Em crise com Biden, Arábia Saudita negocia comprar armas da Rússia

Moscou pode fornecer caças e sistemas antiaéreos para o reino, cliente usual dos EUA

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

A Rostec, estatal russa que congrega diversas indústrias de defesa, anunciou que está negociando o fornecimento de armamentos avançados para a Arábia Saudita.

A revelação da empresa, feita na quarta (24) ao canal RT pelo seu presidente, o poderoso Serguei Tchemezov, ocorre no momento em que os Estados Unidos colocam pressão sobre o regime em Riad, ameaçando inclusive suspender vendas de armas para o aliado no Golfo Pérsico.

Um Sukhoi Su-35 russo durante apresentação num show aéreo em Guangdong, na China
Um Sukhoi Su-35 russo durante apresentação num show aéreo em Guangdong, na China - Johannes Eisele - 10.nov.2014/AFP

Na semana passada, o novo presidente americano, Joe Biden, esnobou o governante de fato do reino petrolífero, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, conhecido como MbS. Disse que falaria ao telefone com com seu pai, o rei Salman.

Foi um previsível tapa na cara de MbS, a quem Biden acusa ter dado o status de "pária" para a Arábia Saudita. Sob seu comando, o país conduz uma brutal intervenção na guerra civil do Iêmen e um jornalista crítico do regime foi esquartejado na Turquia.

Na conversa com o rei, nesta quinta (25), foi deixado implícito o desconforto de Biden com o assassinato de Jamal Khashoggi, em 2018. Os serviços de inteligência americanos acusam MbS como mentor do crime, e um relatório secreto sobre o caso foi revelado por Biden nesta sexta (26).

Ao mesmo tempo, o americano faz aberturas para tentar negociar a volta dos EUA ao acordo nuclear para manter o Irã, inimigo mortal dos sauditas, sem a bomba atômica. Até aqui, o movimento de Riad era o de formar uma frente ampla para enfrentar Teerã.

O antecessor de Biden, Donald Trump, não tinha esses pudores. Assinou uma carta de intenções para fornecer mais US$ 110 bilhões (R$ 594 bilhões) em armas para o reino em 2017.

Uma das primeiras medidas do democrata, em janeiro, foi suspender alguns desses contratos, incluindo a venda de 7.500 bombas inteligentes por US$ 500 milhões (R$ 2,7 bilhões).

Entra então Vladimir Putin, o presidente russo que em duas décadas de poder se especializou em ocupar vácuos deixados pelo Ocidente para elevar seu cacife como ator global.

Desde 2017, o russo vem se aproximando dos sauditas, apesar de estremecimentos como durante a guerra de preços do petróleo de 2020. Ele e o rei Salman assinaram protocolos de cooperação técnico-militar, mas até aqui isso não gerou nenhum negócio de maior relevo.

Agora, Tchemezov diz que a Rússia pode fornecer caças Sukhoi Su-35 e sistemas antiaéreos S-400, duas estrelas do portfólio militar de Moscou. "O processo de negociação está em andamento", disse.

Como ninguém desmentiu, nem nos bastidores, do outro lado, é possível que esteja mesmo. A ideia de vender o S-400 já havia sido aventada por Putin ao sauditas quando rebeldes xiitas do Iêmen atacaram refinarias de petróleo do reino em setembro de 2019.

O sistema é o mais avançado no mercado mundial hoje. Sua venda para a Turquia, um aliado nominal dos EUA e membro da Otan (liga das potências ocidentais), gerou uma crise entre Ancara e Washington ainda inconclusa.

O temor dos EUA era de que a tecnologia de voo furtivo de seu mais avançado caça, o F-35, fosse escrutinada pelos sensores do S-400, já que a Turquia seria equipada com a aeronave. Resultado: a venda foi cancelada e os turcos, retirados do consórcio internacional que fabrica parte do avião.

No caso saudita, isso não está em questão, mas há um ponto simbólico importante. Por décadas, Riad foi o maior aliado dos americanos entre os países árabes sunitas, que veem no reino a ponta de lança contra a expansão de seu rival Irã no Oriente Médio.

Com seus petrodólares abundantes, a Arábia Saudita virou uma grande consumidora de armamento americano e ocidental. Tem a terceira maior frota do poderoso caça-bombadeiro F-15 no mundo, atrás de EUA e Japão, e também modelos europeus como o Eurofighter Typhoon e o Panavia Tornado.

Em 2019, operou o terceiro maior orçamento militar do mundo, caindo para o nono lugar em 2020, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos —efeito colateral da queda brutal nos preços do petróleo durante a pandemia.

Assim, se conseguir encaixar o S-400 nas areias sauditas e ainda ver voar por lá o Su-35, a versão mais avançada da clássica família de caças pesados conhecidos como Flanker pela Otan, Putin marcará um gol geopolítico duplo.

O Su-35 já é operado na região pelo Egito, que encomendou 24 aviões.

Penetrará um mercado rico e fechado aos russos, além de fortalecer sua posição de mediador regional, dado que trabalha em forte cooperação com Teerã em questões como a guerra civil na Síria.

Há também a possibilidade de os sauditas terem dado a sinalização para os russos sobre as compras como forma de mandar um recado a Biden: sempre haverá a quem recorrer.

O fato é que o presidente americano pode falar duro com MbS, que foi próximo de Trump, mas ele é praticamente um fato consumado: ungido por seu pai, que está com a saúde debilitada, ele operou expurgos palacianos que o deixaram numa posição quase despótica —isso numa monarquia absolutista que sempre trabalhou com vários polos internos de poder.

Enquanto Biden se decide, Putin fez o que faz de melhor e correu para buscar vantagem da situação. Ele tem interlocução boa com o Irã, com Israel, dá as cartas na Síria, trabalha uma relação tensa com a Turquia e está próximo dos sauditas.

Ele também designou um aliado, o presidente da república russa muçulmana da Tchetchênia, Ramzan Kadirov, como seu ponto de ligação com as monarquias menores do Golfo, Emirados Árabes Unidos à frente.

Quando uma guerra regional estourar, e lá elas são uma certeza, Putin poderá ser o único ator externo nessa posição.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.