Descrição de chapéu terrorismo 11 de setembro

Radicalização sobrevive no 'Bruxelistão', berço de terroristas na Europa

Fundamentalismo é global, está enraizado e prevenção é única solução viável, dizem especialistas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Bruxelas

Fadila Maaroufi tinha 39 anos quando a “grande noite negra” desceu sobre a cidade em que ela nasceu e foi criada. Foi depois daquela sexta-feira-13 (de novembro de 2015), na qual 130 morreram e 500 foram feridos num ataque terrorista em Paris, que os olhos do mundo se fixaram em Bruxelas.

Da capital belga haviam saído ao menos 4 dos 11 homens com fuzis e cintos explosivos que provocaram a tragédia na capital francesa. Entre eles está o único terrorista sobrevivente, Salah Abdeslam, que na abertura de seu julgamento, na quarta (8), declarou-se um "soldado de Alá” quando perguntaram qual era a sua profissão.

A Bruxelas em que Maaroufi nasceu e cresceu foi cenário dessa trama, mas investigações indicam que já estava conectada a ataques na Europa e fora dela, até mesmo ao atentado contra as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001.

Três policiais de roupa camuflada escalam parece de um prédio de três andares
Tropas especiais belgas se preparam para invadir casa na comuna de Molenbeek, em Bruxelas, de onde saíram terroristas que mataram 130 pessoas em três atendados em Paris em 13 de novembro de 2015 - 16.nov.15/Dirk/AFP

Naquele ano, teriam saído da comuna os assassinos do rebelde anti-Talibã Ahmed Shah Massoud, morto supostamente a mando de Osama bin Laden, então líder da Al Qaeda. Também de lá era um dos terroristas que explodiram bombas em quatro trens de Madri, matando 191 pessoas em 2004.

O termo “Bruxelistão”, usado para designar bolsões de radicalização islâmica na capital belga, surgiu a partir de 2016, quando as pistas de ataques na França e na Bélgica começaram a apontar para a cidade —mais precisamente para Molenbeek, uma das 3 comunas, entre o total de 19, que concentram 80% dos 250 mil muçulmanos de Bruxelas.

Mas a islamização da cidade vem de muito antes, relata o antropólogo e sociólogo Felice Dasseto, professor emérito da Universidade Católica de Louvain e fundador do Observatório Social Europeu.

Nos anos 1980 e 1990, na Bélgica e em outros países europeus, “desenvolveu-se um entusiasmo religioso que encontrou sua expressão na construção de mesquitas e na exacerbação de um islã normativo, que regula o que é halal [lícito] e se baseia em normas de comportamento e devocionismo”, escreve.

Propagou-se um tipo de islamismo que, se não era em si radical, "preparou o terreno no qual o radicalismo se enraizou". Enraizou-se, vingou e deu frutos, a julgar pelos números da década passada.

Quando a polícia belga passou a bater de porta em porta no “cinturão islâmico” de Bruxelas, atrás de envolvidos nos ataques de 2015 e 2016, 22.668 inquéritos foram abertos. Cerca de 1.600 organizações foram investigadas e mais de 150, consideradas ligadas ao terrorismo, além de 72 indivíduos.

De volta da guerra síria

O fundamentalismo, porém, é um fenômeno global; não deve ser circunscrito a um país, menos ainda a uma comuna. A partir de 2016, governos de vários membros da UE criaram dezenas de “programas de desradicalização” voltados principalmente para o que era considerado então o maior perigo à segurança europeia: cidadãos que voltavam a seus países de origem após combater ao lado do Estado Islâmico, na Síria ou no Iraque.

O alvo estava errado, dizem especialistas em antiterrorismo e extremismo. Passados mais de cinco anos, a radicalização sobrevive em várias cidades europeias, infiltrada no cotidiano e nas instituições, principalmente de comunidades de imigrantes muçulmanos.

“A ideologia islâmica continua a produzir jihadistas [na França e na Béglica, islâmico é um termo usado para os fundamentalistas, não para todos os seguidores do islamismo]", diz Maaroufi, que aponta a Bélgica como um dos países que ainda hoje mais produzem ativistas radicalizados.

