Embaixador da China no Brasil lamenta danos a civis na Ucrânia, mas critica Otan

De saída do país, diplomata que teve rixas com governo Bolsonaro diz à Folha que relação baseada no respeito corresponde ao interesse comum

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Nova York

O embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, lamenta os danos causados a civis na Ucrânia e defende o respeito à soberania dos países, mas mantém a posição de Pequim de criticar a expansão da Otan e de apoiar a Rússia, que invadiu a Ucrânia e desencadeou a mais grave crise militar na Europa em décadas.

"A conjuntura de segurança no Leste Europeu foi alterada [com a expansão da Otan, a aliança militar ocidental]. Os países devem fazer uma reflexão sobre as causas da situação atual", disse à Folha por email o diplomata, que está deixando o país para assumir novas responsabilidades na China.

Pequim se absteve em votações de resoluções condenando a invasão da Ucrânia no Conselho de Segurança e na Assembleia-Geral da ONU e declarou que não vai aplicar sanções financeiras semelhantes às impostas pelo Ocidente contra Moscou.

O embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, posa com o chanceler Carlos França em foto publicada no Twitter para anunciar sua saída do posto.
O embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, com o chanceler Carlos França em foto publicada no Twitter para anunciar sua saída do posto. - Yang Wanming no Twitter

Ao longo de pouco mais de três anos à frente da representação em Brasília, o embaixador viu as relações sino-brasileiras passarem por turbulências. O presidente Jair Bolsonaro (PL) e aliados desferiram ataques contra a China, e Yang, seguindo a postura "lobo guerreiro" da diplomacia de Pequim, entrou em mais de um bate-boca virtual com o deputado federal Eduardo Bolsonaro (União Brasil-SP).

O então chanceler Ernesto Araújo chegou a pedir a cabeça do diplomata —e foi ignorado. Com a troca de chefia no Itamaraty e a eleição de Joe Biden nos EUA, o esquadrão anti-China do governo federal se tornou mais discreto. Yang, de malas prontas, afirma: "O tempo e os fatos vão comprovando que uma relação sino-brasileira baseada no respeito mútuo corresponde ao interesse comum".

A guerra na Ucrânia já causou centenas de mortes de civis e militares. O sr. acha que a oposição da Rússia à ampliação da Otan justifica a invasão? A China está profundamente triste ao ver o conflito entre Ucrânia e Rússia e extremamente preocupada com os danos causados a civis. A China sempre defende o respeito à soberania e à integridade territorial de todos os países.

Ao mesmo tempo, a questão evoluiu num contexto histórico complexo. Após cinco rodadas consecutivas de expansão rumo ao leste pela Otan, a conjuntura de segurança no Leste Europeu já foi alterada há muito tempo, e a situação está extremamente instável. Os países devem fazer uma reflexão sobre as causas da situação atual.

A China acredita que a segurança de um país não deve ser alcançada às custas de segurança de outros e que a segurança regional não pode ser alcançada pela expansão de blocos militares. A mentalidade da Guerra Fria deve ser descartada. A China pede que as partes mantenham a contenção necessária para evitar que a situação saia do controle. Em particular, devem ser evitadas as crises humanitárias em larga escala. A China apoia e encoraja todos os esforços diplomáticos que levem a uma resolução pacífica.

As relações entre Brasil e China estão melhores hoje do que três anos atrás? O Brasil, como potência em ascensão, merece respeito do mundo inteiro. Servir nesse país é motivo de orgulho para mim. Foram três anos de grandes mudanças na conjuntura internacional. Uma pandemia inesperada pôs o mundo em um período de inquietação e transformações.

Nesse contexto, é gratificante ver que as relações sino-brasileiras se mostraram ainda mais maduras. Xi Jinping e Jair Bolsonaro trocaram visitas, diálogos bilaterais aconteceram em todas as esferas. Ficamos muito gratos com a preciosa solidariedade nos primeiros surtos da Covid-19.

Em retribuição, a China fez todo o possível para assegurar o fornecimento de vacinas e IFA [insumo farmacêutico ativo] quando o Brasil vivia os piores momentos da crise.

Tenho a convicção de que o tempo e os fatos vão comprovando que uma relação sino-brasileira baseada no respeito mútuo, na igualdade e na cooperação corresponde ao interesse comum de ambos os países e seus povos —e certamente renderá frutos ainda mais profícuos.

Em entrevista à Folha, o ex-chanceler Celso Amorim afirmou que, em um eventual novo governo Lula, a aproximação com a China seria "inevitável". Como vê essa declaração? O Brasil é independente e soberano. Os 48 anos de relações diplomáticas comprovam que China e Brasil são capazes de deixar de lado as diferenças ideológicas ou de sistema político para alcançar um progresso comum. A China sempre vê seu relacionamento com o Brasil a partir de uma perspectiva estratégica e de longo prazo. A política não muda por força de circunstâncias ou incidentes pontuais.

