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Edgar Morin

Salvação da Ucrânia depende do fim do antagonismo entre Rússia e EUA

Única possibilidade de escapar de lógica infernal é acordo de paz que garanta neutralidade de Kiev

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Edgar Morin

Filósofo, sociólogo e antropólogo francês, autor de "Lições de um Século de Vida"

Vivemos uma paz guerreira, nossos corpos instalados na paz, nossos espíritos em meio às bombas e aos escombros. Atacamos com palavras um inimigo que nos ataca com ameaças, mas dormimos numa cama, não num abrigo. Porém, participamos da guerra real sem termos ingressado nela, com armas e munições.

A Guerra da Ucrânia vem se internacionalizando progressivamente. A ajuda humanitária e depois alimentar aos ucranianos vítimas da agressão russa foi sucedida por uma ajuda em armas, inicialmente defensivas e depois contraofensivas, cuja qualidade e quantidade vêm aumentando principalmente graças à contribuição maciça dos EUA, acompanhada das da maioria dos países da União Europeia.

Ucranianos durante manifestação diante da sede das Nações Unidas em Genebra, na Suíça - Fabrice Coffrini - 12.mai.22/AFP

A estratégia do Exército russo é implacável.

Ela é filha da estratégia de Jukov na Segunda Guerra Mundial, dando o papel principal a temíveis bombardeios de artilharia, não apenas contra o Exército inimigo mas também contra as cidades a tomar, terminando com o esmagamento total pela artilharia pesada da capital do Reich, Berlim.

Como ocorre com todo exército vitorioso, mas de modo mais terrível ainda no avanço soviético na Alemanha, massacres e estupros se multiplicaram. Soubemos disso na época, mas tomamos o cuidado de não denunciar o que foi feito, explicando-o como vingança pelos enormes sofrimentos e mortes impostos às populações soviéticas pela Alemanha nazista.

No que diz respeito à Ucrânia —um povo se não irmão, no mínimo primo de primeiro grau do povo russo—, vale indagar se os massacres e estupros se devem à desordem de certas tropas, à fúria pelo fracasso ou a uma vontade de semear o terror. Ainda não sabemos se a intenção primeira da agressão putiniana foi derrubar a Ucrânia inteira como um fruto maduro, decapitando-a desde os primeiros ataques.

Parece que, sob o efeito da resistência ucraniana, a ambição atual é conquistar de modo durável as regiões majoritariamente russófonas do Donbass e o litoral do mar de Azov.

No momento em que escrevo, a luta é implacável e incerta: a ofensiva russa é muito poderosa, mas o Exército ucraniano, no decorrer de sua guerra travada desde 2014 contra os separatistas russófilos, estabeleceu fortificações profundas e escalonadas que até agora vêm freando consideravelmente os avanços russos ainda pouco decisivos.

O que parece provável agora, tirando um golpe de Estado no Kremlin, um ataque militar fatal ou ainda uma façanha diplomática (cessar-fogo, acordo de paz), é que a guerra perdure e se intensifique, com a contribuição cada vez mais abundante de armas ocidentais e as retaliações crescentes da Rússia.

O caráter internacional da Guerra da Ucrânia é crescente. É verdade que o campo ocidental, guiado pelos EUA, declara não estar travando guerra com a Rússia. Mas sua intervenção militar em apoio à Ucrânia é uma guerra indireta, à qual vem se somar uma guerra econômica intensificada pelo aumento das sanções.

Estamos em plena escalada, mantida por novos bombardeios, novas acusações mútuas, novas ondas de criminalização recíproca. A guerra indireta inclusa na Guerra da Ucrânia pode a qualquer momento, graças a bombardeios acidentais ou não, ampliar-se para alcançar território russo ou europeu.

Com relação a isso, Putin reiterou seu anúncio de uma resposta "rápida e fulminante" se um determinado limiar não especificado de hostilidade ou ingerência ameaçar a Rússia, aludindo a uma arma decisiva, desconhecida de qualquer outro país e que a Rússia seria a única a possuir. Essa ameaça não é levada a sério pelos EUA e seus aliados devido a um argumento aparentemente racional e fartamente conhecido desde a Guerra Fria. Se a Rússia quiser nos aniquilar, uma resposta imediata a aniquilará por sua vez.

Esse argumento racional não leva em conta um acidente ou uma irracionalidade possíveis. O acidente seria o lançamento involuntário de um artefato nuclear contra o inimigo potencial, o que desencadearia resposta nuclear imediata. A irracionalidade é a de um ditador cheio de raiva ou mergulhado no delírio.

