Descrição de chapéu
André Liohn

Guerra na Ucrânia expõe riscos ao país e importância do jornalismo profissional

Fotógrafo faz reflexões sobre o conflito após mais de um mês de cobertura diária em campo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Itália

Depois de um mês na Ucrânia, voltar para casa permite uma reflexão com mais calma sobre o que vi cobrindo o dia a dia da guerra.

Parece absurdo pensar que dois povos de identidade tão próxima não tenham conseguido atingir um diálogo político ou encontrar uma via diplomática durante quase uma década de conflito.

Uma metáfora apropriada talvez seja a da separação de um casal com uma longa história juntos, com bens, recordações em comum e filhos. A relação se desgastou e cada um sentiu necessidade de tomar seu rumo, mas não teve coragem de tocar no assunto quando as insatisfações começaram a surgir. Guardaram para si mágoas que um dia chegaram a um estado que tornou a convivência insuportável.

O casal então entrega a negociação da divisão de bens e guarda dos filhos a advogados gananciosos, interessados só em seus ganhos e não na felicidade dos dois indivíduos. Quanto maior o atrito e quanto mais tempo a disputa durar, maior o ganho dos que criam problemas para vender soluções. Rússia e Ucrânia, casal azarado que foram, caíram nas mãos dos piores advogados disponíveis.

Voluntários ajudam idosa em operação de retirada de civis da cidade de Irpin, próxima a Kiev, em meio à guerra na Ucrânia - André Liohn - 8.mar.22

Em primeiro lugar, há o risco de que o que está acontecendo no Leste Europeu seja o nascimento de um fenômeno parecido com o que forjou Saddam Hussein.

Assim como o Iraque durante e depois da guerra com o Irã, parte da população da Ucrânia deseja se separar em repúblicas independentes ou se unir à Rússia. Também como o Iraque de um Saddam ainda aliado do Ocidente, a Ucrânia está recebendo armas e apoio econômico e logístico dos Estados Unidos.

Enquanto o país estiver sob ataque, o armamento serve para que legitimamente se defenda das agressões do Kremlin. Mas assim que o jogo se reverter —e isso pode estar começando a acontecer—, o governo ucraniano deixará de ser o agredido para se tornar agressor, e seus primeiros alvos serão as regiões separatistas, também com a morte de civis inocentes —isso, aliás, já está acontecendo.

Segundo ponto: não são só os "advogados" que ganham com a guerra. Para os jornalistas, a invasão russa deu a possibilidade de estarem ao lado do "bem", serem heroicos ao dar voz aos emudecidos e jogar luz sobre as trevas. Nesse processo, muitos em campo têm deixado de lado fundamentos básicos da profissão e aceitado a versão de Kiev como verdade quase incontestável.

Uma ideia de Davi contra Golias tem se propagado —e os bons, é claro, sempre se identificarão com Davi. (Atrasado, deixo um ponto bem esclarecido: a invasão da Ucrânia é um erro indefensável. Na metáfora do casal, seria a violência cometida por um cônjuge por não aceitar a separação ou os termos sugeridos.)

A cobertura jornalística em muitos casos pareceu interessada menos em explicar o que estava acontecendo e mais em sustentar qual lado do conflito a população deve apoiar —o aparentemente mais fraco.

Intimidações contra jornalistas, locais e estrangeiros, também têm sido um obstáculo. No dia 28, o Instituto de Comunicação de Massa, organização ucraniana que atua em defesa da liberdade de expressão, publicou uma carta aberta ao presidente Volodimir Zelenski e às Forças Armadas, na qual relata inúmeros casos de agressão cometidos por milicianos, policiais e soldados ucranianos contra jornalistas, principalmente na região de Kiev, mas não só lá.

O texto começa com a seguinte frase: "Nós, jornalistas ucranianos e estrangeiros, assim como organizações de mídia e ONGs, exigimos que medidas sejam tomadas imediatamente para acabar com os ataques a jornalistas, que são os maiores aliados da Ucrânia nessa guerra".

É errado dizer que jornalistas "somos os maiores aliados da Ucrânia". Não podemos barganhar nossa segurança em troca de uma aliança com um governo, não importa qual seja. Estamos falando de jornalismo, não de ativismo midiático. Além de não ajudar os profissionais, o argumento coloca em risco quem trabalha cobrindo o lado russo da história.

Isso leva ao terceiro ponto: precisamos de jornalistas de guerra cobrindo guerras —por mais que o termo possa parecer algo ultrapassado. Nesses conflitos, serão sempre os mais vulneráveis a sofrer mais e primeiro. Acesso a hospitais é importante para que a imprensa tenha ideia da violência praticada contra civis, mas só ele é insuficiente.

Se os governos ucraniano e russo continuarem impedindo que jornalistas tenham acesso às zonas de combate, é razoável presumir que ambos estejam escondendo crimes. A imprensa não pode sustentar a velha estratégia de manipulação da informação de vitimizar para esconder.

Como se dá com moda, música e política, é fundamental que sejam enviados para zonas de guerra jornalistas interessados e especializados nisso, os únicos capazes de aceitar as condições de trabalho de um ambiente do tipo.

Na Ucrânia, muitos correspondentes foram mantidos longe do conflito, principalmente em Lviv, onde a vida segue próxima do normal e não expõe os detalhes da guerra.

Os sons nos ataques podem ajudar o jornalista a identificar o tipo e a função de um armamento, a intensidade, a direção, a potência e a intenção de quem o emprega. As cores, texturas e até o cheiro da guerra permitem identificar os efeitos das armas sobre aquilo que destruíram, sobre os corpos que feriram, as vidas que tiraram. As vozes, in loco, contam as histórias dos personagens, verdadeiros protagonistas dos tantos papéis.

Ao chegar em casa, cansado e querendo pensar em qualquer coisa que não fosse guerra, me dei a liberdade de bisbilhotar um pouco a vida dos amigos que por semanas ficaram esquecidos nas redes sociais. Vi com espanto que um grande fotógrafo de guerras, Nick Ut —autor da imagem de uma garota vietnamita vítima de um ataque de napalm—, havia compartilhado no Facebook uma montagem, com o ucraniano Zelenski sorridente tirando uma selfie ao lado de um caixão com o corpo do russo Vladimir Putin.

A montagem me lembrou de 20 de outubro de 2011, quando o ditador Muammar Gaddafi foi linchado e assassinado por rebeldes líbios com ajuda dos EUA e da Otan. O corpo mutilado foi exposto em um contêiner refrigerado em Misrata, onde famílias com crianças faziam filas para tirar selfies.

Com narizes e bocas tapadas para impedir que o cheiro de putrefação estragasse o clima de festa, esses vitoriosos talvez mal soubessem que, em pouco tempo, a Líbia se tornaria um lugar ainda pior do que havia sido durante os 42 anos anteriores.

Assim como não defendo a invasão russa, obviamente também não defendo a ditadura hedionda de Gaddafi, mas a montagem me fez pensar que a Ucrânia pode se tornar uma nova Líbia.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.