No leilão do 5G no Brasil, não houve restrições a operadoras que usam componentes da Huawei, apesar das pressões dos EUA. Mas faz parte do negócio uma construção de rede privada para o governo, sem uso de componentes da empresa. A China respeita a escolha soberana de parceiros 5G de todos os países. No entanto, opõe-se firmemente à supressão das empresas chinesas sem base factual imposta pelos EUA e à interferência grosseira dos EUA com o objetivo de servir seu interesse de conter o desenvolvimento da China às custas do interesse dos outros.

O Brasil tomou a decisão correta de não colocar restrições a equipamentos da Huawei. Contamos com os esforços para criar um ambiente de negócios dentro dos parâmetros de imparcialidade e não discriminação de empresas chinesas.

O comércio bilateral entre China e Brasil chegou a um valor recorde de US$ 138 bilhões em 2021, apesar da pandemia. Mas o investimento caiu mais do que em outros países (de US$ 13 bi em 2010 para US$ 4 bi em 2021). Quais as dificuldades? Apesar do impacto causado pela pandemia, investimentos chineses mantiveram aportes consideráveis no mercado brasileiro. Estamos plenamente dispostos a unir esforços para proporcionar aos investidores condições e políticas estáveis e previsíveis, levando a cooperação a ganhar novo vigor no pós-pandemia.

Autoridades anunciaram que a China vai aumentar em 40% sua produção doméstica de soja, com o objetivo de se tornar, eventualmente, autossuficiente. O Brasil exportou US$ 27,2 bilhões em soja e derivados para a China em 2021, quase 30% do total de exportações para o país. Com a meta chinesa, como fica o comércio bilateral? A China é o maior consumidor e importador de soja no mundo. Em 2021, a produção chinesa foi de 16,4 milhões de toneladas, mas o consumo estava acima da ordem de 100 milhões. Se considerarmos as terras aráveis, a demanda e a produção real, é impossível que os produtos nacionais supram todo o consumo. Pelo contrário, a importação tende a crescer continuamente, não haverá mudança significativa no quadro atual.

Como a China vê o aumento recorde do desmatamento no Brasil? Isso pode afetar o comércio? Notamos que o Brasil apresentou metas ambiciosas de redução de emissões e um plano de crescimento verde de acordo com suas condições nacionais. O governo chinês cumpre a obrigação legal de verificar se os produtos importados atendem aos padrões de segurança, higiene, saúde e proteção ambiental. Ao mesmo tempo, rejeita o abuso das chamadas barreiras verdes para medidas protecionistas.

A China ultrapassou o Brasil como maior parceiro comercial da Argentina. Algumas indústrias brasileiras afirmam que houve desvio de comércio e que é necessário impor tarifas maiores aos produtos chineses para corrigir distorções. Como o sr. vê isso? Na era da globalização, o mercado mundial é como um oceano. Não é mais possível canalizar essas águas de volta para lagos isolados. A alteração na disposição mundial das indústrias pode ser um processo doloroso, todos os países precisam enfrentar isso, e a China não é exceção. Mas a saída não reside no protecionismo.

O Brasil tem vantagens significativas na base industrial, em redes de comercialização e localização geográfica. Empresas chinesas e brasileiras podem transformar sua concorrência em oportunidades de ganho por meio de cooperação mais estreita.

A Argentina acaba de se tornar parte da Iniciativa Cinturão e Rota. A China discutiu com o governo a entrada do Brasil? A iniciativa é uma plataforma pública criada pela China, mas aberta a todos os países sem nenhuma consideração geopolítica. Mais de 20 países da América Latina e do Caribe assinaram documentos de cooperação no âmbito dela. Consideramos o Brasil um ator importante e fizemos há muito tempo o convite para a adesão. Estamos dispostos a continuar as discussões.

O presidente Alberto Fernández afirmou a Xi que gostaria que a Argentina entrasse para o Brics. Como a China vê a ideia? Como presidente rotativa do Brics, a China está disposta a construir uma parceria mais abrangente, mais intensa, mais pragmática e mais inclusiva, para que o bloco desempenhe um maior papel na defesa do multilateralismo, na salvaguarda dos interesses dos países emergentes e em desenvolvimento.

Vários países fizeram um boicote diplomático das Olimpíadas de Inverno de Pequim em protesto contra violações de direitos humanos dos uigures. A nação não foi convidada para a Cúpula da Democracia realizada por Biden em 2021, que contou com mais de cem convidados, entre os quais Taiwan. A China é um regime democrático? Na China, é praticada uma democracia popular para todo o processo, por meio de eleições, consultas políticas, tomada de decisões, governança e supervisão, de maneira que a vontade da população seja refletida em todos os aspectos.

O mundo é multifacetado e ricamente matizado. No entanto, em narrativas de alguns países ocidentais, um partido que permanece no poder por muito tempo é considerado autoritário ou despótico —mesmo que tenha levado o país a alcançar o milagre da estabilidade social duradoura e o crescimento econômico acelerado e que tenha conquistado amplo apoio da população.

Tal preconceito decorre ou de uma compreensão míope e distorcida da democracia e dos direitos humanos ou de uma agenda sombria para cercear outros países. Em vez de fazer da democracia e dos direitos humanos uma ferramenta de politização, a China respeita a soberania de cada nação em abrir sua própria via de desenvolvimento e democracia.

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