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Em cartas privadas, Bento 16 reprova críticos do papa Francisco

Segundo papa emérito, crise atual afeta todo o pontificado

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Roma | The New York Times

A carta notável publicada no mês passado pedindo que o papa Francisco renunciasse por supostamente proteger um cardeal americano abusador também serviu como chamado público às armas para alguns católicos conservadores que lamentam o fim do pontificado do papa anterior, Bento 16. Há anos eles empunham seu nome como um estandarte de batalha nas trincheiras ideológicas.

Bento, ao que parece, gostaria que eles desistissem.

Em cartas privadas publicadas na quinta-feira (20) pelo jornal alemão Bild, Bento, que na aposentadoria permaneceu estudadamente silencioso ao longo das controvérsias sobre a capacidade de Francisco de liderar a Igreja Católica, diz que a "ira" manifestada por alguns de seus defensores mais firmes corre o risco de manchar seu próprio pontificado.

"Posso compreender a dor profunda que o fim de meu pontificado causou em vocês e em muitos outros. Mas para alguns —e parece-me que para vocês também—  a dor se transformou em ira, o que não afeta mais apenas a abdicação, mas minha pessoa e a integridade de meu pontificado", escreveu Bento em uma carta de 23 de novembro de 2017 ao cardeal alemão Walter Brandmüller.

"Desta maneira, o pontificado em si está sendo desvalorizado e confundido com a tristeza sobre a situação da igreja hoje."

Pedidos feitos a representantes de Bento e Brandmüller por comentários e autenticação não foram respondidos no início da quinta-feira. O Bild forneceu as cartas na íntegra ao The New York Times.

Brandmüller foi um dos poucos cardeais que assinaram em 2016 uma carta de "dubia" (latim para "dúvida"), pedindo esclarecimentos de Francisco sobre sua aparente disposição a abrir a porta aos católicos divorciados e recasados para que recebessem a comunhão, o que os signatários afirmam ser contra a lei da igreja.

A carta de "dubia" recebeu atenção mundial e serviu como declaração de independência de fato de Francisco, e seus signatários, primeiro entre eles o cardeal americano Raymond Burke, apoiaram com entusiasmo a carta do arcebispo Carlo Maria Viganò, pedindo a renúncia de Francisco.

Viganò afirmou que Bento impôs sanções ao cardeal Theodore McCarrick, ex-arcebispo de Washington, por má conduta sexual, mas que Francisco suspendeu essas penas. Os defensores de Francisco dizem que não há evidências de que foram impostas sanções a McCarrick, que renunciou em julho, e apontam amplas evidências de que ele não se comportou como se estivesse sob tais limitações. Nem o atual papa nem seu antecessor comentaram.

Parte da motivação de Viganò ao publicar sua carta foi ir em socorro de Bento, que se sentiu injustamente acusado por jornalistas italianos amigos de Francisco, segundo Marco Tosatti, o jornalista italiano que ajudou o arcebispo a redigir a carta.

Durante anos, os cardeais dissidentes e seus seguidores tentaram alinhar sua causa a Bento, que prometeu continuar "escondido do mundo" depois de sua renúncia em 2013, que ele atribuiu à saúde precária e falta de energia. Francisco, 81, fez visitas amistosas a Bento, 91, cujas fotos de batinas brancas dão uma impressão de total descontração.

Mas Bento, o primeiro papa a renunciar em quase 600 anos, se recusou a renunciar totalmente ao papado, assumindo o título de "papa emérito" e continuando a morar no Vaticano.

"O 'sempre' é também um 'para sempre' —não pode mais haver um retorno à esfera privada. Minha decisão de renunciar ao exercício ativo do ministério não revoga isso", disse Bento durante sua última audiência geral.

Para muitos apoiadores de Francisco, a posição de Bento projeta uma sombra indesejável sobre Francisco e dá licença e conforto a seus inimigos, embora o ex-papa tenha mantido um perfil muito discreto. Defensores de Bento dizem que ele, vivendo longe do olhar do público atrás das paredes do Vaticano, está na verdade evitando a criação de um poder central rival.