"Os fundamentalistas investem em todas as esferas da sociedade —escola, universidade, política, prisão, polícia, associações— para impor um novo modelo de sociedade, totalitário."

De uma família berbere marroquina na Bélgica há três gerações, Maaroufi nasceu em Anderlecht, uma das comunas do "cinturão islâmico" de Bruxelas, e desde pequena experimentou "de dentro" o radicalismo religioso. "Ouvi a pregação de imãs desviados, os discursos obscurantistas nas famílias”, diz a educadora, que há um ano e meio criou o Observatório de Fundamentalismos, uma entidade que articula estudos, pesquisas e ações contra a radicalização e a violência.

“Não pude mais ficar em silêncio porque vi o impacto que isso teve na sociedade em que vivo, as consequências destrutivas do radicalismo em minha família e na minha vizinhança.”

O impulso não foi apenas da realidade privada, mas do que viu nas prisões em que trabalhou como assistente social —onde, entre outros jihadistas, conversou com um dos réus do ataque em Paris. “Vejo a tremenda pressão que os presos muçulmanos sofrem não apenas de outros prisioneiros radicalizados, mas também de imãs fundamentalistas que têm entrada autorizada em todas as prisões”, diz Maaroufi.

Nem desradicalização, nem desengajamento; prevenção

Fadila argumenta que a prevenção é fundamental, porque, depois de doutrinada, é muito difícil que uma pessoa se desradicalize. Especialistas que já trabalharam em divisões de combate ao terrorismo na França e na Bélgica concordam com ela. Além disso, é muito difícil medir a eficácia dos programas com rigor científico, argumenta o islamologista Alain Grignard, professor da Universidade de Liège, na Bélgica.

“A pessoa está realmente desradicalizada ou está fingindo? Em quanto tempo é possível dizer que não representa mais perigo? Há risco de ‘recaída’? E, mesmo que tenha mudado, essa mudança é devido às nossas ações ou a um processo pessoal?”, elenca ele, entre outros pontos que impedem uma avaliação confiável.

Quando os programas de desradicalização se mostraram inócuos, vários governos mudaram o foco para “desengajamento”, segundo Claude Moniquet, ex-agente de inteligência francês que dirige o Centro Europeu de Inteligência Estratégica e Segurança. É o equivalente a dizer “não estamos interessados ​​em suas ideias, mas ​​em que você não cometa atos violentos”, afirma.

O problema do desengajamento, diz Moniquet, é que também aqui a dissimulação é uma manobra fácil. Outro complicador para medir o impacto das ações é que elas são personalizadas, argumenta Annelis Pauwels, que atua no Vlaams Vredesinstituut (Instituto para a Paz, centro independente de pesquisa do Parlamento Flamengo).

Os números de atentados jihadistas na União Europeia até mostram um refluxo após o pico de 2017, mas isso não pode ser atribuído aos programas governamentais, segundo Grignard, que atuou na divisão antiterrorismo da Polícia Judiciária Federal belga.

A redução, segundo ele, ocorreu porque grupos como Al Qaeda e Estado Islâmico ficaram sem suas bases de retaguarda no Afeganistão e na Síria e no Iraque, respectivamente. “As causas que alimentam o islamismo radical ainda existem, mas os jihadistas não têm mais acesso aos recursos humanos e infraestrutura para grandes ações", afirma o professor belga.

Risco de atentados se diversificou

Pauwels reforça esse argumento: “De acordo com os serviços de segurança belgas, o risco de ataques jihadistas diversificou-se. Em vez de redes organizadas, hoje há jihadistas conectados por meio de redes soltas ou agindo sozinhos”.

A ameaça de terroristas não vinculados a nenhuma organização ou estrutura real cria dificuldades adicionais para os serviços de segurança, aponta a pesquisadora: “O perigo é mais difuso, e esses indivíduos são menos visíveis para a polícia”.

Relatórios recentes dos serviços de segurança do Estado mencionam várias vertentes do extremismo islâmico na Bélgica, principalmente o salafismo, mas também movimentos como Irmandade Muçulmana e Milli Görüs, de origem turca.

“Os serviços de segurança alertam que os grupos salafistas são hoje muito ativos nas redes sociais. Estão particularmente presentes em torno do tema ‘aprender o islã’, o que significa que, se um jovem pesquisar esse tema na internet, serão grandes as chances de que acesse um site salafista”, diz a pesquisadora.

