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Guerra da Ucrânia Rússia

EUA rasgam fantasia de neutralidade militar contra Rússia na Guerra da Ucrânia

Ocidente parece convicto de que Putin está fraco, o que se for verdade é tão perigoso quanto o oposto

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São Paulo

Desde o começo da Guerra da Ucrânia, lançada pela Rússia de Vladimir Putin para tentar resolver suas pendências geopolíticas com o vizinho e com o Ocidente, um temor permeava as reações dos países aliados aos Estados Unidos.

Colocando de forma simples, a escalada do conflito para a Terceira Guerra Mundial, talvez envolvendo armas nucleares e o risco do fim da civilização como a conhecemos. Com a aprovação pelo Congresso dos EUA do Ato de Empréstimo-Arrendamento de Defesa da Democracia da Ucrânia de 2022, o governo de Joe Biden rasgou a fantasia de neutralidade militar no embate.

Soldados russos nas ruínas do teatro de drama de Mariupol, destruído durante batalha pela cidade
Soldados russos nas ruínas do teatro de drama de Mariupol, destruído durante batalha pela cidade - Alexander Nemenov - 12.abr.2022/AFP

Com a exceção da crise dos mísseis de Cuba (1962) e da quase guerra de 1983, em nenhum momento do equilíbrio mortal da Guerra Fria, sobre pilhas de armas que chegaram a 70 mil ogivas nucleares em 1990, Washington e Moscou se colocaram tão diretamente frente a frente. Esta é uma aposta clara do Ocidente, e as consequências, imprevisíveis.

Chegou-se a esse momento de forma gradual. Quando iniciou a guerra, em 24 de fevereiro, Putin incluiu no seu famoso discurso a ameaça de que intervenções estrangeiras no rumo das coisas levariam a consequências inauditas na história de quem se envolvesse.

Cinco dias antes havia feito um grande teste de armas estratégicas e, quatro dias depois, colocou suas forças nucleares em alerta. De lá para cá, ele e autoridades de seu governo falaram diversas vezes acerca da possibilidade de usar a bomba —observadores externos temem inclusive o uso tático, contra a Ucrânia, do armamento.

Inicialmente, as ameaças deram certo. Na realidade, o Ocidente todo via a Ucrânia como perdida no começo da invasão, tanto que os EUA ofereceram abrigo ao governo de Volodimir Zelenski. Os erros russos e a resistência ucraniana transformaram o conformismo tático de ver Kiev voltar à esfera russa numa oportunidade estratégica de enfraquecer mais Moscou, às voltas com os limites de seu discurso intimidatório.

Antes disso, contudo, Biden e aliados ocidentais insistiram reiteradamente em que não participariam da guerra, citando os riscos mais apocalípticos, mas no segundo dia do conflito já havia uma engrenagem de ajuda militar em curso. Ela já superou os US$ 7 bilhões, quase o dobro do orçamento de defesa anual de Kiev, US$ 3,7 bilhões só dos EUA.

Mesmo ela rodou devagar, com diversas travas colocadas por parceiros europeus temerosos da reação de Moscou, notadamente a Alemanha tão dependente energeticamente de Putin. Mas mesmo os EUA contiveram impulsos dos membros mais nervosos da Otan, como a Polônia, vetando a transferência de caças a Kiev.

Havia a esperança também de que as duras sanções econômicas demovessem o Kremlin. Isso pode vir a acontecer a longo prazo, com o qual o Ocidente parece apostar, mas até agora não se mostrou em campo.

Com a nova lei, Biden poderá se quiser transferir até US$ 20,4 bilhões em equipamento militar americano para os ucranianos sem restrições formais vigentes, como a exigência de serem armas sem uso e com garantia de pagamento em caso de destruição ou danos.

O governo não definiu nada disso, mas analistas dizem que estarão à disposição dos ucranianos tanques pesados M1-A2 Abrams, caças F-16, sistemas antiaéreos Patriot, entre outras armas que elevariam a Ucrânia ao status de uma pequena potência militar. Como tudo isso precisa incluir treinamentos que duram meses, é mais uma sugestão de que o Ocidente se prepara para uma longa guerra.

