Descrição de chapéu China

Visita de Nixon à China há 50 anos abria país asiático e mudava o mundo

Washington e Pequim teriam hoje lições a tirar da viagem de presidente americano, mas provavelmente não o farão

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São Paulo

"NIXON ESTÁ NA CHINA". Assim, em letras garrafais, era a manchete desta Folha há 50 anos, em fevereiro de 1972. Por dias a fio a viagem do então presidente americano Richard Nixon ao gigante asiático ocupou o espaço mais importante do jornal com adjetivos como histórico. Em 28 de fevereiro, o maior título da primeira página dizia: "Ontem foi o dia que mudou o mundo".

Era essa a percepção de quem via um líder americano ir a Pequim —sobretudo "um conhecido anticomunista", como diz a própria Richard Nixon Foundation— encontrar-se com Mao Tse-tung, líder da Revolução Chinesa, o que parecia alterar de forma significativa a ordem geopolítica.

President Nixon and Pat Nixon, Pat Nixon, William Rogers, Chinese officials, Pat Buchanan, Oliver Atkins, Ron Walker, and entourage at the Ba Da Ling portion of the Great Wall. February 24, 1972. WHPO 8548-26A
Presidente dos EUA Richard Nixon ao lado de sua mulher, Pat (de vermelho), juntou de outras autoridades chinesas e americanas, na Muralha da China em 1972 - Byron Schumacher/Casa Branca

O mundo, afinal, estava em plena Guerra Fria, e o líder do bloco capitalista entrava em solo supostamente inimigo para ver o chefe da nação comunista mais populosa do mundo, fechada após mais de duas décadas de isolamento que se seguiram à Revolução de 1949.

Analistas apontam que a viagem do mandatário americano, entre 21 e 28 de fevereiro de 1972, ajudou a reabrir a China ao mundo e, no limite, deu o pontapé para que o país viesse a se transformar na superpotência que é hoje.

"Se não fosse por esse marco, as reformas da China e abertura para o mundo exterior não teriam sido possíveis", diz o professor Ren Xiao, diretor do Centro de Política Externa Chinesa na Universidade Fudan, em Xangai. "A histórica visita do presidente Nixon e os esforços dos líderes dos dois países juntos fizeram com que esse resultado fosse possível."

Mas Gina Anne Tam, pesquisadora do Comitê Nacional das Relações EUA-China e professora da Universidade Trinity, no Texas, é mais comedida quanto à importância do americano. "Apesar de ter sido um momento importante, talvez estejamos dando crédito demais aos EUA no que foi um momento de transição com muitas camadas para a própria China." Ela diz acreditar que as reformas introduzidas por Deng Xiaoping ao final daquela década aconteceriam de uma maneira ou de outra.

Se a viagem soa estranha por ter aproximado dois países antagônicos em meio à Guerra Fria, é justamente aos olhos do conflito que ela se justifica. Isso porque os americanos aproveitaram entraves entre os chineses e a União Soviética para tentar cooptar Pequim e reduzir a esfera de influência do Kremlin.

O americano já vinha tentando se aproximar da China mesmo antes de ser eleito, e em 1967 escreveu na Foreign Affairs, revista do establishment da política externa americana, que "não existe lugar nesse pequeno planeta para que 1 bilhão de seus cidadãos potencialmente mais capazes vivam em raivoso isolamento".

Mao Tsé-tung e Richard Nixon em encontro histórico em Pequim, na primeira visita de um presidente americano à China - AFP

Nixon —que ficaria mais conhecido na história por renunciar em 1974, em meio ao escândalo de Watergate— assumira em 1969 em meio à pressão contra a Guerra do Vietnã e à ebulição de uma sociedade com protestos em massa e o assassinato de Martin Luther King Jr.

Do outro lado do Pacífico, a China de Mao vivia a turbulenta Revolução Cultural, que tentou fundar uma nova sociedade com base em valores comunistas pela extinção de qualquer traço cultural burguês, mas acabou por mergulhar o país no caos, uma década depois da chamada Grande Fome —que deixou dezenas de milhões de mortos, sem consenso sobre o número exato.

Os preparativos para o improvável encontro incluíram uma visita secreta à China do assessor de segurança nacional de Nixon, Henry Kissinger, um dos nomes mais importantes da história da diplomacia americana.

Ao fim de uma semana, os dois países abririam canais diplomáticos. Na ocasião foi assinado o Comunicado de Xangai, que pregava a normalização das relações e, sobretudo, o reconhecimento de que Taiwan faz parte da China, o que abriria caminho sete anos depois para que os EUA reconhecessem formalmente a legitimidade do Partido Comunista no comando —algo considerado como traição pelos nacionalistas refugiados em Taiwan.

Hoje, cinco décadas depois, China e EUA se encontram no momento diplomático mais distante desde aquela viagem, como rivais acusando-se mutuamente de violações de direitos humanos, em batalha aberta pela expansão de suas respectivas zonas de influência e protagonizando uma espécie de nova Guerra Fria.

Para especialistas, Pequim e Washington poderiam tirar lições daquele encontro para melhorar o ambiente global —mas provavelmente não o farão.

"A visita de Nixon à China mostra a importância que a diplomacia pode ter na estratégia de um país", diz Neil Thomas, especialista em China do grupo de análise de risco Eurásia. "Tanto os EUA quanto a China se beneficiariam de um diálogo constante que ao menos garantisse comunicação direta e aumentasse a clareza sobre as políticas, preferências e limites um do outro. Mas as chances de um encontro Biden-Xi ter um impacto positivo similar ao do encontro Nixon-Mao são remotas."

À época, os dois países tinham como motivação principal conter a União Soviética, e, hoje, sem uma ameaça comum a ambos, é difícil pensar nessa aproximação. (A principal herdeira da URSS, vale dizer, recentemente firmou uma "amizade sem limites" com Pequim.)

Aliás, até há uma, que afeta toda a humanidade: as mudanças climáticas, que têm causado destruição em eventos extremos nos dois países. "É possível que a crise do clima force os dois países a trabalharem de forma mais próxima, mas as políticas internas dos dois lados jogam esses problemas existenciais na arena de competição geopolítica", diz Thomas.

Para Gina Tam, a viagem de Nixon mostra o quanto interações pessoais são importantes na diplomacia. "Mesmo antes da pandemia, as políticas tanto dos EUA quanto da China fecharam as portas para essas interações —jornalistas, acadêmicos, estudantes, viajantes", diz. "Isso é crucial para o engajamento e para uma política externa mais produtiva."

O cenário atual, porém, é completamente distinto do de cinco décadas atrás. E quem diz isso é uma das pessoas que viram mais de perto as reuniões entre Nixon e Mao em 1972. Chas Freeman, então intérprete de Nixon que depois viria a ser embaixador dos EUA na China, comparou os dois momentos em um seminário recente sobre as relações entre os dois países.

Em 1972, os EUA estavam preocupados com a fraqueza e o atraso da China; "agora, estamos apreensivos com sua força e avanço tecnológico". Na época, americanos estavam em posição superior nas negociações; agora, devem conversar de igual para igual, o que traz "problemas para os dois se ajustarem".

Além disso, a preocupação era o resultado da exclusão da China do modelo de mundo proposto por Washington. "Hoje, os EUA estão obcecados com as consequências da inclusão da China na governança global e regional".

Para Freeman, as relações entre os dois países "estão próximas de retornar aos estereótipos falsos e à hostilidade irracional que Nixon e Mao tentaram deixar de lado cinco décadas atrás. Isso promete tornar o mundo um lugar muito mais perigoso e menos próspero."

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