Descrição de chapéu The New York Times

Tiroteios 'fake' nos EUA preparam um policial para um de verdade?

Agentes são treinados para saber como agir diante do estresse de um ataque; desde 2017, dezenas de milhões de dólares foram gastos pelo governo em cursos desse tipo

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The New York Times

Os policiais rastejaram pelo corredor da escola notavelmente realista, com os ouvidos atentos para imitações de tiros. Evitando um boneco do tamanho de uma criança, eles avançaram para a sala de aula onde um ator estava gritando.

"Tiros disparados", falou o instrutor, incitando os oficiais para o que na vida real seriam tiros. "O que devemos fazer?"

Os policiais –muitos dos quais nunca dispararam sua arma contra uma pessoa, muito menos foram alvejados– devem responder a essa pergunta corretamente. Quer chegue uma dúzia de agentes ou apenas um deles, o treinamento determina que eles devem agir, mesmo correndo o risco de morrer. O tiroteio numa escola em maio em Uvalde, no Texas, em que 19 crianças e dois adultos morreram enquanto os policiais hesitavam, demonstra o preço das falhas.

Police officers in an active school shooter scenario at the State Preparedness Training Center in Oriskany, N.Y., June 29, 2022. The 1,100-acre, $50 million facility in upstate New York simulates a terrifying set of scenarios, from terrorist attacks to flash flooding. (Juan Arredondo/The New York Times)
Policiais em treinamento para lidar com tiroteios em massa em Nova York - Juan Arredondo/The New York Times

O Centro de Treinamento de Prontidão do Estado, em Oriskany, em Nova York, é onde os terrores do futuro são simulados, estudados e, talvez, evitados como parte de uma vasta infraestrutura para tragédias. Desde 2017, dezenas de milhões de dólares foram gastos pelo governo dos Estados Unidos em treinamento para tiroteios em massa, e os estados gastaram ainda mais.

Enquanto alguns esforços visam a prevenção –uma nova unidade de terror doméstico dentro da Divisão de Segurança Interna e Serviços de Emergência do Estado de Nova York coleta informações de serviços sociais, escolas e departamentos de polícia para identificar ameaças–, a maioria acontece apenas depois que um ataque começa.

Em todo o país, as escolas ensinam as crianças a fugir, a se esconder e a lutar, e os hospitais se preparam para que classes inteiras sejam atendidas. Mas, enquanto as crianças voltam às aulas neste mês, as memórias do sangrento ano que passou deixam claro que esses esforços por si só não podem conter a onda de violência.

A instalação de 445 hectares, que custou mais de US$ 50 milhões, simula um conjunto aterrorizante de cenários, de ataques terroristas a inundações repentinas. Sua maior glória é o Cityscape, um hangar de avião transformado numa pequena cidade, completo com um bar, uma escola e um shopping center –tudo construído para ser bombardeado e baleado. Há fotos emolduradas nas paredes, xícaras de café nas mesas e, sobre a mesa de um professor, uma cópia em VHS do filme "Kazaam", de Shaquille O'Neal.

"Tomamos muito cuidado para torná-lo o mais realista possível", disse Jackie Bray, comissária da Divisão de Segurança Interna e Serviços de Emergência, que supervisiona o treinamento dos policiais e trabalhadores de emergência do estado.

"Uma das razões pelas quais treinamos, e treinamos consistentemente, é que pedimos às pessoas que façam coisas que realmente vão contra seu instinto", acrescentou Bray.

Se esforços como esses serão suficientes é difícil dizer.

Não há padrões nacionais para o treinamento da polícia, levando a variações cidade a cidade e estado a estado. A maioria das forças é pequena e rural, sem recursos ou apoio organizacional dos departamentos municipais. E embora o estado cubra o treinamento e até mesmo forneça alojamento para os oficiais de Nova York, alguns departamentos com poucos recursos ainda têm dificuldades para conseguir esse benefício.

Nem mesmo a melhor preparação é garantia de sucesso: uma análise do New York Times de 433 tiroteios em massa reais e tentativas de 2001 a 2021 mostrou que quase 60% terminaram antes da chegada da polícia. Ao todo, os dados mostraram que a polícia subjugou os atiradores em menos de um terço dos ataques.

"Você vê essas histórias, e elas são terríveis, e espero que nunca seja algo com que você tenha de lidar", disse o sargento Chris Callahan, do Departamento de Polícia de Saratoga Springs, que fez um curso de atirador ativo em junho. "Você espera que, se isso acontecesse –se eu for chamado–, eu seja capaz de aproveitar esse treinamento."

A trainer, police officer and actors in a knife attack scenario at the State Preparedness Training Center in Oriskany, N.Y., June 29, 2022. The 1,100-acre, $50 million facility in upstate New York simulates a terrifying set of scenarios, from terrorist attacks to flash flooding. (Juan Arredondo/The New York Times)
Policial e atores participam de treinamento em um cenário de ataque com faca em Oriskany, Nova York - Juan Arredondo - 29.jun.22/The New York Times

O dilema não é novo. Em um relatório de 1947, o historiador militar S.L.A. Marshall observou que menos de 25% das tropas de combate encontraram coragem para realmente disparar suas armas durante a Segunda Guerra Mundial. Embora sua metodologia não tenha se mostrado científica, a conclusão persistiu como um símbolo da propensão humana a hesitar diante do perigo.

Tiroteios em massa criam um enigma semelhante. Quando um atirador atacou a boate Pulse em Orlando, na Flórida, em 2016, a polícia esperou quase três horas para entrar enquanto as vítimas sangravam. Dois anos depois, quando um atirador adolescente atacou estudantes da Escola Secundária Marjory Stoneman Douglas em Parkland, na Flórida, matando 17 pessoas, um policial armado recuou para um local seguro. Em maio, a nação assistiu a centenas de oficiais em Uvalde parados durante quase uma hora na Escola Elementar Robb.