Claro, são planos algo virtuais a essa altura, até porque Biden precisa definir o que irá transferir, e isso demoraria 60 dias de burocracias para começar. Ou seja, é uma janela para Putin usar, seja ou não essa a intenção americana.

Tudo aponta para uma tentativa de resolução do conflito, já insinuada na batalha pelo Donbass (leste russófono da Ucrânia), que está progredindo de forma lenta. Os russos estão tendo ganhos, mas nenhum foi decisivo até aqui. Por tudo indicado, a conquista do leste e do sul ucranianos, com ou sem a faixa que inclui Odessa, já seria vendido como vitória por Putin.

A questão é que, segundo um analista político próximo do Kremlin disse à Folha, cresce em Moscou uma insatisfação nas Forças Armadas, que querem escalar a guerra, talvez com uma mobilização nacional não prevista no atual formato de "operação militar especial". O secretário de Defesa britânico, Ben Wallace, disse que isso pode acontecer no 9 de maio, dia da vitória russa sobre os nazistas.

Os erros da fase inicial da guerra russa parecem superados, mas há dúvidas entre especialistas acerca da alocação de recursos para conquistar o leste e o sul.

Para complicar, os sinais do espraiamento já são claros, como os ataques pontuais a instalações na Rússia e a instabilidade na região russa da Transdnístria, na Moldova, mostram.

Mas, além do aumento de ajuda militar, como a chegada de obuseiros de 155 mm americanos ao Donbass demonstra e ainda que com passos em falso como o fornecimento empacado de blindados alemães a Kiev, chama a atenção o ato do Lend-Lease (Empréstimo-Arrendamento).

O nome em inglês da lei aprovada pelos EUA remete a ato semelhante de 11 de março de 1941, quando os EUA passaram a ajudar os rivais da Alemanha nazista, como Reino Unido e União Soviética, com alimentos, armas e transferência tecnológica.

Naquele momento, o governo de Franklin Roosevelt passou a ser visto como hostil de fato às forças do Eixo, embora jurasse que não queria ver a Segunda Guerra Mundial de perto. Nove meses depois, atacados, os EUA entrariam de fato no conflito. Se a historiografia não vê o Land-Lease como decisivo, o próprio ditador soviético Josef Stálin diria que a vitória seria mais difícil "sem as máquinas americanas".

Pela regra, o equipamento é emprestado a fundo perdido por si só, mas há compensações futuras. Como lembrou o presidente da Câmara baixa do Parlamento russo, Viacheslav Volodin, Moscou só acabou de pagar suas dívidas em commodities para Washington em 2006, assim como os britânicos.

Isso amarraria Kiev politicamente aos EUA por anos, ainda que, como na condição dos Aliados da Segunda Guerra, esteja longe de ser uma pena impagável —nesse sentido estrito, Volodin exagera.

Ambos os lados usam razões lógicas para suas ações, o que obviamente não justifica a violência em curso. A argumentação ocidental é de que a Rússia é a agressora e a Europa, seu próximo alvo se a Ucrânia for perdida. Já Moscou viu a expansão a leste da Otan no pós-Guerra Fria, para quem a Ucrânia seria o prêmio máximo, como motivo de insegurança existencial.

Seja como for, os riscos de a situação desandar só fazem subir nessa queda de braço, como quando os russos atacaram posições perto da Polônia ou depósitos de armas ocidentais na Ucrânia. Ainda assim, parece mais fácil haver um recrudescimento contra os ucranianos do que uma Terceira Guerra Mundial.

Do ponto de vista ocidental, é pagar para ver. Há aqueles que equiparam Putin a um Adolf Hitler de 1938, cuja tentativa de apaziguamento pelo Ocidente só deitou os trilhos para a hecatombe iniciada no ano seguinte. Para eles, tudo tem de ser feito para detê-lo, antes que os efeitos radioativos da bomba atômica das sanções atinja mais fortemente os ocidentais.

Como disse um diplomata russo à reportagem, os EUA estão jogando publicamente como se Putin estivesse fadado ao fracasso. Se acreditam nisso, das duas, uma: ou estão subestimando o adversário, como o russo fez com Kiev, ou é fato e aí o risco é o de lidar com um autocrata ameaçado de perder a cadeira sentado sobre 5.977 ogivas nucleares.

Nenhuma das opções parece muito atraente, a começar se você for ucraniano.

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