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Guerra da Ucrânia Rússia

Nobel escapa da armadilha Zelenski e marca Putin como pária

Elevado a herói, presidente da Ucrânia ainda é visto com suspeita no Ocidente

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São Paulo

Vladimir Putin completou 70 anos nesta sexta (7) com um presente do comitê norueguês do Nobel. Ao ungir forças contrárias ao regime do Kremlin com a prestigiosa láurea da Paz, os organizadores selaram simbolicamente o presidente russo como o pária de estimação do Ocidente.

Não que Putin se importe, ao contrário: é excelente para sua retórica de emparedamento da Rússia por um mundo hostil ele ver ativistas contrários a seu governo incensados pelo Ocidente. Naturalmente, num contexto em que ele equivale seu regime à nação.

O ditador belarusso, Aleksandr Lukachenko, em reunião com Putin no balneário de Sochi (Rússia)
O ditador belarusso, Aleksandr Lukachenko, em reunião com Putin no balneário de Sochi (Rússia) - Gavriil Grigorov - 26.set.2022/Sputnik/AFP

No infame discurso no qual decretou a anexação de quatro territórios que não controla totalmente na Ucrânia, na sexta passada (30), o presidente repassou toda sua litania de críticas ao que vê como um conjunto de países subservientes aos Estados Unidos na Europa, que visam ao fim tolher a liberdade russa e enterrar sua herança histórica.

O problema para Putin é que sua retórica tem ressoado por paredes cada vez mais frágeis de uma elite que se mostra crescentemente contrária aos rumos da Guerra da Ucrânia. Não tanto pela violação do Memorando de Budapeste, no qual Moscou entre outras coisas reconheceu as fronteiras ex-soviéticas da Ucrânia, da Belarus e do Cazaquistão em 1994.

Mas há sinais públicos de descontentamento com a guerra e o isolamento internacional aplicado à Rússia. É bom ser claro: os pedidos são mais por uma guerra aumentada do que por uma paz imediata. O beco político parece ser bastante estreito para Putin, que sempre governou pela divisão e luta darwinista entre as facções da elite.

Nesse sentido, para aqueles insatisfeitos em ver seus iates e contas no exterior aprisionadas, a premiação de rivais de Putin apenas confirma que o mundo deles nunca mais voltará ao dia 23 de fevereiro, a véspera da invasão. Para a linha dura, é a confirmação de que é hora de dobrar a aposta.

Significativa também na premiação é a escolha de ativistas da tríade de países originária do antigo Rus de Kiev, depositários de herança linguística, religiosa e histórica comuns. A ditadura de Minsk deixou de ser uma aliada maleável de Putin e tornou-se sua vassala, e a Ucrânia está sob agressão. Em ambos os casos, a motivação central é geopolítica, retomar a profundidade estratégica entre o maior país do mundo e a Europa.

Em particular a escolha do Memorial, uma ONG de direitos humanas fundada ainda nos anos finais do império comunista que foi dissolvida pela Justiça no ano passado. O papel histórico de sua atuação, do apoio a dissidentes presos à defesa dos direitos de homossexuais na Tchetchênia, é enorme.

É o segundo tiro destinado a Putin em dois anos, após a premiação em 2021 do jornalista Dmitri Muratov, que viu seu jornal Novaia Gazeta virar um refugiado digital, proibido de operar em solo russo.

Por fim, o Nobel da Paz mostrou uma argúcia não vista em outras edições, quando por exemplo foi premiado um Barack Obama em seu primeiro ano de governo —ele não viria a merecer o prêmio nem ao fim de oito anos na Casa Branca.

O comitê escapou da armadilha de premiar Volodimir Zelenski, o controverso presidente da Ucrânia transformado em herói no Ocidente por sua resistência obstinada, e amparada por armas americanas, à invasão russa. Fosse ele o laureado, seriam lavados os anos de corrupção e de práticas autoritárias do líder.

Zelenski marcou sua gestão até a guerra por políticas titubeantes, perseguição da oposição e imposição da língua ucraniana a populações russófonas. Não chegou, claro, a executar o genocídio de que Putin o acusa, mas não era exatamente bem-vindo no leste e sul do país.

O líder ucraniano é visto com suspeitas no próprio Ocidente, pelos relatos disponíveis de que ele não é considerado confiável, não divide suas decisões militares com quem as sustenta na prática e age por impulso. Mas é o que se tem para hoje, e sua bravura na resistência basta para a justificativa moral da posição de Washington e aliados.

Além disso, haveria a contradição de transformar em Nobel da Paz um homem em armas, que na véspera havia pedido para que a Otan (aliança militar ocidental) atacasse a Rússia antes que Putin use uma ogiva nuclear contra os ucranianos, ignorando a Terceira Guerra Mundial que tal ato ensejaria —o "Armagedom", como definiu o presidente Joe Biden no mesmo dia.

Mais sentido há em premiar uma ONG que trabalha com a apuração de crimes de guerra atribuídos aos russos, assim como uma figura mais inimputável, como a do ativista belarusso Ales Bialiatski, encarcerado pela ditadura de Aleksandr Lukachenko.

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