Universidade de Coimbra soube se reinventar para seguir atraente a alunos estrangeiros

Instituição cria curso de direito luso-brasileiro e programa de integração; custo ainda é desafio para alguns estudantes

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Lisboa

Fundada há 731 anos, a Universidade de Coimbra (UC) é uma das mais antigas em atividade no mundo. Referência para brasileiros desde os tempos da colonização portuguesa, a instituição soube se reinventar para continuar atraindo alunos estrangeiros.

A possibilidade de usar a nota do Enem no processo seletivo, os convênios para estágios e intercâmbios em outros países da Europa, além da participação de professores convidados ilustres —como o rapper Emicida, atualmente em uma residência artística na cidade–, têm cativado os estudantes brasileiros.

Não por acaso, Coimbra concentra o maior número de estudantes brasileiros fora do Brasil: são cerca de 2.000 alunos do país matriculados, entre estudantes de graduação e de pós.

Alunos com os tradicionais trajes caminham pelo Pátio das Escolas, prédio mais antigo da Universidade de Coimbra, em Portugal
Alunos com os tradicionais trajes caminham pelo Pátio das Escolas, prédio mais antigo da Universidade de Coimbra, em Portugal - Ticiana Giehl - 29.set.17/Escolha Viajar/Folhapress

A universidade, no entanto, também cativa outros estrangeiros, mesmo os que não falam português. Impulsionada pelos programas de mobilidade acadêmica europeias, a UC tem disciplinas ministradas em inglês. Atualmente, 1 em cada 5 estudantes de Coimbra vem de fora de Portugal —embora os brasileiros formem a maior comunidade, há alunos de 115 nacionalidades.

O ambiente multicultural e fervilhante das ruas da cidade, sempre apinhadas de estudantes, já voltou aos níveis pré-pandemia. Com mais de 87% da população completamente vacinada, o país ibérico praticamente acabou com as restrições sanitárias impostas devido à Covid-19. Assim, atividades culturais e esportivas —e as tradicionais festas universitárias— estão acontecendo normalmente.

Na avaliação de Felippe Vaz, presidente da Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros (Apeb) em Coimbra, o ponto alto da universidade é a combinação de prestígio acadêmico com as experiências internacionais, uma vez que há a possibilidade de conhecer outros países próximos.

Os alunos brasileiros estão espalhados por todos os cursos, mas, historicamente, a concorrência mais acirrada é pelas vagas no curso de direito. De olho neste mercado, a UC lançou uma nova graduação em 2021: direito luso-brasileiro. "Havendo muitos brasileiros que não conseguem colocação no curso de direito, a criação de uma oferta alternativa e inovadora acontece no aspecto de ensinarmos o direito português mas também o direito brasileiro", diz o vice-reitor da instituição, João Nuno Calvão da Silva.

Quem se formar nesse curso, porém, poderá atuar como consultor jurídico, uma vez que, segundo a UC, a graduação não prepara propriamente para o exercício da advocacia. "No entanto, ele prepara juristas aptos a apoiar a advocacia, empresas e entidades públicas em áreas de interface entre os ordenamentos jurídicos de Brasil, Portugal e União Europeia, como nacionalidade, direito internacional, comércio internacional e imigração, para dar alguns exemplos", diz a instituição, em resposta à Folha.

A língua e as afinidades culturais entre Portugal e Brasil costumam ser facilitadores na integração dos estrangeiros. Ainda assim, a universidade criou o programa GPS, em que veteranos brasileiros auxiliam novatos. Como o próprio nome já adianta, o objetivo é orientar os novos estudantes em todas as etapas da vida universitária: da escolha do local para morar à integração na cidade.

A iniciativa vem, também, na esteira de relatos em grupos de estudantes e nas redes sociais de episódios de discriminação. Queixas sobre comentários xenofóbicos e notas mais baixas para alunos que usam o português do Brasil são recorrentes em diversas universidades e escolas de Portugal.

"Sabemos que existe um acordo ortográfico vigente entre os países de língua portuguesa, mas alguns professores não aceitam se não for a escrita do português de Portugal em algumas avaliações, o que prejudica muito essa vivência acadêmica", diz Vaz, presidente da associação de estudantes brasileiros.

Calvão da Silva, por sua vez, nega que haja discriminação. "Não acho que essa discriminação exista. Não acho que o nosso português seja distinto e que alguém seja discriminado por usar o português brasileiro, nem na oralidade nem na escrita", diz. "Ainda mais agora que há uma tentativa oficial de uniformização. Não me parece que isso sejam mais do que críticas pontuais e residuais, sinceramente."

