Afeganistão quer apagar mulheres, diz agente brasileira dos Médicos Sem Fronteiras

Exigência de guardiões masculinos e restrições em série impedem acesso de afegãs a direitos humanos básicos

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São Paulo

Ao longo dos quase 12 meses que passou no Afeganistão, a advogada carioca Renata Viana, 45, viu as afegãs sendo gradualmente excluídas da vida do país. Primeiro, o Talibã, que retomou o poder em agosto de 2021 após a retirada das tropas americanas, obrigou as mulheres a usarem o hijab, tradicional véu islâmico. Alguns meses depois, elas só podiam sair na rua usando a burca ou véus que cobrem todo o rosto. Mas, de preferência, mulher nem deveria sair de casa, orientou o regime fundamentalista.

Meninas com mais de 11 anos não puderam voltar para a escola após a pandemia, e as universitárias foram proibidas de frequentar as salas de aula. Mulheres foram banidas também da maioria dos empregos no setor público e não podem mais ir a parques, jardins ou academias de ginástica.

Mulheres aguardam em sala de espera de ambulatório do Médicos Sem Fronteiras em Kandahar, no Afeganistão - Tasal Khogyani/MSF

As afegãs perderam seu direito de ir e vir. Muitas não conseguem nem fazer compras no mercado ou chegar aos hospitais porque não têm mahram, um guardião masculino, para acompanhá-las, conta Viana, que atuou como gerente de Assuntos Humanitários da ONG Médicos sem Fronteiras no Afeganistão até o mês passado.

"O governo do Afeganistão quer apagar a mulher da sociedade", diz a advogada, que está com os MSF há seis anos. Ela já trabalhou em países em situação muito difícil, como República Democrática do Congo, Venezuela, Sudão do Sul e Haiti. Mas o Afeganistão foi o que mais a impactou. "É como se as mulheres estivessem sendo eliminadas da vida no país; elas não têm acesso a saúde, educação ou trabalho, direitos básicos do ser humano."

O Ministério para Prevenção do Vício e Propagação da Virtude é o órgão encarregado de fiscalizar se os afegãos seguem a lei islâmica, a sharia, de acordo com a interpretação extrema do Talibã. O órgão determinou que qualquer mulher viajando uma distância maior que 75 km ou deixando o país precisa de um guardião –que pode ser um irmão, pai, marido ou sobrinho, mas necessariamente um homem.

Na prática, as restrições são bem maiores. Nas áreas mais conservadoras do país, mulheres sofrem intimidação e até violência se forem sozinhas ao mercado ou a uma consulta médica.

"Muitas famílias são compostas apenas por mulheres, porque os homens estão refugiados em outros países ou morreram nos frequentes conflitos armados", diz Viana. "Essas mulheres às vezes não conseguem sair de casa ou saem com muito medo, correm o risco de sofrer uma violência por estarem desacompanhadas." Após décadas de guerra, estima-se que existam 2 milhões de viúvas no Afeganistão.

A exigência de mahram dificulta o acesso das mulheres a atendimento médico. Em geral, os pacientes afegãos chegam em estado muito grave aos hospitais, porque sempre adiam a procura por ajuda. Para as mulheres é ainda pior, porque elas dependem da boa vontade de um acompanhante –quando há algum.

O transporte até o hospital é uma das principais barreiras. Com a segregação de gênero em vigor, mulheres não podem estar no mesmo ambiente que os homens. Mas como fazer essa separação nos carros compartilhados e moto-riquixás que servem de condução para muitos afegãos? Algumas mulheres acabam obrigadas a pagar sozinhas por todos os lugares para não ter ninguém sentado ao seu lado. É mais uma coisa que aumenta o custo para uma afegã sair de casa.

Como conseguem chegar ao local de trabalho as poucas afegãs que ainda têm emprego? E se o marido também trabalha e não pode acompanhá-la? Algumas são forçadas a abrir mão do emprego. "Conversamos com muitas funcionárias afegãs aqui; muitas arriscam e saem desacompanhadas, porque precisam muito do emprego", relata Viana. "Mesmo em regiões que não são tão conservadoras, as mulheres são paradas e interrogadas por saírem sozinhas de casa. O Talibã preconiza que a mulher só deveria sair de casa em situações de emergência."

Nos hospitais, ainda há certa flexibilidade na segregação de gênero porque está clara a limitação na disponibilidade de mão de obra feminina. "Mas já existe uma pressão muito grande para ser 100% separado –mulheres só poderem ser atendidas por médicas e enfermeiras", diz a carioca. "Se isso acontecer, será uma tragédia."

Simplesmente não existe um número suficiente de médicas, e a tendência é piorar, já que as mulheres foram proibidas de frequentar o ensino secundário e a universidade.

Em dezembro, o Talibã fechou ainda mais o cerco ao proibir mulheres afegãs de trabalharem em ONGs. As entidades empregam grande parte das poucas mulheres que arrumam trabalho em um país onde o desemprego chega a 25%.

Segundo levantamento da ONU Mulheres, 94% das organizações tiveram de suspender parcial ou completamente suas operações porque não conseguem operar sem funcionárias locais —a restrição não se estende a estrangeiras. Sem as afegãs, as ONGs não conseguem atender crianças e mulheres. O país depende de ajuda externa e, sem o terceiro setor, pode entrar em colapso.

Depois que o Talibã começou a quebrar suas promessas de respeito a direitos humanos, muitos doadores estrangeiros também suspenderam a ajuda financeira. Agora, esse dinheiro só chega ao Afeganistão por meio das entidades. Segundo dados das Nações Unidas, ao menos 25 milhões de afegãos dependem de ajuda humanitária para sobreviver.

A proibição a funcionárias afegãs ainda não atingiu os postos de saúde e hospitais onde os Médicos Sem Fronteiras atuam. O regime fez uma exceção informal para ONGs ligadas à saúde. Mas não se sabe até quando.

"Hoje 51% dos nossos funcionários da área médica são mulheres", diz Viana. "Se essas discussões se expandirem, vamos nos ver em um dilema: como vamos funcionar? Só vamos dar assistência a homens?"

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