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Partido Republicano

Audiências do 6 de Janeiro lembram tradição de teatro político nos EUA

Transmissão ao vivo de audiências da invasão do Capitólio traz depoimentos de Watergate à memória

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Lúcia Guimarães
Nova York

Audiências públicas de investigações no Capitólio representam uma tradição de teatro político americano desde a segunda metade do século 20, período em que começaram as transmissões pela TV.

Na década de 1950, quando os EUA tinham metade da população atual, de 332 milhões, um público médio estimado em 80 milhões de pessoas acompanhou as sessões do subcomitê liderado pelo senador Joseph McCarthy, que selou sua infâmia com a Caça às Bruxas, a perseguição anticomunista a intelectuais, figuras de Hollywood, integrantes do governo federal e das Forças Armadas.

O advogado John Wesley Dean faz juramento antes de testemunhar no Senado para o comitê de investigação de Watergate, em Washington
O advogado John Wesley Dean faz juramento antes de testemunhar no Senado para o comitê de investigação de Watergate, em Washington - George Tames - 25.jun.73/The New York Times

Mas foi a investida contra os militares que marcou a virada da opinião pública, simbolizada pelo momento em que um discreto advogado do Exército perdeu a paciência depois de McCarthy insinuar que um jovem advogado de seu escritório era membro do Partido Comunista.

"Vamos não assassinar o jovem além desse ponto. O senhor não tem senso de decência, afinal? Não lhe sobrou qualquer senso de decência?", questionou Joseph Welch em junho de 1954, furando o balão de impunidade que já durava mais de dois anos, destruiu reputações e tornou impossível para um grande número de profissionais conseguir trabalho. Depois, colegas do Partido Republicano se voltaram contra McCarthy, que foi censurado no Senado e morreu de complicações por alcoolismo três anos depois. A frase de Welch sobre "o senso de decência" entrou para o vocabulário político americano.

Esta semana marca os 50 anos de um arrombamento que pôs fim à Presidência de Richard Nixon. Cinco trapalhões contratados pela Casa Branca foram presos em flagrante, em 17 de junho de 1972, colocando escutas na sede do Partido Democrata, no complexo de edifícios Watergate, em Washington.

Não era a primeira incursão do presidente em métodos ilegais para conseguir informações, perseguir e punir adversários. Mas a execução tosca da invasão, que visava minar a candidatura do democrata George McGovern nas eleições daquele ano, deu origem a meses de esforço para acobertar o crime e blindar Nixon. Ele se reelegeria de lavada, vencendo McGovern em 49 dos 50 estados.

"Lembre que os americanos, na maior parte, ignoraram o escândalo de Watergate durante um ano", diz à Folha John Dean, ex-conselheiro jurídico da Casa Branca de Nixon. Numa conversa por telefone de sua casa em Beverly Hills, na Califórnia, Dean joga água fria no clima de expectativa que precedeu a audiência ao vivo do comitê da Câmara encarregado de investigar a invasão do Capitólio, em janeiro de 2021.

A primeira transmissão, na última quinta (9), em horário nobre, foi comparada às audiências de Watergate, em 1973, que eletrizaram tardes antes marcadas pelas soap operas, as mornas telenovelas americanas.

"Quando chegou a minha vez de depor", lembra Dean, "o público já chegava a 85 milhões". "Mas não tenho uma frase de efeito boa sobre a importância dessas audiências do 6 de Janeiro", diz o autor da frase de efeito mais famosa dos depoimentos de Watergate: "Comecei por dizer ao presidente que havia um câncer crescendo na Presidência e, se o câncer não fosse removido, o próprio presidente seria morto por ele".

Dean foi a testemunha mais importante para incriminar Nixon. Ele era um advogado inexperiente de 31 anos quando foi nomeado por ele em 1970 e nem sempre era notificado dos truques dos capangas do presidente. Mas foi instrumental nas ações de acobertamento e renunciou em abril de 1973, quando sua memória foi decisiva para colocar Watergate num contexto maior de criminalidade na Casa Branca.

Em troca da delação, Dean se confessou culpado de uma só acusação –obstrução de Justiça. Por pagar pelo silêncio dos invasores de Watergate, pegou uma pena leve que cumpriu, de fato, ao longo de quatro meses, sob o programa de proteção a testemunhas, em razão de ameaças de morte.

Sobre a calma metódica que exibiu diante das câmeras naquele junho de 1973, Dean, que já havia trabalhado como assessor jurídico no Congresso, diz que sabia navegar naquele ambiente. "E eu não me considerava importante. O que importava ali era educar o público americano."

Hoje, 50 anos depois, o cenário em um país polarizado é outro. A rede de cabo Fox News, com sua audiência cativa do público trumpista e com papel ativo no compartilhamento de mentiras sobre a vitória legítima de Joe Biden que inflamaram a invasão do Capitólio, foi a única a não transmitir a audiência da quinta-feira, que interrompeu também a programação das três principais redes de TV aberta.

É cedo para comparar as audiências atuais ao impacto de Watergate. Estimativa preliminar da Nielsen calcula o público de quinta em 20 milhões. É um público maior do que o esperado por analistas, mas bem menor do que o dos últimos debates presidenciais, vistos por 63 milhões a 73 milhões de pessoas.

Há, porém, um detalhe em comum. Em julho de 1973, as sessões públicas de Watergate enveredaram pelo terreno do entretenimento, quando o lendário anfitrião de talk show Dick Cavett levou as câmeras do seu programa para dentro da sala do comitê do Senado no qual desfilavam as testemunhas.

Cavett, talvez o mais intelectual de todos os anfitriões da noite na TV americana, orquestrou com humor fino as entrevistas com protagonistas do que muitos consideram o escândalo do século. Na semana passada, seu amigo Stephen Colbert, popular apresentador de talk show, decidiu entrar ao vivo em seu programa normalmente gravado à tarde, para destacar a importância da investigação do 6 de Janeiro.

Talvez a comparação mais apropriada ao clima de erosão democrática e impunidade que culminou no ataque ao Legislativo americano esteja em outra temporada de audiências públicas, as do escândalo Irã-Contra, no verão americano de 1986. A estrela dos interrogatórios naquele ano era o coronel Oliver North, facilitador, na Presidência de Ronald Reagan, da venda ilegal de armas ao Irã para financiar ajuda secreta aos contras na Nicarágua. Beligerante e cínico nas audiências, North vestiu o manto de caubói anticomunista justiceiro. Foi condenado e nunca passou um dia na prisão.

Mas um contraste do 6 de Janeiro com Watergate é mais relevante. Nixon praticou crimes e renunciou sob pressão de correligionários que o abandonaram. Trump, o primeiro presidente da história americana a convocar um motim para derrubar um governo eleito, segue impune e apoiado pelo Partido Republicano.

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