Jacinda sai do poder elogiada no exterior, mas com baixa popularidade na Nova Zelândia

Primeira-ministra consolidou imagem para além da política, mas não deixa sucessor claro em cenário de risco de derrota eleitoral

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São Paulo

O anúncio da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, de que renunciará até 7 de fevereiro, deixando de buscar um terceiro mandato, pegou muita gente de surpresa —no país e fora dele.

Reações vieram de políticos como o presidente americano, Joe Biden, e o premiê australiano, Anthony Albanese, da presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, mas também de figuras como a cantora pop americana P!nk. "Nunca haverá outra como ela", escreveu no Twitter. "Você tem minha admiração, respeito e votos de felicidades para você e sua linda família."

Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, após debate na TV em 2020 - Fiona Goodall - 22.set.20/Pool/Reuters

Mensagens como essa são um sinal de como, em pouco mais de cinco anos de mandato, Jacinda conseguiu construir e consolidar uma imagem para além da política —mas que não refletem de todo a situação interna, na qual a primeira-ministra vinha enfrentando uma série de desgastes, que derrubaram sua popularidade aos índices mais baixos desde que assumiu o poder.

Um dos principais motivos é a alta no custo de vida. Nesta quinta (19), a imprensa local informou que o preço dos alimentos em dezembro subiu 11,3% no acumulado de 12 meses, a maior taxa em 32 anos, obrigando famílias a cortar gastos.

O cenário se repete em outras grandes economias, que também veem abalos políticos. No Reino Unido, por exemplo, a inflação acumulada em 12 meses até outubro chegou a 11,1%, maior nível desde 1981. Nos EUA, chegou a 9,1% em junho passado, um recorde em 40 anos. Os números refletem o abalo nas cadeias de suprimentos causado pela pandemia e pela Guerra da Ucrânia, que paralisaram a economia por meses e encareceram muitos itens e etapas produtivas.

"O indivíduo que viveu durante a globalização em um país desenvolvido não está acostumado com esse aumento de preços", afirma Vinícius Rodrigues Vieira, professor de relações internacionais da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado). "Há 40 anos a inflação não passava de dois dígitos no mundo desenvolvido."

Mas, na Nova Zelândia, a relação entre economia e popularidade dos políticos de turno, comum a todos os países, ganha mais peso e camadas. Primeiro por seu isolamento geográfico —o território é composto de duas grandes ilhas principais no oceano Pacífico.

Nações desenvolvidas, lembra Vieira, terceirizaram ao longo dos anos a produção de industrializados para países com mão de obra mais barata, aumentando a dependência logística. "E o país mais próximo ali é a Austrália, que também tem dificuldades de abastecimento."

Ao lado do vizinho e do Canadá, a nação se desenvolveu mantendo uma economia ligada a agropecuária, alcançando alto nível de produtividade no setor, e importou o modelo político do Reino Unido, com partidos trabalhistas fortes e organizados em torno de sindicatos. "A soma de produtividade e organização para demandar direitos culminou na formação de um modelo de bem-estar social mesmo com uma industrialização abaixo da média da Europa e dos EUA", diz Vieira.

Há, ainda, um aumento marginal da violência no país. "E a primeira-ministra acaba sendo culpada por isso, ainda que não esteja claro que ela adotou políticas que elevaram esse número; a violência sempre aumenta quando a economia vai mal", afirma Eduardo Mello, professor de relações internacionais na FGV (Fundação Getulio Vargas).

Assim, a situação atingiu Jacinda diretamente. Ao anunciar o plano de renunciar, nesta quinta-feira, ainda noite de quarta (18) no Brasil, ela se disse sem energia para continuar no cargo. "Eu sei o que esse trabalho exige. E sei que não tenho mais a energia necessária para fazê-lo da melhor forma. É simples."

Quando chegou ao poder, em 2017, ela ganhou destaque por ser a chefe de Executivo mais jovem do mundo à época. No segundo ano de mandato, deu à luz e não abriu mão de tirar seis semanas de licença-maternidade, deixando o país na mão do vice. Durante a pandemia, em 2020, teve posições duras nas medidas de combate ao coronavírus que colocaram o país em destaque.

A consolidação de sua imagem como um ícone progressista se deu em 2019, quando transmitiu sentimentos de conciliação e união nacional após o massacre de 51 pessoas por um extremista em duas mesquitas na cidade de Christchurch. Após a matança, armas semiautomáticas foram banidas no país.

Mas desgastes com a manutenção por longo período da estratégia de Covid zero, agravados pela situação econômica atual, derrubaram sua popularidade. Sondagem de dezembro pela Kantar One News Polling apontou que só 29% da população escolheria Jacinda para ocupar o cargo mais uma vez —dias antes do pleito de outubro de 2020, quando foi reeleita com uma margem histórica, esse índice era de 55%.

Embora ainda estivesse seis pontos à frente de seu principal opositor, Christopher Luxon, um levantamento paralelo indicou que a aprovação de seu Partido Trabalhista já estava abaixo da do Partido Nacional —agremiação de centro-direita que governava o país antes de sua vitória. Esses resultados dispararam os rumores de que ela poderia renunciar, por mais que ao longo do último mandato não tivesse ajudado a construir um sucessor viável.

"Os dados refletem a migração de eleitores centristas, que estavam com os trabalhistas e passaram para o Partido Nacional", diz Vieira. A política neozelandesa, no entanto, não repete a polarização de outros países, já que a troca de preferência partidária se dá entre duas siglas do mainstream.

O ACT, mais à direita, e o Partido Verde, mais à esquerda, não tiveram grandes abalos de popularidade, e a ultradireita não tem expressão partidária forte —ainda que reverbere em alguma medida na sociedade civil e nas redes sociais, nas quais a renúncia de Jacinda foi citada como uma "vitória da liberdade". Em junho do ano passado, o jornal britânico The Guardian noticiou que ameaças contra a primeira-ministra haviam quase triplicado em três anos, em uma reação às campanhas de vacinação.

A renúncia dá ao Partido Trabalhista a oportunidade de construir uma narrativa de mudança antes das eleições de 14 de outubro. "Ela está olhando as pesquisas e sabe que deve perder. Então, dá ao sucessor uma chance de governar por um tempo e construir popularidade para tentar salvar a legenda", diz Mello. "Ao mesmo tempo, saindo com a popularidade relativamente alta, tem um futuro político —talvez fora do país."

Em seu pronunciamento, Jacinda disse, claro, acreditar na vitória trabalhista. O vice-premiê e ministro das Finanças, Grant Robertson, já disse em comunicado que não deve ser o candidato da legenda. Para o pleito interno do partido, a ser realizado no domingo (22), especulações apontam para Chris Hipkins, que ajudou a liderar o combate à Covid e hoje é titular de Educação e Polícia, e Kiri Allen, hoje na Justiça. A primeira-ministra disse que se manterá neutra na disputa.

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