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Mathias Alencastro

Ucrânia mostra necessidade de criar novos espaços de diálogo na arena internacional

Num futuro próximo, nada impedirá uma administração americana trumpista de invocar o precedente ucraniano para retomar ofensiva contra Venezuela

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São Paulo

O que ficará registrado na história é que enquanto Vladimir Putin e Serguei Lavrov reiteravam seu compromisso com os acordos de Minsk e organizavam reuniões da alta diplomacia em cenários teatrais, eles planejavam a invasão de um país soberano, a captura de suas instituições e a substituição do seu regime pela força. Enquanto nós discutíamos o tamanho das mesas, eles preparavam a guerra.

Uma guerra de escolha e uma guerra de ocupação. Se a extensão territorial da Otan exigia uma solução imediata, ela não representava uma ameaça iminente. Potências europeias, começando pela Alemanha, já haviam descartado a entrada da Ucrânia no sistema de defesa ocidental num futuro próximo. O pleito da Rússia por um veto da Otan à adesão da Ucrânia estava caminhando dentro dos círculos ocidentais.

Manifestante na Trafalgar Square, em Londres, com cartaz de apoio à Ucrânia nesta sexta (25) - Tolga Akmen/AFP

Nas últimas semanas, autoridades do establishment americano, como Thomas Friedman e Jeffrey Sachs, defenderam a solução de um veto à entrada da Ucrânia. Stephen Walt, que formou metade dos diplomatas americanos, apontou que as leis que governavam a Otan não são "as leis do universo".

Dentro dos círculos diplomáticos europeus, Berlim e Roma pressionavam Kiev a tomar a iniciativa de renegar a Otan, o que muitos viam como uma capitulação. A diplomacia musculada de Putin estava trazendo resultados incontestáveis. Mas o objetivo que ele almejava —a incorporação definitiva e irreversível da Ucrânia dentro do espaço geopolítico russo— não era alcançável pela via diplomática. Unicamente pela militar.

O discurso de Putin na segunda-feira (21) ignora a questão da Otan e avança para outro argumento, muito mais sombrio e ilegítimo: a negação do Estado ucraniano. Sua afirmação central, de que o "Estado ucraniano foi inteiramente criado pela Rússia ou, para ser mais preciso, pela Rússia comunista e bolchevique", tem como propósito erradicar da história do movimento nacionalista ucraniano, cujas origens remontam à metade do século 19.

Mas nada disso importa. A história, independentemente da sua interpretação, não dá direito a conquista. Em 1991, mais de 90% dos ucranianos votaram a favor da independência. Eles podem se dividir entre europeístas e russófilos sem que isso comprometa sua autonomia dentro do sistema internacional. Se a polarização política, social e étnica justificasse em si a fragmentação e implosão do Estado, não haveria mais Estados.

A posição de que o expansionismo da Otan explica a pressão diplomática, mas não justifica a ação militar, tem orientado as tomadas de posição políticas. Expoentes da classe política anti-Otan na Europa se posicionaram claramente contra a Rússia. Gabriel Boric condenou sem ambiguidades o uso ilegítimo da força enquanto Alberto Fernández buscou uma posição mais moderada, apelando à Rússia para interromper a invasão.

Os que dizem que Moscou está recebendo o apoio do chamado Sul Global também ignoram a posição dos Estados africanos, onde as fronteiras, desenhadas pelas potências coloniais, são objeto de tensão permanente. O embaixador do Quênia na ONU exaltou o sofrimento da Ucrânia e afirmou: "Nós devemos sair das brasas dos impérios mortos para não voltarmos a mergulhar em novas formas de dominação e opressão".

A defesa incondicional da paz deve se estender a todas as partes do conflito. Se os ucranianos têm o direito intrínseco de se protegerem, só os loucos e os armamentistas defendem uma retaliação contra a potência nuclear russa.

O desenrolar do conflito também deve reforçar a impressão de que as sanções internacionais viraram as armas dos impotentes, que tudo antecipam mas nada fazem. Esvaziadas por causa das contradições dos países ocidentais, divididos entre a necessidade de reagir à agressão e de cuidar dos seus ativos econômicos, as sanções parecem facilmente assimiláveis por um regime que passou meses se preparando para viver com elas.

Talvez ainda mais importante, a implementação dessas medidas meramente administrativas em nada impactará a vida dos ucranianos ameaçados pelas armas. Se nada mudar, Kiev cairá solitária, corajosa e abandonada.

A recomposição da arena internacional passa agora por acolher refugiados, impedir o alastramento do conflito, denunciar o arbítrio de um futuro regime legitimado pela força ocupante e trabalhar para restaurar o direito internacional e a integridade das fronteiras neste novo momento geopolítico.

É imperativo criar novos espaços de diálogo para a comunidade internacional, mais dinâmicos e democráticos do que o Conselho de Segurança. Porque a ameaça está às nossas portas. Num futuro próximo, nada impedirá uma administração americana trumpista de invocar o precedente ucraniano para retomar a ofensiva contra a Venezuela em nome da hegemonia na sua "esfera de influência".

A última coisa que queremos é ver a guerra do outro lado do mundo justificando uma nas nossas fronteiras.

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