Na avaliação do presidente da Apeb, no entanto, a maior dificuldade para os brasileiros em Coimbra é outra: o custo para os alunos estrangeiros. O preço anual do curso para os brasileiros é cerca de dez vezes o valor pago por portugueses e cidadãos de outros países da UE.

Desde 2014, a legislação de Portugal permite a cobrança com preços diferentes para os estudantes estrangeiros. "Esse é um ponto muito crítico, porque acaba tornando o ingresso na Universidade de Coimbra muito mais por meio de um fator financeiro do que acadêmico", afirma Felippe Vaz.

Com números de estudantes em mobilidade internacional já superando os valores registrados antes da pandemia, a universidade comemora os bons números e a cidade repleta de estrangeiros.

"A cidade está a fervilhar mais do que nunca. Agora que passou um bocadinho essa questão da pandemia, a cidade está com um ambiente internacional fantástico. Toda a gente passou a sair, está uma festa permanente. Acho isso bonito, ver como todas as nacionalidades estão em festa", afirma o vice-reitor.

Candidaturas

Todo o processo seletivo é feito online, a partir do Brasil. Para os cursos de graduação, os candidatos podem usar nota do Enem —são aceitos os resultados obtidos até cinco anos antes da candidatura.

A Universidade de Coimbra foi, em março de 2014, a primeira instituição de ensino superior de Portugal a reconhecer o resultado do exame brasileiro. Na maioria dos cursos de graduação, a nota mínima exigida é de 600 pontos no Enem. Há, no entanto, algumas exceções: os mestrados integrados em ciências farmacêuticas e medicina dentária, que exigem 700 pontos, e engenharia química, com 650 pontos.

O cálculo da pontuação obtida no teste brasileiro, portanto, varia conforme o curso pretendido.

Por exemplo: na graduação em filosofia, a nota na redação tem peso de 50% na pontuação final, enquanto no curso de economia responde a 20% da avaliação. Para facilitar a vida dos candidatos, a instituição tem uma calculadora automática para converter as notas dos brasileiros.

Matrícula e visto

Dos alunos que vão começar o primeiro ano na universidade é exigido o pagamento inicial de 30% do valor da anuidade. O restante pode ser parcelado em nove prestações. Após a matrícula e o pagamento, os estudantes recebem a carta de aceitação da universidade, documento obrigatório para obter o visto.

Desde abril de 2019, o processamento dos vistos de estudante para Portugal é feito por uma empresa terceirizada, a VSF Global, e os estudantes devem enviar a documentação exigida pelos correios.

O processo custa a partir de R$ 694, sendo R$ 531,45 de taxa consular, R$ 15,27 de taxa de transferência e R$ 147,63 de taxa de processamento. A esse valor são acrescidos serviços adicionais, como o de entrega expresso ou assistência para o preenchimento dos formulários.

Depois de conseguirem o visto de estudante, e já em Portugal, os alunos podem obter autorização de residência com permissão para trabalhar no país. O processo, no entanto, não é automático.

Os estudantes precisam notificar o SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) para emitir o documento com a permissão de exercício de atividade profissional. "Quem trabalha sem a autorização estará atuando de forma irregular e pode estar sujeito a sanções. É preciso ficar atento e fazer tudo de forma adequada", alerta a advogada luso-brasileira Raphaela Souza.

Custos dos cursos

Os cursos de graduação (licenciatura), mestrados integrados e mestrados de continuidade custam 7.000 euros (cerca de R$ 44,8 mil) por ano. É possível parcelar a anuidade em até dez vezes. No primeiro ano de estudo, é preciso pagar 30% na primeira prestação.

Todos os anos, os estudantes pagam ainda uma taxa de inscrição de 20 euros (cerca de R$ 128).

Ao longo do curso, os alunos brasileiros são elegíveis para diversas bolsas de estudo e estágios. O principal destaque são as bolsas de mérito. "Trata-se de bolsas atribuídas aos estudantes com as melhores notas, o que é no fundo um incentivo que a universidade procura dar àqueles que mais se distinguem em suas várias etapas acadêmicas", diz o vice-reitor, Calvão da Silva.

A instituição também seleciona cursos em que é possível pedir bolsas de 2.000 euros (R$ 13 mil) para o primeiro ano. No último concurso, as carreiras apoiadas foram: antropologia, biologia, bioquímica, engenharia civil, engenharia ambiental, engenharia física, geologia, matemática, química, química medicinal, ciências bioanalíticas, ciências farmacêuticas, farmácia biomédica, ciência da informação, estudos clássicos, geografia, turismo, território e patrimônios e ciências do desporto.

