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Rússia

Morte de Gorbatchov carrega simbolismos de fim da ordem pós-Guerra Fria

Ex-líder soviético, morto nesta terça, manteve posições contraditórias sobre Kiev e as tensões com Moscou

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Angelo Segrillo

Professor de História da USP e autor dos livros "De Gorbachev a Putin" e "Os Russos"

A morte de Mikhail Gorbatchov neste período da Guerra da Ucrânia é carregada de simbolismos.

Pode-se dizer que Misha —diminutivo carinhoso de seu nome em russo— mudou o mundo com sua perestroika. Aquele processo político não só reformou internamente a União Soviética, mas também mudou radicalmente as bases da relação URSS-Ocidente. A tendência passou a ser de aproximação e de uma convivência menos conflituosa entre os países daqueles dois blocos do mundo bipolar da época.

Muito desse espírito de aproximação se manteve no período pós-Guerra Fria. Com todos os percalços e tropeços, de modo geral, as relações entre Rússia e Ocidente se mantiveram em patamar amistoso nos anos 1990 e parte dos anos 2000. A Guerra da Ucrânia em 2022 foi um rompimento radical e estrondoso desse espírito —que já vinha sofrendo abalos, especialmente a partir de 2014, quando da anexação da Crimeia.

Mikhail Gorbatchov discursa em evento da União Soviética em 1991 - Vitali Armand - 27.ago.1991/AFP

Representaria a morte de Gorbatchov simbolicamente o fim definitivo do restante daquele horizonte de aproximação iniciado com a perestroika e o início de uma nova fase basicamente confrontacional da grande potência eurasiana com os países ocidentais? É o que veremos.

A morte é simbólica também devido à relação do ex-governante soviético com o atual presidente russo. Ela revela muitas contradições e mudanças ao longo do tempo. Ao Vladimir Putin assumir o poder no início dos anos 2000, Gorbatchov foi bastante receptivo ao novo líder.

Primeiramente porque tinha péssima relação com o presidente anterior a Putin, Boris Ieltsin. Durante a perestroika, Ieltsin tinha disputado o poder com Gorbatchov até conseguir alijá-lo completamente no final de 1991, com a desintegração da URSS e o surgimento da nova Rússia independente sob seu comando.

Ao longo dos anos 1990, Gorbatchov foi crítico da "terapia de choque" e rápida privatização realizada por Ieltsin que, segundo ele, era responsável pela grande depressão econômica de Moscou na época (a queda do PIB da Rússia na década de 1990 foi maior que a dos EUA na década de 1930 da Grande Depressão).

Quando o novo presidente Putin emergiu com políticas de recuperação da indústria e empresas russas, uma política externa mais assertiva e voltada para os interesses nacionais, Gorbatchov aplaudiu. Entretanto, à medida que o autoritarismo do político foi se revelando mais forte, principalmente durante os grandes protestos que acompanharam as eleições de 2011 e 2012, o ex-líder foi se tornando mais crítico.

Não se transformou em inimigo de Putin, mas o que poderíamos chamar de um crítico leal.

Em relação a Kiev e a seu conflito com Moscou, Gorbatchov manteve posição contraditória. Ele apoiou a "reunificação" da Crimeia após um referendo com a população local. Apoiava-se no fato de que a península é habitada majoritariamente por russos étnicos e tinha sido por séculos parte da Rússia até que Khruschov, com um ato administrativo, a passasse à Ucrânia em 1954.

Por outro lado, Gorbachov —cuja mãe e esposa eram ucranianas— se mostrava partidário da manutenção de boas relações com Kiev e criticava a abordagem bélica com o país vizinho.

Em 2022, com 91 anos e sérios problemas de saúde, o político quase não se comunicava em público e, portanto, não deu declaração oficial sobre a Guerra da Ucrânia. Mas há várias descrições por terceiros próximos ao ex-líder soviético que indicam que ele era crítico de mais este aprofundamento do caráter bélico na relação.

Até que ponto esse silêncio final de Gorbatchov era resultado de sua condição de saúde e quanto isso poderia refletir também a total censura em Moscou a críticas sobre a "operação especial militar na Ucrânia" —como o regime de Putin define o conflito— é simbólico das tensões deste momento em que Gorbatchov deixa o mundo que ele contribuiu para mudar.

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