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Realismo geopolítico fala mais alto na relação entre EUA e Arábia Saudita

Apesar de prometer foco em direitos humanos, Biden não pune príncipe saudita por assassinato de jornalista

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São Paulo

Durante a campanha eleitoral, o então candidato Joe Biden prometeu linha dura com o governo da Arábia Saudita, que era queridinho do então presidente Donald Trump. Em um governo Biden, disse o democrata, os sauditas envolvidos no assassinato e esquartejamento do jornalista saudita Jamal Khashoggi dentro do consulado saudita em Istambul, em 2018, iriam “pagar por isso”, e os EUA fariam deles “os párias que realmente são”.

Na sexta-feira (26), a CIA divulgou um relatório que responsabiliza pessoalmente o príncipe Mohammed bin Salman, conhecido pela sigla MbS, por ter ordenado o assassinato de Khashoggi. E o que aconteceu? O Departamento do Tesouro impôs sanções contra o antigo vice-chefe da inteligência saudita, Ahmed al-Asiri, e contra a Força de Intervenção Rápida da monarquia saudita, que se reportava diretamente ao príncipe e “cuidava” de dissidentes. Além disso, vetaram vistos para 76 pessoas que sequestravam jornalistas e dissidentes no exterior e os levavam para serem presos em solo saudita. Já MbS saiu incólume e, se quiser, pode até passar as férias na Disney.

O príncipe saudita, Mohammed bin Salman, participa de evento em Riad
O príncipe saudita, Mohammed bin Salman, participa de evento em Riad - Bandar al-Jaloud - 27.fev.21/AFP

Frente à promessa de Biden de fazer uma reviravolta na política externa americana, tornando os direitos humanos uma prioridade, as imposições da realpolitik falaram mais alto.

"Achamos que existem maneiras mais eficientes de garantir que isso [assassinato de Khashoggi] não aconteça novamente, enquanto mantemos espaço para trabalhar em conjunto com os sauditas em áreas em que há entendimento mútuo, e há interesses nacionais para os EUA. Isso é diplomacia”, disse a secretária de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, no domingo (28), após intensa pressão de legisladores democratas e ativistas para uma ação mais enérgica contra MbS.

O governo Biden criou expectativas ao dizer que haveria mais anúncios sobre o caso na segunda-feira (1º). No entanto, um porta-voz do Departamento de Estado limitou-se a afirmar que o governo americano está “focado no comportamento futuro” da Arábia Saudita e simplesmente instou Riad a melhorar sua atuação em direitos humanos e acabar com a “força de elite” que matou Khashoggi.

O presidente Joe Biden faz uma aposta arriscada: quer limpar sua barra com o público doméstico, que exige atitudes contra MbS, sem implodir o relacionamento com o príncipe saudita, que é quem realmente manda na monarquia do Golfo.

Em diplomatiquês, a Casa Branca afirma que o objetivo seria recalibrar a relação com a Arábia Saudita, mas sem causar uma ruptura.

Parte da recalibragem seria a decisão do governo Biden de vetar vendas de armas para ações de ataque dos sauditas na guerra do Iêmen. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes mataram milhares de civis usando armamentos vendidos pelos americanos, na tentativa de derrubar os rebeldes houthis, financiados pelo Irã, o arqui-inimigo de Riad. Biden também cancelou vendas que haviam sido autorizadas por Trump. Mas deixou claro que continuaria a vender armamentos para que a Arábia Saudita possa se defender do Irã e dos aliados do país xiita.

Em sua primeira ligação para o governo saudita, Biden falou com o rei Salman, e o governo afirmou que o monarca é que seria interlocutor do presidente americano, e não MbS. Trump oferecia a MbS uma linha direta com a Casa Branca, via seu genro, Jared Kushner. Além disso, o democrata designou um diplomata como enviado especial para a guerra do Iêmen, para tentar por fim ao conflito que se arrasta desde 2015 e já matou 230 mil pessoas.

Entidades de direitos humanos, jornalistas, legisladores democratas e até John Brennan, ex-diretor da CIA no governo Obama, criticaram duramente a decisão de Biden de não impor sanções contra MbS.

“Dizer que o príncipe herdeiro MbS foi o responsável pelo horrendo assassinato de Jamal Khashoggi não é suficiente para responsabilizá-lo. O governo Biden precisa fazer muito mais. Para começar, vetar encontros com autoridades americanas e visitas aos EUA”, escreveu Brennan no Twitter.

Em artigo nesta segunda-feira, Fred Ryan, publisher do Washington Post, que era empregador de Khashoggi, disse que Biden havia dado um “passe livre para um assassinato”.

Os EUA já sancionaram chefes de Estado ou governo antes: Nicolás Maduro, ditador da Venezuela; Kim Jong-un, ditador da Coreia do Norte, e Bashar al-Assad, da Síria. Mas nenhum desses países tem o poder de estabilizar —ou mergulhar no caos— o mercado de petróleo mundial. Por mais que o aumento de produção nos EUA tenha reduzido, e muito, a dependência do reino, a Arábia Saudita ainda tem o poder de reduzir significativamente sua produção, algo que a maioria dos outros produtores não tem.

Além disso, impor sanções contra MbS é, na realidade, cortar relações com o reino saudita por um longo período. O rei Salman tem 85 anos e a saúde frágil. O príncipe de 35 anos é quem governa de facto e deve se manter no poder por muitos anos.

O democrata quer preservar alguma boa vontade dos sauditas. Biden precisa do apoio da Arábia Saudita em operações antiterrorismo e para gerenciar o equilíbrio no Oriente Médio. E ele já vai gerar insatisfação no reino do Golfo ao tentar ressuscitar o acordo nuclear com o Irã, sabotado por Trump. O governo saudita é forte opositor do acordo, desde que foi instituído, no governo Obama. Além disso, o rei Salman vem intensificando os laços com a Rússia e a China, os inimigos estratégicos dos EUA.

Trump justificava a insistência em vender armas para os sauditas, mesmo após oposição do Congresso, como uma questão econômica. De fato, o intercâmbio comercial entre os dois países é significativo —foi de US$ 38 bilhões em 2019 (R$ 214 bi, nesta segunda), e os sauditas são grandes compradores de armamentos.

Mas esse é apenas um pedaço da história. A aliança estratégica entre os EUA e a Arábia Saudita vem de longe, foi firmada 76 anos atrás, entre o presidente Franklin Delano Roosevelt e o avô de MbS, rei Abdulaziz. Os EUA garantiriam acesso ao petróleo saudita, e, em troca, protegeriam a Arábia Saudita de ameaças estrangeiras, como o Irã.

Desde sempre, eram países muito diferentes: uma democracia que, pelo menos no papel, é comprometida com direitos humanos e liberdade de expressão, e uma monarquia absolutista que reprime dissidentes e opositores. Ao longo da história, muitas vezes, os EUA tiveram de fechar os olhos para violações de direitos humanos, quando a geopolítica era mais importante. Aparentemente, é isso que vai acontecer, de novo.

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