EUA fazem exercício militar no Alasca de olho em possível invasão pela Rússia

Com geopolítica alterada por guerra na Ucrânia, competição por soberania e recursos no Ártico pode se intensificar

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Delta Junction (Alasca) | The New York Times

Depois de saltar de paraquedas no interior frígido do Alasca, o capitão Weston Iannone e seus soldados marcharam por quilômetros sobre neve profunda, indo finalmente montar acampamento temporário numa crista perto de um pequeno bosque de abetos esqueléticos que também lutavam para sobreviver.

Escurecia, a temperatura caíra para abaixo de zero, e os 120 homens e mulheres reunidos como parte de um grande exercício de treinamento no Alasca subártico ainda não haviam montado barracas. Ainda não haviam recebido combustível, essencial para se manterem aquecidos durante a longa noite que vinha pela frente.

"Tudo é um desafio, desde água até combustível, alimentos, deslocamento de pessoas, garantir o conforto do pessoal", disse Iannone, 27, o comandante da companhia, enquanto seus soldados escavavam mais fundo na neve, buscando uma base firme sobre a qual montar suas barracas de dormitório. "O que estamos fazendo aqui é treino inerente –para descobrir até onde podemos ir, física e mentalmente."

Soldados dos EUA durante exercício militar no Alasca
Soldados dos EUA durante exercício militar no Alasca - Ash Adams - 14.mar.22/The New York Times

O exercício militar realizado este mês, o primeiro desse tipo, envolveu 8.000 soldados e foi conduzido perto de Fairbanks, no Alasca. Havia sido planejado muito tempo antes da invasão russa da Ucrânia, mas foi inspirado em parte pelas iniciativas agressivas da Rússia nos últimos anos para militarizar o Ártico, uma região do mundo onde Estados Unidos e Rússia compartilham uma extensa fronteira marítima.

A tensão vem crescendo na região há anos, com diferentes países reivindicando o controle de rotas marítimas e reservas energéticas que estão se tornando acessíveis em decorrência da mudança climática. Agora, com a ordem geopolítica alterada pela invasão russa da Ucrânia, a competição por soberania e recursos no Ártico pode se intensificar.

O governo federal americano está investindo centenas de milhões de dólares na costa oeste do Alasca para ampliar o porto de Nome, que pode transformar o polo de serviços de águas profundas que abastece e atende às embarcações da Marinha e Guarda Costeira americanas que navegam ao norte do Círculo Ártico. A Guarda Costeira prevê colocar no mar três novos navios quebra-gelo –mas a Rússia já tem mais de 50 em operação.

Ao mesmo tempo em que os EUA denunciam a expansão militar agressiva da Rússia no Ártico, o Pentágono tem seus próprios planos para aumentar sua presença e capacidades na região, trabalhando para reconstruir suas habilidades de trabalho em clima frígido relegadas ao segundo plano durante duas décadas de guerra no Iraque e Afeganistão.

A Força Aérea transferiu dezenas de caças F-35 para o Alasca, anunciando que esse estado vai abrigar "mais caças avançados que qualquer outro lugar no mundo". No ano passado o Exército americano divulgou seu primeiro plano estratégico para "recuperar a hegemonia no Ártico".

A Marinha, que este mês conduziu exercícios acima e abaixo da calota de gelo polar ao norte do Círculo Ártico, também traçou um plano para proteger os interesses dos EUA na região, alertando que uma presença fraca ali significaria que "a paz e a prosperidade serão cada vez mais desafiadas pela Rússia e China, cujos interesses e valores diferem profundamente dos nossos".

Os preparativos têm custos altos, tanto em termos de verbas quanto de pessoal. A companhia de Iannone conseguiu terminar de montar suas barracas antes de meia-noite e sobreviveu à noite sem incidentes, mas outras companhias não se saíram igualmente bem: oito soldados sofreram lesões provocadas pelo frio e quatro outros foram levados ao hospital após um incêndio num veículo de transporte de tropas.

Enquanto isso, quatro fuzileiros navais americanos morreram quando sua aeronave caiu durante outro exercício recente em temperaturas muito baixas, este na Noruega.

A Rússia, cuja costa oriental fica a apenas 88 km da costa do Alasca, separado desta pelo estreito de Bering, há anos vem priorizando a expansão de sua presença no Ártico, reformando e ampliando seus aeroportos militares, construindo bases, treinando tropas e desenvolvendo uma rede de sistemas de defesa militar na fronteira norte.

Com o clima em processo de aquecimento provocando o encolhimento do gelo marítimo na região, populações valiosas de peixes estão se deslocando para o norte, enquanto minerais raros e as substanciais reservas árticas de combustíveis fósseis se convertem em alvo crescente de exploração. O tráfego de embarcações tanto comerciais quanto de turismo deve aumentar.

Dois anos atrás, Moscou levou seus próprios "jogos de guerra" para o Mar de Bering. Comandantes russos testaram armas na região e exigiram que embarcações pesqueiras americanas operando em águas pesqueiras dos EUA saíssem de seu caminho –ordem que a Guarda Costeira americana recomendou que obedecessem. Em diversas ocasiões a Rússia tem enviado aviões militares até o limite do espaço aéreo dos EUA, levando jatos americanos a decolar às pressas para interceptá-los.

Neste mês, em resposta à escalada de sanções internacionais impostas à Rússia, um deputado russo reivindicou que o Alasca, comprado pelos EUA da Rússia em 1867, fosse devolvido ao controle russo –um gesto possivelmente apenas retórico, mas que mesmo assim refletiu a deterioração do relacionamento entre as duas potências mundiais.