Mas em particular até os maiores defensores de Bento manifestam frustração com ele por sair e permitir a eleição de Francisco, um pontífice mais pastoral e menos doutrinário que, segundo eles, está arruinando a igreja.

Seus aliados culpam Bento por não lutar e atirar a toalha diante da crescente pressão interna no Vaticano, especialmente depois que recebeu um dossiê de 300 páginas de três cardeais que, segundo muitos no Vaticano, dá detalhes sobre um extenso lobby gay na igreja.

Em uma entrevista em outubro do ano passado ao jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung, Brandmüller manifestou essa frustração publicamente.

"A figura do 'papa emérito' não existe em toda a história da igreja", disse ele. "O fato de que um papa derrubar uma tradição de dois mil anos pegou de surpresa não apenas a nós, cardeais."

Ele disse que teve um jantar interessante para comemorar um feriado de carnaval no dia da aposentadoria do papa em 2013. "Estávamos tomando um aperitivo e esperando um convidado, quando um jornalista telefonou perguntando: 'Vocês ouviram a notícia?' Pensei que fosse uma piada de carnaval."

Bento, que é moderado mas também pode ser veemente, não se divertiu. Ele escreveu em sua carta a Brandmüller que "dessa confusão está sendo gerada gradualmente uma nova agitação", que segundo ele poderia inspirar mais livros como "A Abdicação", de Fabrizio Grasso, que afirma que ter um ou mais papas eméritos poderia fragmentar a autoridade papal.

(Em seu livro, Grasso escreveu: "Mesmo para os que têm pouca imaginação, não é difícil imaginar um possível futuro próximo com mais de um papa emérito e, consequentemente, um exclusivo clube papal, que não poderia ser outro que não um protoparlamento do Estado do Vaticano".)

Bento escreveu: "Tudo isso me enche de preocupação, e foi precisamente por isso que o fim de sua entrevista tanto me perturbou, porque em última instância promoveria o mesmo clima".

A carta foi sua segunda na correspondência com Brandmüller. A primeira, datada de 9 de novembro de 2017, era ainda mais áspera, como uma reação imediata à entrevista do cardeal alemão ao jornal.

"Eminência!", começou ele. "O senhor disse que com 'papa emérito' eu criei uma figura que não existia em toda a história da igreja. O senhor sabe muito bem, é claro, que papas já abdicaram, embora raramente. O que foram eles depois? Papa emérito? Ou o quê?"

Ele citou o caso de Pio 12, que, temendo a captura pelos nazistas, preparou uma renúncia para esse caso.

"Como o senhor sabe, Pio 12 preparou uma declaração para o caso de os nazistas o prenderem, de que a partir do momento da prisão ele não seria mais papa, mas novamente cardeal", escreveu Bento.

"No meu caso certamente não teria sido sensato reivindicar um retorno ao posto de cardeal. Eu estaria então constantemente exposto à mídia, como é um cardeal —ainda mais porque as pessoas veriam em mim o ex-papa."

Ele acrescentou: "Seja de propósito ou não, isso poderia ter tido difíceis consequências, especialmente no contexto da situação atual".

Não está claro o que Bento quis dizer com "situação atual", mas alguns o interpretaram como a decepção de muitos de seus seguidores sobre Francisco. Bento parecia estar dizendo que como ex-papa ele estava protegido dessa política.

"Com 'papa emérito' eu tentei criar uma situação em que estou absolutamente inacessível à mídia e em que está completamente claro que só há um papa", escreveu ele. "Se o senhor conhece um meio melhor, e acredito que o senhor pode julgar o que escolhi, por favor me diga."

Depois que Brandmüller aparentemente pediu perdão a Bento e explicou quanta dor sua renúncia havia causado a ele e aos conservadores de mentalidade semelhante, o papa emérito escreveu a segunda carta.

Ele concluiu-a dizendo: "Oremos, como o senhor fez no final de sua carta, para que o Senhor venha em ajuda desta igreja. Com minha bênção apostólica, Bento 16".

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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