Direita na América Latina erra ao colar em Trump, diz ex-premiê espanhol Zapatero

Apoiador de Lula, político viajou ao Brasil para acompanhar eleição e defende protagonismo do país

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São Paulo

O ex-premiê espanhol José Luis Zapatero avalia que a direita latino-americana comete erros em série ao copiar estratégias do ex-presidente dos EUA Donald Trump e abraçar ideias negacionistas —eventual derrota de Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno deste domingo (30) seria, para ele, nova amostra disso.

"As políticas de Trump, do brexit e de Bolsonaro são o mesmo tipo de populismo. Mas o populismo acaba com ele mesmo, porque está fundamentado em teses falsas. Delírios em política acabam sempre em derrota", diz à Folha.

Um dos líderes da esquerda na Espanha, Zapatero está no Brasil para acompanhar o pleito. Apoiador de Lula, ele diz esperar que o Brasil volte a liderar esforços de união internacional caso o petista vença. "Lula era o presidente mais respeitado do mundo. Agora que há um sistema internacional quebrado, ele pode trazer uma grande contribuição para reconstruí-lo."

O ex-premiê espanhol José Luis Zapatero em entrevista durante viagem a La Paz, na Bolívia - Aizar Raldes - 12.mai.22/AFP

Como avalia a onda global de direita que se deu há alguns anos? Temos a tendência de falar em ondas, ciclos. Há na verdade alternância democrática. Se há vitórias consecutivas da esquerda na América Latina é porque a direita e a centro-direita se alinham mais do que nunca à política de Trump. É uma política completamente fora da visão latino-americana.

Construíram uma teoria com o Grupo de Lima que dizia que o problema era o comunismo, quando há capitalismo evidente em toda esquina. Eles perderam o sentido da história. O problema da América Latina é a pobreza, a desigualdade. Se essa é a região onde há mais violência e crime organizado, é porque há uma dificuldade excessiva de ter instituições sólidas, com transparência, sem corrupção.

Em vez de apostar no desenvolvimento econômico, estabeleceram uma cruzada contra algo inexistente e com discurso negacionista —que nega vacinas, diz que se quer o fim da família. Mas a matemática existe. A Terra não é plana. Para mim é uma surpresa que a direita derive por esse negacionismo. É lamentável.

Esse ciclo estaria agora no fim, então? Penso que é algo efêmero. O brexit e a derrota de Trump são provas disso. Na Espanha, o Vox está em declínio. Vamos ver Bolsonaro. Não há como sustentar um projeto político com bases falsas. Se seu projeto político é dizer que George Soros encampa uma ação internacional vacinando e criando coisas contra as famílias —isso é um delírio.

As políticas de Trump, do brexit e de Bolsonaro são o mesmo tipo de populismo. Mas o populismo acaba com ele mesmo, porque está fundamentado em teses falsas. No Reino Unido, pensavam que a economia estancada era culpa de Bruxelas, dos imigrantes. Agora não sabem o que fazer, porque se equivocaram.

Qual a expectativa do sr. para o pleito brasileiro? É uma eleição histórica. Tenho uma relação de anos com o presidente Lula, e sua volta à política para mim é fator de alegria e de esperança. Quando fui presidente de governo, Lula era o presidente mais respeitado do mundo, o que tinha maior capacidade de ser escutado por todos. Agora que há um sistema internacional quebrado, creio que Lula, se ganhar, trará uma grande contribuição para reconstruí-lo.

Que medidas ele pode tomar nesse sentido? Em sua visita ao Parlamento Europeu, no ano passado, Lula explicou a ideia de convocar uma conferência internacional para revisar o sistema multilateral. Ele, o Brasil e a América Latina possuem dois grandes ativos: é uma região em paz, sem conflitos bélicos; e tem capacidade de dialogar com o Oriente, o Ocidente, o norte e o sul.

A América Latina tem boa relação com a China, diálogo com os EUA. A questão estará nas mãos de Lula, porque o Brasil é o país mais importante da região. A tarefa pode soar utópica, ambiciosa, mas é imprescindível porque o desenrolar do século 21 tem se expressado de forma perigosa —se parece mais com a primeira parte do século 20. Parece que agora os objetivos têm mais a ver com a guerra, bloqueios, insegurança, desigualdade.