De qualquer maneira, hoje é provável (embora saibamos que o improvável também pode ocorrer) que, de deslize em deslize, a guerra avance sobre territórios europeus e seja amplificada por mísseis intercontinentais contra os territórios russo e americano, sem entretanto poupar a Europa.

Uma Terceira Guerra Mundial, de um tipo novo, utilizando armas nucleares táticas de alcance limitado, drones, ciberataques para destruir os sistemas de comunicação que mantêm a vida das sociedades, seria o resultado lógico da ampliação da guerra internacionalizada atual.

Acrescentemos uma constatação importante: a guerra introduz nos países em conflito controles, vigilância, a eliminação de qualquer opinião que se desvie da linha oficial e o lançamento de propaganda de justificação permanente de seus atos e de criminalização ontológica do inimigo.

A Rússia de Putin já era um Estado autoritário sob as ordens de um ditador. A guerra agravou o controle e a repressão, atingindo não só quem se opõe à agressão mas aqueles que duvidam de sua legitimidade.

Na Ucrânia, a caça a espiões e terroristas provocou um controle da população, e os excessos cometidos por alguns de seus soldados são abafados. Ao mesmo tempo em que se denunciam crimes reais, é lançada propaganda política contra um inimigo que é totalmente criminalizado.

Na França, apesar de sermos não beligerantes e ainda estarmos vivendo no conforto extremo da paz, só temos acesso às declarações mais mentirosas da Rússia putiniana e às imagens das destruições que ela provoca. E banimos artistas e atletas russos, numa histeria que confunde uma grande cultura e um grande povo com seu dirigente atual.

Estamos vivendo a escalada da desumanidade e a derrocada da humanidade, a escalada do simplismo e a derrocada da complexidade. Mas, sobretudo, a escalada em direção à guerra mundializada é o mergulho da humanidade na direção do abismo. Podemos escapar dessa lógica infernal?

A única possibilidade seria uma paz por meio de um acordo que instauraria e garantiria a neutralidade da Ucrânia. O estatuto das regiões russófonas do Donbass poderia ser decidido por referendo. O da Crimeia, região tártara parcialmente russificada, mereceria um estatuto especial.

Em suma, as condições para um acordo, por mais difícil que seja, são claras. Mas a radicalização e a amplificação da guerra reduzem as possibilidades de maneira inegável.

A situação geopolítica da Ucrânia e sua riqueza econômica em matéria de trigo, aço, carvão e metais raros fazem dela uma presa valiosa para os grandes predadores que são as duas superpotências. A virada da Ucrânia em direção ao Ocidente após os protestos na praça Maidan suscitou a agressão russa, e a agressão russa suscitou não apenas o apoio a uma nação vítima de invasão, mas a vontade de fazer parte do Ocidente, o que, de resto, corresponde ao desejo da maioria dos ucranianos.

A Ucrânia é mártir não apenas da Rússia, mas também da piora das relações conflituosas entre EUA e Rússia, incluindo evidentemente a ampliação da Otan, a aliança militar ocidental, ela própria inseparável dos temores despertados pela guerra russa na Tchetchênia e sua intervenção militar na Geórgia.

A salvação da Ucrânia não será apenas se libertar da invasão russa, mas também do antagonismo entre a Rússia e os Estados Unidos. Essa dupla libertação também permitiria aos países da União Europeia se libertar desse conflito e procurar aliar segurança a autonomia.

As sanções contra a Rússia, ao mesmo tempo que atingem o regime putiniano, atingem também o povo russo e, não podemos saber até que ponto, os sancionadores, voltando-se parcialmente contra eles.

Não só o fornecimento de energia e alimentos está ameaçado —com inflação aumentada e restrições que estão por vir, estão também, sem dúvida, sua economia e sua vida social: uma crise econômica sempre gera retrocessos autoritários e a instalação durável de sociedades marcadas pela submissão.

A Rússia de Putin é um regime autoritário abominável. Mas não é comparável à Alemanha de Hitler; seu hegemonismo pan-eslavo não é como a vontade hitleriana de colonizar a Europa e escravizar os povos racialmente inferiores. Qualquer hitlerização de Putin é excessiva. Estamos em um mundo dominado por antagonismos entre superpotências e entregue aos delírios religiosos, étnicos, nacionalistas, racistas.

Por mais repugnantes que sejam as superpotências, por razões diversas, a pacificação de seus conflitos é uma condição sine qua non para evitar desastres generalizados. Devemos buscar um compromisso. A humanidade não seria salva com isso; ganharia o adiamento da sentença e quem sabe uma esperança.

Tradução de Clara Allain

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