Reino Unido viveu instabilidade inédita em 2022, em que até alface derrubou governo

Renúncias de Boris e Truss, aposta em Sunak, morte da rainha e economia em crise marcam ano turbulento para os britânicos

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Milão

Não foi um ano ameno para o Reino Unido. Seja na política, na economia ou na monarquia, 2022 será lembrado pela efervescência que se espalhou das mudanças climáticas às instituições, produzindo números e sentimentos negativos que devem permanecer ao longo de 2023 e podem influenciar o resultado das próximas eleições, em 2024.

Muitas das cifras foram recordes, como as registradas pelos termômetros durante o verão. Três ondas de calor atingiram o país entre junho e agosto, e pela primeira vez na história os britânicos enfrentaram um calor de 40,3°C, medidos em Coningsby.

Em meio a uma emergência nacional —causada pelas crise acelerada pela ação humana, segundo especialistas—, serviços como os trens e o comércio foram afetados por interrupções, com mais de 3.200 mortes associadas ao calor.

Rishi Sunak após votação que o elegeu como o terceiro premiê do Reino Unido em 2022 - Daniel Leal - 24.out.22/AFP

O clima de fritura atingiu também a política, mas não se restringiu ao verão. Em maio, um relatório produzido pelo governo revelou detalhes das festas ocorridas no número 10 da Downing Street, casa oficial do primeiro-ministro em Londres, em 2020 e 2021, durante datas em que os britânicos enfrentavam restrições impostas para controlar o avanço do coronavírus.

Com 60 páginas, o documento mencionava a participação de mais de 80 pessoas ligadas ao governo em comemorações que se estenderam até a madrugada, deixaram paredes sujas de vinho e ocorreram inclusive na véspera do funeral do príncipe Philip.

O então primeiro-ministro Boris Johnson participou de ao menos oito festinhas, e o desgaste provocado pelo escândalo que foi chamado de "partygate" se somou a outras crises acumuladas em seus três anos no cargo. Em julho, depois de ter sobrevivido a um voto de desconfiança pouco antes, foi forçado a renunciar diante de uma debandada de ministros e funcionários.

A instabilidade política que rondava Londres se aprofundou. Em menos de quatro meses, o Reino Unido teve uma sequência de três primeiros-ministros, uma aberração até mesmo para os padrões da Itália, onde a queda do chefe de governo se tornou tão inerente à cultura local quanto a pizza.

Após a saída de Boris, o processo eleitoral interno do Partido Conservador terminou em setembro com a vitória de Liz Truss, então ministra das Relações Exteriores. Terceira mulher a assumir o posto, Truss lançou um plano econômico, chamado de miniorçamento, baseado em corte de impostos e aumento de empréstimos. Foi um desastre que abalou os mercados e levou a libra ao seu menor patamar em quase 40 anos em relação ao dólar.

Alvo de críticas de todos os lados, Truss passou a ser considerada altamente perecível, o que levou ao surgimento de um dos personagens mais surreais deste ano –a alface que sobreviveria à sua permanência no cargo.

Após a comparação entre longevidades ter sido feita pela revista The Economist, o tabloide Daily Star passou a transmitir em tempo real o apodrecimento de uma verdura, enquanto a situação de Truss ficava cada vez mais insustentável. Passados somente 44 dias desde a posse, Truss caiu —e a alface venceu.

O curtíssimo mandato não foi marcado só pelo caos econômico. Dois dias depois de assumir, Truss foi ofuscada pela morte da rainha Elizabeth 2ª, aos 96 anos, acontecimento que parou o país e o mundo. Em meio à inquietação política, o Reino Unido perdia um dos seus maiores símbolos de estabilidade.

A subida ao trono de Charles 3º, menos popular que a mãe e o filho William, deu novo fôlego ao movimento antimonarquia no país, que defende a substituição do regime pela escolha do chefe de Estado por meio de eleições. Seja como for, a coroação do rei e da rainha Camilla —uma virada e tanto para quem um dia já foi odiada pelos britânicos— está marcada para maio de 2023.

No fim de outubro, o ex-ministro das Finanças Rishi Sunak tornou-se o terceiro premiê do ano, após ser indicado pelo Partido Conservador. Milionário, jovem e descendente de indianos, assumiu com a tarefa de tirar o país da crise política, econômica e social.

O ano britânico também foi de indicadores que há tempos não eram observados no país. O principal deles foi a inflação, que atingiu 11,1% em outubro, a maior taxa em 41 anos. A alta do custo de vida tem sido impulsionada pelos preços de alimentos (+16,4%) e de moradia (+11,7%), como eletricidade e gás, um reflexo direto da Guerra da Ucrânia.

O tema é, de longe, a maior preocupação da população. Em dezembro, pesquisa YouGov mostrou que para 66% dos britânicos a economia é o assunto mais importante, seguida pela saúde (47%). No fim de novembro, o desempenho de Sunak era reprovado pela maioria de 51%.

A insatisfação tanto com o custo de vida quanto com o governo se traduz, neste fim de ano, em uma série de greves de trabalhadores de serviços públicos, que pedem reajustes de salários que acompanhem a inflação. Pela primeira vez em mais de um século, até profissionais da enfermagem cruzaram os braços.

Enquanto tentava resistir à pressão dos sindicatos, Sunak anunciava um novo plano para frear a imigração ilegal, outra área que acumulou recordes em 2022 —o ano deve terminar com cerca de 50 mil pessoas chegando ao Reino Unido por barcos que atravessam o Canal da Mancha. Entre as medidas, um comando de militares para atuar na área.

A imigração é o assunto mais importante para apenas 33% dos britânicos, mas é um tema caro ao Partido Conservador e um dos combustíveis que levaram ao brexit. Concretizada em 2020, a saída da União Europeia é considerada um ponto-chave nas razões do ano turbulento por que passou o Reino Unido, e as explicações passam pela linha de que é ruim estar mal acompanhado, mas pior é estar sozinho.

Embora parte dos problemas sejam compartilhados com os vizinhos europeus, como a alta do custo de vida causada pela guerra, os britânicos colecionam desempenhos e perspectivas piores. Enquanto na UE o PIB cresceu 0,2% no terceiro trimestre, entre julho e setembro, no Reino Unido houve queda de 0,3%. A economia britânica vai terminar o ano ultrapassada pela Índia, que se tornará a quinta maior do mundo.

Para a maioria da população, 51%, a saída do bloco europeu foi uma decisão errada, enquanto 34% acreditam que a escolha foi certa —percentual bem inferior aos 52% que escolheram a saída no referendo de 2016.

Economistas preveem que os britânicos só devem sair da recessão na metade de 2024, ano em que as próximas eleições para o Parlamento devem ser realizadas. E, ao que tudo indica, o Partido Conservador, no comando do governo desde 2010, deverá ter dificuldades para manter sua maioria. Ainda segundo o instituto YouGov, 48% dizem que votariam hoje no Partido Trabalhista, a principal legenda da oposição, e somente 23% declaram intenção de voto na sigla dos conservadores.

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