O Brasil perdeu sua voz e sua influência no mundo.

Acha que há risco de que Bolsonaro não reconheça o resultado das eleições, caso perca? Penso que há muito pouca possibilidade disso. Quando o povo fala, é dificílimo ir contra. Além disso, há as instituições e a comunidade internacional. Penso sinceramente que o resultado será aceito por todos. O caso da invasão do Capitólio, nos EUA, foi uma grande vacina [contra ações golpistas]. A única coisa que eles podem fazer é agir de modo grotesco. Depois, terão de responder na Justiça.

Que peso terá uma vitória ou derrota de Lula para a esquerda a nível global? Lula tem grande apoio popular na Europa —não só na Espanha, mas na Alemanha e na França também. Em sua última viagem, isso ficou muito claro.

É muito importante para a história da política que Lula tenha podido voltar a disputar eleições. Isso foi muito importante para a confiança na política, inclusive para quem é contrário a ele. Os países onde melhor se vive são os com amplo respeito institucional e pouco fanatismo.

O sr. esteve no começo do mês na Venezuela. Como avalia a situação atual do país? A política da Venezuela tem avançado pelo diálogo. Há um diálogo reconstruído com o governo dos EUA. A Colômbia restabeleceu relações diplomáticas. A oposição e o governo estão dialogando. A economia está melhorando. Caminharemos com passo firme na ideia de consenso até as eleições de 2024, nas quais é desejável que todo mundo participe e que as condições sejam democráticas, para os que venezuelanos decidam livremente.

Não se pode decidir o futuro da Venezuela a partir de Washington ou de qualquer lugar fora da Venezuela, ainda que se seja muito crítico com o governo [de Nicolás Maduro]. A Venezuela é uma grande lição de que só o diálogo constrói a política. Quando há um conflito entre duas partes, quase sempre nenhuma das duas tem toda a razão.

Eleições são o único caminho para mudar governos. México e Colômbia tiveram mudanças históricas, e todo mundo aceitou. Isso diz muito da sociedade latino-americana, que às vezes se autocritica demais. A Europa esteve quase 2.000 anos em guerra, nos custou muitíssimo aprender.

Como vê as perspectivas para a Europa? A invasão da Ucrânia pela Rússia foi muito crítica para a União Europeia, porque colocou a Alemanha em uma crise de identidade. Berlim baseava sua fortaleza econômica na energia barata da Rússia e no comércio com a China, e esses dois pilares estão em xeque. Me preocupa também que a guerra e a pandemia tenham gerado uma retração política; vai-se perder tempo ao tentar frear a história, que na verdade não tem freios.

Eu espero que a Guerra da Ucrânia caminhe para um cenário de negociação política. Sempre é difícil dizer isso aos governos, mas não haverá solução militar.

O sr. liderou a Espanha durante a crise de 2008. Vê paralelos entre aquele momento e o atual? Há uma questão de fundo: o Ocidente está perdendo posições no PIB mundial nos últimos 30 anos, o que é inevitável. Foi um fato excepcional que EUA e Europa, que têm 11% da população mundial, tenham tido sessenta e tantos por cento do PIB global nos anos 1960. Era uma anomalia. Estamos agora em 40-40, entre Europa-EUA e países emergentes.

Com isso, países desenvolvidos têm tido endividamento progressivo para manter o nível econômico, mas ficam com capacidade produtiva limitada. Os EUA e a Europa precisam ser conscientes de que há uma nova realidade geopolítica e geoeconômica; 80% da população mundial vive nesses continentes de população jovem, enquanto nos EUA e na Europa há um envelhecimento progressivo. Em 2030, 60% da classe média do mundo vai estar na Índia e na China.


Raio-X | José Luis Zapatero, 62

Foi presidente de governo (premiê) da Espanha entre 2004 e 2011, pelo PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), de esquerda. Nasceu em Valladolid, estudou direito na Universidade de León, onde depois foi professor. Em 1986, foi eleito para o Parlamento, onde permaneceu até 2011. Depois, passou a integrar o Conselho de Estado da Espanha e a atuar em fundações.

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