Quando uma pessoa encontra uma ameaça, os olhos se dilatam e a frequência cardíaca aumenta, preparando o corpo para entrar em ação. A resposta ao estímulo do cérebro é ampliada, mas o córtex pré-frontal é restrito, comprometendo a tomada de decisões e a coordenação olho-mão.

Equipes especializadas militares e da SWAT muitas vezes procuram recrutar pessoas que são naturalmente frias sob pressão. Mas os oficiais de base pouco podem fazer diante da biologia, disse Arne Nieuwenhuys, que estuda o desempenho humano na Universidade de Auckland, na Nova Zelândia. "Sua capacidade de controlar deliberadamente sua resposta sob alto estresse é simplesmente muito limitada", explicou ele.

Para os que vão ao Centro de Treinamento de Prontidão, aprender como seus corpos respondem ao estresse é apenas uma das muitas lições de cursos que duram de dois a cinco dias.

Idealizado pelo governador George Pataki após os ataques de 11 de Setembro, o centro foi inaugurado em 2006 para permitir que policiais, bombeiros e médicos de emergência treinassem juntos. O número de matrículas nunca atingiu os 25 mil por ano que o governador esperava; seu pico, em 2019, foi a metade disso. O centro foi construído com uma combinação de dinheiro estadual e federal e oferece treinamento gratuito para todos os policiais de Nova York.

Nos treinamentos de atiradores ativos, grupos de 24 pessoas andavam por corredores e salas vazias. Eles praticam a reação a incidentes domésticos e a relatos de tiros em shopping centers e escolas. Após o feedback dos instrutores, eles executam os exercícios novamente.

Em um cenário, os policiais devem responder a tiros em um shopping. Eles chegam num silêncio assustador. Atentos a pistas, vasculham cada loja –o café, a loja de roupas militares– antes de encontrar e enfrentar o atirador escondido na vitrine de uma agência de viagens.

A necessidade desse tipo de engajamento começou após o massacre da Escola Secundária Columbine em 1999, no Colorado. Os policiais fizeram o que foram treinados para fazer: isolar o perímetro. Então esperaram por uma equipe da SWAT. Nesse meio tempo, quase uma dúzia de estudantes morreram.

Stallman, o diretor assistente do centro, vem instruindo oficiais desde aqueles primeiros dias e se lembra de "muita resistência".

"Foi extremamente difícil convencer os policiais de que eles precisavam entrar lá" porque há anos os policiais deixaram essas tarefas para equipes especializadas, disse ele.

"'Eu não tenho o colete'", queixaram-se os oficiais, segundo o diretor. "'Eu não tenho o treinamento que eles têm. Eu não tenho as armas de longo alcance que eles têm. Agora você está me dizendo que eu preciso entrar e fazer o trabalho deles?'"

Suas preocupações não eram infundadas: uma revisão de 84 ataques de atiradores ativos pelo Centro Avançado de Treinamento de Resposta Rápida da Polícia, na Universidade Estadual do Texas em San Marcos, mostrou que um terço dos policiais que reagiram sozinhos foram baleados.

"Alguns departamentos não mudaram necessariamente seu pensamento; alguns departamentos foram um pouco ambíguos sobre se esse policial deveria esperar" por policiais adicionais, disse Chuck Wexler, diretor executivo do Police Executive Research Forum, um grupo de políticas de aplicação da lei. "Na esteira de Uvalde, se havia alguma ambiguidade antes, não há mais sobre a responsabilidade do primeiro policial respondente."

No passado, os programas de treinamento tinham como objetivo vacinar os oficiais com seu próprio estresse –a ideia era que um indivíduo exposto poderia adquirir imunidade à resposta de lutar ou fugir. Mas relativamente pouca atenção foi dada à avaliação do impacto do treinamento no trabalho policial na vida real.

"Nós nem mesmo coletamos dados sobre tiroteios policiais, muito menos analisamos se o treinamento que o policial teve foi fundamental para o sucesso ou o fracasso", disse Stephen James, pesquisador da Universidade do Estado de Washington que estuda estresse e políticas de policiamento.

James, em vez disso, prefere o treinamento de habilidades que incorpora quantidades gerenciáveis de estresse para aumentar a confiança. Programas realistas como os de Oriskany podem ser úteis, disse ele, se seguirem currículos baseados em evidências.

"O que precisamos fazer, em vez de tentar acostumar as pessoas ao lado do estresse da equação, é reforçar o lado dos recursos da equação", explicou.

Nieuwenhuys, o pesquisador da Nova Zelândia, começou a notar algo semelhante. Em uma simulação de 2010 que avaliou a pontaria de policiais diante de um agressor que ocasionalmente atirava de volta, ele descobriu que os policiais eram capazes de melhorar seu desempenho em circunstâncias de alta ansiedade. Os resultados preliminares sugerem que o efeito pode ser replicável em circunstâncias mais graves, acrescenta ele, mas apenas se os policiais receberem o treinamento adequado.

Depois, há a questão crucial de saber se qualquer resultado clínico será replicável quando for necessário.

Katherine Schweit, ex-chefe do programa de atiradores ativos do FBI, acredita que todo treinamento é valioso. Mas, mesmo assim, não há garantias.

"Todos nós queremos uma resposta simples", disse Schweit. "Esse é um objetivo impossível. E a razão de ser impossível é porque não somos máquinas. Somos humanos."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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