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Livro sobre a Venezuela precisava de mais coragem para mostrar o fim do túnel no país

Chavismo criou quadro que inspira visão radical de democracia como única terapia possível

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São Paulo

A ditadura venezuelana já provocou tamanho cansaço que o chamado socialismo bolivariano se exauriu como história de mau gosto. Não é possível, no entanto, apenas ignorá-la. Existe por detrás do regime implantado por Hugo Chávez em 1999 e prosseguido desde 2013 por Nicolás Maduro a maior tragédia humanitária em curso na América Latina.

O poder aquisitivo da população é corroído por uma inflação a nível estratosférico. A produção de petróleo, a maior riqueza nacional, decresceu ao nível de 1943. Quase um quinto da população se exilou por razões econômicas e os que ficaram estão sujeitos à tragédia da fome.

Esse quadro inspira uma visão radical de democracia como única terapia capaz de tirar o país do buraco em que o enfiaram. Mas não é claramente isso que propõem Paulo Velasco e Pedro Rafael Pérez, organizadores de "A Venezuela e o Chavismo em Perspectiva: Análises e Depoimentos".

Membros da guarda bolivariana erguem as mãos em desfile para celebrar 20 anos da vitória do chavismo contra tentativa de golpe, em Caracas - Federico Parra - 13.abr.22/AFP

Faltou um pouco mais de coragem política para que o livro nos fizesse enxergar, sem eufemismos, o final do escuro túnel venezuelano. Vejamos um detalhe. Não adianta os autores qualificarem o regime de ditadura se não entram nos mecanismos que impedem o regime bolivariano de aceitar alternativas contrárias a suas conveniências eleitorais.

Pouco conta um levantamento de todas as iniciativas externas para encontrar uma solução de compromisso se a partir do Palácio de Miraflores não há o sinal verde para a alternativa de poder. Tentaram arbitrar a Unasul, o Vaticano, o Grupo de Montevidéu, a Noruega e outros parceiros diplomáticos da boa vontade. Se todos fracassaram é porque o establishment bolivariano só discutiria caso se mantivesse no poder, mesmo se em minoria.

Um dos fatores para essa intransigência foi o militar. Nesse ponto, que os organizadores mencionam com honestidade, há na Venezuela 2.000 generais, e os militares são responsáveis pelas empresas que distribuem alimentos e remédios. A hierarquia fardada levaria um tombo em caso de democratização, e é compreensivelmente por isso que ela confunde o governo ideal com a burocracia que a corrompeu.

É também impossível juntar essas questões com a incompetência da estatal do petróleo, sobre a qual o livro fala pouco. Ela está ruindo em baixa produtividade; tornou-se cabide para pendurar corruptos.

Faltaria mencionar a cereja de um bolo sobre a qual o livro é omisso: o parentesco de setores bolivarianos com o narcotráfico, como indicou —e os EUA deram ao episódio bastante publicidade— a prisão de dois sobrinhos da mulher de Maduro que negociavam cocaína. Digamos que seja mentira. Seria preciso justapor verdades incontestáveis que o regime não produz, e é por isso que ele afunda na incredulidade.

Vejamos uma delas, sobre a qual os organizadores do livro se omitem feio. A reforma do Judiciário não foi feita por Chávez para criar juízes eleitos em lugar dos nomeados. Em verdade, ela triplicou o número de ministros da Corte Suprema para impedir que o governismo ficasse em minoria.

No gargalo pelo qual engasga a percepção mais saudável da Venezuela está o equívoco de acreditar que o regime é de esquerda e que por isso precisa ser incondicionalmente defendido. Não. A Venezuela não é do bem por estar ao lado de Cuba e não reúne atributos éticos porque pratica uma retórica falsamente libertadora.

Os organizadores não são os únicos que caem nessa arapuca, ao considerarem, por exemplo, que o Mercosul e a União Europeia são entidades "neoliberais". Isso não é ser de esquerda.

Um último conjunto de observações. Parte dos capítulos é redigida em castelhano. Pode-se argumentar que o idioma original reforça o conteúdo das críticas que partem de venezuelanos ou moradores de outras nacionalidades. Mas é também misturar dois idiomas (castelhano e português) numa única designação de fatos econômicos e institucionais, que passam a ter duas maneiras de serem designados. Isso escorrega para um erro de edição.

É uma pena, porque estão em castelhano pequenas preciosidades, como a do estudante equatoriano que nos inícios do chavismo saiu às ruas, como jovem de esquerda, para protestar contra a decisão autoritária do próprio Chávez de tirar do ar a RCTV, rede privada responsável pelo mais alto padrão de qualidade no país.

O que machucou o estudante não foi a decisão equivocada de calar uma voz que fazia oposição ao governo. Era, bem mais que isso, a demonstração de que as narrativas só seriam aceitas pelo regime caso laudatórias ou favoráveis; se caíssem no viés oposto, as bocas seriam fechadas por meio da censura.

Hugo Chávez não tinha na época uma oposição tão numerosa e forte para lançar mão do recurso. E se o fez, é porque germinava na mentalidade de seu grupo político a semente da ditadura em que, afinal, a Venezuela realmente se transformou.

A Venezuela e o Chavismo em Perspectiva - Análises e Depoimentos

  • Autor Paulo Afonso Velasco Júnior e Pedro Rafael Pérez Rojas Mariano de Azevedo (org.)
  • Editora Appris
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