As águas extensas do Ártico foram durante séculos uma terra de ninguém, cujo acesso era impossibilitado pela calota de gelo e cujas fronteiras territoriais exatas –reivindicadas pelos Estados Unidos, Rússia, Canadá, Noruega, Dinamarca e Islândia— eram incertas.

Mas, com o derretimento do gelo marítimo abrindo novas rotas marítimas e despertando o interesse dos vários países pelas imensas reservas de hidrocarbonetos e minerais situadas sob o leito do mar ártico, os complexos tratados, reivindicações e zonas limítrofes que regem a região foram abertos a novas disputas.

Canadá e Estados Unidos nunca chegaram a um acordo sobre o status da Passagem do Noroeste entre o Atlântico e o Mar de Beaufort. Também a China vem procurando marcar presença na região, declarando-se um "estado próximo ao Ártico" e formando parcerias com a Rússia para promover o desenvolvimento e utilização ampliados e supostamente sustentáveis das rotas comerciais árticas.

"Estamos numa situação bastante tensa aqui", disse Troy Bouffard, diretor do Centro de Segurança e Resiliência Ártica da Universidade do Alasca em Fairbanks. "Ou cedemos à Rússia, a seu controle extremo das águas superficiais, ou elevamos ou escalamos a questão."

Nos últimos anos a atenção maior tem sido voltada à ampliação dos canais diplomáticos e à colaboração em uma série de desafios regionais por meio do Conselho Ártico. Mas esse trabalho foi suspenso quando a Rússia invadiu a Ucrânia.

Em Nome, que espera posicionar-se como porta de acesso marítimo ao Extremo Norte, não é de hoje que se veem evidências da chegada de uma nova era para o Ártico. O prefeito John Handeland disse que o gelo marítimo formado no inverno, que no passado continuava presente até meados de junho, pode agora desaparecer no início de maio e não voltar até o final de novembro.

Mas há vários interesses locais que precisam ser levados em conta quando se trata de levar o desenvolvimento mais ao norte no Ártico. Os indígenas do Alasca receiam os efeitos do desenvolvimento sobre o frágil ambiente da região, da qual muitos deles dependem para a caça e a pesca, disse Julie Kitka, presidente da Federação de Povos Indígenas do Alasca.

"Acho que nossos povos entendem que nossas forças armadas precisam proteger nosso país e que precisam, sim, investir numa presença no Ártico", ela disse. "Mas isso precisa ser feito com inteligência."

Dan Sullivan, o senador federal republicano que representa o Alasca, disse que, embora possa haver pouco perigo de uma invasão russa no Alasca, há uma preocupação com o acúmulo de forças e recursos militares russos na região.

O Alasca já é um dos estados americanos mais militarizados, com mais de 20 mil militares da ativa lotados em lugares como a base Eielson da Força Aérea e Fort Wainwright, na região de Fairbanks, a base conjunta Elmendorf-Richardson, em Anchorage, e a estação aérea da Guarda Costeira em Kodiak. O maior exercício de treinamento do Exército –o primeiro exercício do Centro de Treinamento de Combate realizado no Alasca— aconteceu em volta de Fort Greely, 160 km a sudeste de Fairbanks. O Alasca também sedia partes críticas do sistema de defesa antimísseis dos EUA.

Bouffard disse que a quebra nas relações provocada pela invasão russa da Ucrânia pode abrir a porta a uma série de problemas futuros sobre os quais só é possível especular no momento. Embora não haja conflito iminente no Ártico, é muito possível que surjam atritos em torno de como a Rússia utiliza as águas costeiras ou disputas sobre exploração sob o leito do mar. Os Estados Unidos também precisam estar preparados para ajudar seus aliados no norte da Europa que compartilham um futuro incerto com a Rússia nas vias marítimas árticas, segundo Bouffard.

Isso quer dizer que os EUA precisam estar preparados para uma série de problemas potenciais. Num exercício militar separado conduzido no Alasca nas últimas semanas, equipes da Marinha e do Exército treinaram estratégias para conter contaminação química, biológica, radiológica e nuclear sob temperaturas geladas.

No grande exercício de "jogos de guerra" realizado pelo Exército perto de Fort Greeley, os soldados ensaiaram um cenário no qual paraquedistas tomam um aeroporto e lançam operações para controlar o novo território. Em seguida, uma força adversária era mobilizada para tentar recuperar a área.

Aquecedores portáteis foram usados para manter os motores funcionando, além de lubrificantes que funcionam em temperaturas abaixo de zero. Alguns soldados usaram esquis e raquetes de neve para se deslocar, além de motos de neve e unidades de suporte suficientemente leves para movimentar-se sobre neve espessa.

Para muitos dos soldados sob o comando de Iannone, defender o aeródromo exigiu que estabelecessem posições em áreas remotas usando meios mais rudimentares. Um grupo de armas pesadas derrubou árvores à mão e usou um trenó para puxar um grande Sistema Aprimorado de Aquisição de Alvos para um ponto mais elevado de onde os soldados podiam visualizar quilômetros de paisagem em volta.

Eles montaram uma tenda com um pequeno fogão para aquecimento, protegido por um muro de neve por todos os lados. Para se manterem aquecidos, revezaram-se em turnos de uma hora cada diante das tendas –meia hora durante a noite.

Mesmo assim, o soldado Owen Prescott, 21, disse que estava achando difícil resistir ao frio à noite e estava experimentando com camadas de roupas para se manter aquecido quando a temperatura se aproximava dos 20 graus negativos. Comendo ração do Exército aquecida, contou que ele e seus colegas estão se concentrando em não virar vítimas do frio antes mesmo de iniciar sua missão de combate hipotético.

"O duro é encarar o frio, aguentar-se no frio", disse Prescott, natural do sul da Califórnia. "Passei a vida toda de shorts e chinelos."

Tradução de Clara Allain

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