Custos adicionais

Cidade universitária há séculos, Coimbra tem diversas opções para alojar quem vem de fora e há muita oferta de alojamentos estudantis e apartamentos que podem ser alugados durante o período letivo.

Assim como em outras cidades portuguesas, os preços dos aluguéis têm apresentado altas sucessivas nos últimos anos. Para auxiliar os estrangeiros, a UC realiza estimativas periódicas sobre os gastos para viver e estudar na cidade. Na edição mais recente, as despesas são estimadas em cerca de 500 euros (R$ 3.250) mensais, sendo 169 euros (R$ 1.100) para o alojamento em uma das residências universitárias.

Para as vagas nas residências na instituição, é preciso fazer uma candidatura à parte.

Há também muitas opções particulares. Em sites populares de aluguel, as vagas nas muitas repúblicas costumam oscilar entre 180 e 250 euros. Estudantes podem ainda se beneficiar de refeições com preços especiais. Há 14 cantinas universitárias que servem menus de almoço e jantar a 2,40 euros (aproximadamente R$ 15,60), além de opções de lanchonetes e bares espalhados pelas instalações.

Existe também um acordo bilateral que permite a brasileiros ter acesso integral ao sistema de saúde público, usufruindo de condições idênticas aos dos cidadãos portugueses. Emitido pelo Ministério da Saúde, o CDAM (certificado de direito à assistência médica), conhecido como PB4, pode ser pedido online.

A universidade também dispõe de serviço próprio de saúde, com consultas a preços entre 5 e 10 euros.

Vida universitária

A Universidade de Coimbra é conhecida pela intensa vida social e pelas muitas festas organizadas pelos estudantes. A mais conhecida delas é a chamada queima das fitas: uma celebração do fim do ano letivo que acabou se espalhando para universidades de todo o país.

Como símbolos de libertação da vida acadêmica, alunos que estão concluindo os cursos queimam fitas de cetim —cada faculdade tem uma cor específica. É também esse o momento em que calouros ganham o "direito" de começar a usar o traje universitário: roupa tradicional que envolve uma pesada capa preta.

Atualmente, há todo um universo associado à festa, que conta com diversos shows, cortejo e apresentação de DJs. A vivência universitária, no entanto, vai muito além das baladas.

"A universidade tem uma forte valorização do esporte. Tanto que a UC teve atletas olímpicos e paralímpicos competindo agora no Japão. Tem o estádio universitário e, além do futebol, há diversas outras modalidades, como ginástica, caratê, tênis. Existe uma estrutura muito facilitada para os alunos que querem praticar esportes e até mesmo se tornarem atletas de alto rendimento", diz Vaz.

Dificuldades

O custo mais elevado do curso para os estudantes estrangeiros costuma ser a principal queixa dos estudantes, embora o valor das mensalidades seja avisado desde antes da matrícula.

O nivelamento das mensalidades —que em Portugal se chamam propinas e nada têm a ver com corrupção— é uma antiga reivindicação de associações estudantis e de imigrantes. Em abril, o Parlamento de Portugal rejeitou projetos de lei que visavam igualar os valores cobrados aos estrangeiros.

Na maioria das universidades, a possibilidade de cobrar mais de alunos estrangeiros é um grande incentivo para a reserva de vagas e para a criação de processos seletivos exclusivos para brasileiros.

Para se beneficiarem dos preços praticados a europeus, brasileiros com dupla cidadania portuguesa ou de outro país da UE —ou que tenham pedido o estatuto de igualdade de direitos civis em Portugal— devem fazer o processo seletivo normal da instituição, competindo pelas vagas no sistema regular da instituição.

A diferença no conteúdo de algumas disciplinas do ensino médio brasileiro e o secundário português também podem gerar dificuldades para os estudantes estrangeiros recém-chegados.

Esse é um ponto especialmente sensível para os alunos da área de exatas, sobretudo de engenharia.

"Essa diferença nos currículos é bem visível, por exemplo, com cálculo. As matérias de cálculo 1, que nós brasileiros normalmente temos na faculdade, de maneira geral, em Portugal são ensinadas no secundário. Então, quando se ingressa numa faculdade de exatas, as aulas começam por matérias mais avançadas. Alguns alunos brasileiros costumam ter um déficit entre esse conteúdo", explica Vaz.

Também é preciso ter atenção às possibilidades de saída profissional após a conclusão dos cursos, sobretudo nas carreiras que exigem autorização de entidades de classe.

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