Moniquet afirma ainda que a luta contra o jihadismo na Europa é impossível sem o apoio das comunidades muçulmanas. Mais do que isso, opina Felice Dasseto, da Universidade Católica de Louvain, é necessário que surja “uma liderança muçulmana madura e corajosa, capaz de argumentar e contra-argumentar não apenas com as formas radicais de discurso, mas também em relação ao pensamento muçulmano de forma geral, para propor outra forma de viver a fé”.


RELEMBRE ATENTADOS TERRORISTAS NA EUROPA DESDE 2001

Madri, 11.mar.04 - 191 mortos

Terroristas da Al Qaeda explodiram 11 mochilas com bombas em quatro trens, na mais grave ação extremista na Europa desde o atentado em Lockerbie, em 1988. Mais de 1.700 ficaram feridos

Londres, 7.jul.05 - 52 mortos

Ataques da Al Qaeda contra três estações de metrô e um ônibus londrinos mataram 52 pessoas e feriram outras 700

Bruxelas, 24.mai.14 - 4 mortos

Mehdi Nemmouche, simpatizante do Estado Islâmico que havia combatido na Síria, abriu fogo dentro do Museu Judaico da Bélgica, matando quatro pessoas

Copenhague 14.fev.15 - 2 mortos

Um dinamarquês de origem palestina simpatizante do Estado Islâmico abriu fogo num centro cultural de Copenhaga e matou uma pessoa. Mais tarde, fugindo da polícia, matou mais um em frente a uma sinagoga

Paris, 7.jan.15 - 12 mortos

Dois integrantes da Al Qaeda mataram 12 pessoas e feriram outras 11 na Redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo. O grupo terrorista assumiu a autoria

Paris, 9.jan.15 - 5 mortos

Um jihadista fez reféns em um supermercado kosher em Paris, deixando quatro mortos; na fuga, matou uma policial em tiroteio

Amsterdã-Paris 21.ago.2015 - sem mortos

Um jihadista que embarcou na Bélgica abriu fogo em um trem que ia de Amsterdã a Paris, deixando quatro feridos

Paris, 13.nov.15 - 130 mortos

Ataques simultâneos com homens-bomba no Stade de France e pessoas fuziladas em restaurantes e na casa de shows Bataclán. Autores eram ligados ao Estado Islâmico (EI)

Bruxelas, 22.mar.16 - 31 mortos

Explosões no aeroporto nacional e em uma estação de trem próxima à sede da UE foram reivindicadas pelo EI. Mais de 300 ficaram feridos

Munique, 10.mai.16 - 1 morto

Um homem esfaqueou 5 pessoas em uma estação de trem enquanto gritava "Alá é grande" em árabe. A polícia afirmou que o homem não possuía ligações com redes terroristas

Munique, 22.jul.16 - 9 mortos

Atirador abriu fogo dentro e nas imediações de um shopping em Munique. Após troca de tiros com a polícia, o autor teria se suicidado. Vinte e uma pessoas ficaram feridas. As autoridades não encontraram indícios de que o homem estaria ligado a redes terroristas

Nice, 14.jul.16 - 84 mortos

Estado Islâmico assumiu um ataque em que caminhão invadiu área de pedestres na orla, local onde grande público comemorava a festa da Bastilha, tradicional feriado nacional francês

Saint-Etienne-du-Rouvray, 26.jul.16 - 1 morto

Dois agressores mataram um padre com uma lâmina e feriram gravemente outro refém durante uma missa. Eles declaram lealdade ao EI

Berlim, 19.dez.16 - 12 mortos

Caminhão atingiu uma feira de artigos de Natal e atropelou pedestres. Um dos suspeitos foi preso, e o outro, morto pela polícia; EI alegou autoria

Londres, 22.mar.17 - 3 mortos

Um ano após os atentados de Bruxelas, um carro atropelou duas pessoas na ponte de Westminster. O terrorista do EI também matou um policial

Estocolmo, 7.abr.17 - 4 mortos

Um caminhão roubado invadiu uma rua de pedestres atropelando várias pessoas até bater em uma loja. O autor era simpatizante do EI

