Ainda assim, os números ilustram a ordem de grandeza dos valores envolvidos.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em reunião em abril

Até agora, o Tesouro Nacional não divulgou nenhuma estimativa oficial sobre os impactos da proposta. Procurado, o órgão não respondeu aos questionamentos da reportagem.

O projeto promove duas mudanças significativas nos encargos da dívida dos estados. A primeira delas é a possibilidade de reduzir os juros reais de 4% para 0% ao ano, mediante entrega de ativos ou compromisso com investimentos em áreas específicas.

A segunda é a simplificação do coeficiente de atualização monetária da dívida, que hoje segue uma fórmula complexa e resulta em uma correção ao redor de 6,5% ao ano, acima da inflação. O texto substitui essa variável pelo IPCA, que deve ficar em 4,22% em 2024, segundo o Boletim Focus, do Banco Central.

O diferencial de 2,3 pontos percentuais vai garantir um alívio adicional aos estados, para além da redução de até 4 pontos nos juros —fator que ganhou maior visibilidade durante as discussões do texto.

Isso significa que o custo da dívida com a União, hoje algo entre 10% a 11% ao ano (próximo à Selic), pode cair a cerca de 4% ao ano (conforme o IPCA). Sob as regras atuais, a tendência seria uma convergência gradual, ao longo de cinco ou seis anos, para um encargo próximo a 8% ao ano (IPCA mais 4%).

O impacto imediato no fluxo de receitas financeiras do Tesouro Nacional será menor que os R$ 44 bilhões porque alguns estados beneficiados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, já não estão pagando suas dívidas com a União.

Mesmo assim, eles poderiam ser cobrados no futuro pelos encargos acumulados. Aliviar esse custo representa uma perda de ativos financeiros para a União.

Por outro lado, o projeto contempla estados que estão em dia com suas obrigações, como São Paulo, que deixaria, sozinho, de pagar até R$ 17,8 bilhões. Para os demais estados, o alívio seria de R$ 4,77 bilhões.

A perda de até R$ 22,6 bilhões em receitas financeiras pode piorar o cenário para a chamada regra de ouro, que impede a emissão de dívida para bancar despesas como salários e benefícios sociais. Um desequilíbrio ainda maior nessa regra torna o governo mais dependente do Congresso Nacional para resolver o problema.

ALERTA PARA ENDIVIDAMENTO

Pessoas que participaram das negociações no Senado afirmam que o foco central do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi construir soluções que não tivessem impacto na meta fiscal, que é de déficit zero em 2024. Sob esse argumento, a equipe econômica topou repactuar as condições futuras e abriu caminho para a troca dos indexadores.

Entre técnicos do governo, há a preocupação de que as flexibilizações feitas no texto não tenham sido devidamente ponderadas pelo Executivo. O temor é que a fatura tenha impacto significativo.

O economista Ítalo Franca, do Santander, afirma que o projeto aprovado pelo Senado acende um sinal amarelo para a trajetória de endividamento do país.

Ele calcula um aumento de 2 a 3 pontos percentuais na dívida bruta do governo geral em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) até 2030. Em junho, esse indicador já estava em 77,8% do PIB, patamar considerado elevado para países emergentes como o Brasil.

Para os estados, o alívio nos encargos pode criar condições propícias à deterioração das contas no futuro. Segundo Franca, o risco é os governadores preencherem o espaço com despesas obrigatórias e, depois, ficarem sem receitas suficientes para cobri-las em eventual cenário de desaceleração da atividade ou queda nas receitas com royalties —como ocorreu logo antes da crise dos estados que eclodiu em 2016.

O próprio projeto flexibilizou as regras de limitação de gastos e abriu caminho para elevação de despesas em 2024. Além disso, o Ministério da Fazenda exigiu que 60% dos recursos poupados com a redução de juros fossem carimbados para o ensino médio profissionalizante.

"Você cria incentivos para ter um aumento de gastos, e muitas vezes eles viram gastos permanentes", alerta o economista do Santander.

Os estados que aderirem ao chamado Propag (Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados) ainda terão de fazer contribuições de até 2% do saldo da dívida para o chamado Fundo de Equalização Federativa, que vai redistribuir os recursos e priorizar quem tem menor dívida e renda per capita. Os maiores beneficiados, segundo os critérios fixados pelo Senado, devem ser Bahia, Pará e Maranhão.

Ainda assim, São Paulo tende a ter um ganho líquido entre R$ 12,4 bilhões e R$ 13,8 bilhões no primeiro ano, segundo as simulações feitas pela Folha.

Para Rio de Janeiro e Minas Gerais, o ganho líquido fica entre R$ 7 bilhões e R$ 8 bilhões. Já o Rio Grande do Sul teria um alívio inferior a R$ 1 bilhão, dado que sua dívida já está com o juro real zerado devido à tragédia das enchentes, em maio.

A decisão de adesão ainda é avaliada com cautela por esses três estados. Sob a proteção do RRF (Regime de Recuperação Fiscal), eles também suspenderam o pagamento das dívidas contraídas com outras instituições com aval do Tesouro Nacional. Neste caso, o governo federal honra a parcela, mediante ressarcimento no futuro.

Ao migrar do RRF para o Propag, esses estados teriam de retomar o pagamento integral aos bancos. A avaliação preliminar é que a soma de todas as obrigações (dívida com instituições, repasse ao fundo de equalização e investimentos específicos) pode surtir efeito contrário ao alívio esperado.

Representantes desses três estados vão atuar na Câmara para manterem a retomada gradual do pagamento das dívidas garantidas pela União.

Outra possibilidade é garantir que a União aceite a entrega de ativos para abater as dívidas desses estados. O Rio de Janeiro, por exemplo, calcula ter quase R$ 30 bilhões para ceder em ganhos futuros com o FNDR (Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional), criado pela reforma tributária para viabilizar incentivos fiscais regionais.

O projeto autorizou a antecipação desses ativos para quitar parte do estoque da dívida, mas técnicos têm dúvidas se o dispositivo é constitucional. A reforma tributária previu o uso dos recursos para investimentos. O argumento dos estados endividados, por sua vez, é que as dívidas foram contraídas para realizar investimentos alinhados ao FNDR.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.