Paris, 20.abr.17 - 2 mortos

Três dias antes das eleições presidenciais, um atirador do EI trocou tiros com a polícia na famosa avenida Champs Elysées

Manchester, 22.mai.17 - 22 mortos

Duas bombas atingiram o público jovem que saía do show da artista pop Ariana Grande. O EI reivindicou o atentado, que feriu 59

Londres, 3.jun.17 - 7 mortos

Van atropelou cerca de 20 pessoas sobre a ponte de Londres; homens com facas atacaram pessoas em restaurante próximo. Autores eram ligados ao EI

Londres, 18.jun.17 - 1 morto

Fiéis foram atropelados na saída de uma mesquita; imã protegeu o motorista da multidão furiosa até a chegada da polícia. Não foram encontradas ligações com grupos terroristas

Barcelona, 17.ago.17 - 13 mortos

Por volta das 17h (horário local), uma van atropelou dezenas de pessoas nas Ramblas, zona turística da cidade, matando 13 e deixando cerca de cem feridos

Turku (Finlândia) 8.ago.2017 - 2 mortos

Um homem radicalizado pelo EI matou duas pessoas e feriu outras oito, em Turku, na Finlândia.

Trèbes (França), 23.mar.18 - 3 mortos

A polícia francesa matou um homem de 26 anos que fez reféns e deixou 3 mortos e 16 feridos em um supermercado no sul do país. Ele declarou pertencer ao EI, que reivindicou a autoria

Paris, 12.mai.18 - 1 morto

Uma pessoa morreu esfaqueada e outras quatro ficaram feridas durante um ataque no distrito do Opera, no centro de Paris; o agressor foi morto pela polícia, e o atentado, reivindicado pelo Estado Islâmico

Liège (Bélgica) 29.mai.2018 - 3 mortos

Um ligado ao EI matou dois polícias e um estudante, num ataque em Liège, na Bélgica.

Estrasburgo (França) 11.dez.2017 - 5 mortos

Um adepto do EI atacou a tiros um mercado natalício em Estrasburgo e deixou 5 mortos e 12 feridos

Lyon, 24.mai.19 - sem mortos

O estouro de uma mala abandonada em frente a uma padaria deixou 13 feridos. Um estudante argelino de 24 anos admitiu a ação e disse ser simpatizante do EI

Londres, 29.nov.19 - 2 mortos

Um homem de 28 anos que carregava junto ao corpo explosivos falsos matou duas pessoas a facadas e feriu ao menos três perto da ponte de Londres; ele cumprira pena por atos de terrorismo, estava em liberdade condicional e, segundo a polícia, agiu sozinho

Londres, 2.fev.20 - sem mortos

Sudesh Amman, 20, esfaqueou duas pessoas antes de ser morto pela polícia no sul de Londres. Ele havia sido condenado por posse e distribuição de material terrorista e saíra da prisão havia uma semana

Paris, 25.set.20 - sem mortos

Dois jornalistas foram esfaqueados enquanto faziam uma pausa no trabalho, perto do antigo escritório do jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, alvo de um ataque terrorista em 2015. Dois suspeitos, um paquistanês e um argelino, foram detidos pela unidade antiterrorismo

Paris, 3 out.19 - 3 mortos

Mickaël Harpon, especialista em TI que trabalhava para a polícia de Paris, matou quatro colegas a facadas. A divisão antiterrorista francesa viu falhas em identificar a radicalização do agressor

Paris, 16.out.20 - 1 morto

O professor de história Samuel Paty foi decapitado após mostrar charges de Maomé em aula sobre liberdade de expressão. O agressor, de 18 anos, foi morto pela polícia, que trata o caso como terrorismo

Nice (França), 29.out.20 - 3 mortos

Com uma faca, um tunisiano de 21 anos recém-chegado à Europa entrou pela manhã na basílica de Notre-Dame de Nice e matou três pessoas, entre as quais a brasileira Simone Barreto Silva, de 44 anos

Viena, 2.nov.20 - 4 mortos

Um simpatizante de 20 anos do EI e de origem macedônia que cresceu na Áustria saiu atirando no centro de Viena com um fuzil automático e deixou 4 mortos e 22 feridos. O governo afirmou que ele agiu sozinho

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.