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Juan Pablo Cardenal

China não é a única opção para América Latina, como mostra cúpula UE-Celac

Ante exportações primárias para o gigante asiático, região pode ir em busca de um modelo mais sustentável e independente

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Juan Pablo Cardenal

Jornalista e escritor especializado na internacionalização da China e editor de análise sínica no Centro para a Abertura e o Desenvolvimento da América Latina (Cadal)

Não foi uma era isenta de tensões, mas, como a percepção era que quase todo o mundo se beneficiava, a globalização —tendo a China em seu epicentro— foi um sucesso durante 20 anos.

Boa parte da América Latina lucrou com isso, graças, em parte, à ascensão do gigante asiático, com sua demanda voraz por recursos naturais e seu capital financeiro inesgotável. Mas a imposição de tarifas dos EUA à China em 2018, a desconfiança gerada pela Covid, o impacto da pandemia sobre as cadeias de fornecimento e a invasão russa da Ucrânia transformaram o mundo que conhecíamos.

Guardas durante cerimônia em Pequim, na China, para recepcionar a presidente de Honduras, Xiomara Castro, que visitava o país
Guardas durante cerimônia em Pequim, na China, para recepcionar a presidente de Honduras, Xiomara Castro, que visitava o país - Wang Zhao - 12.jun.23/Pool/Reuters

É justamente em razão dessa conjuntura econômica e geopolítica que ganha relevância a cúpula entre a União Europeia e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) que ocorre em Bruxelas nesta segunda (17) e terça (18).

É verdade que as diferenças e a complexidade da relação entre os dois blocos têm sido evidentes. Foi assim nos últimos oito anos, nos quais as cúpulas foram suspensas por divergências em relação à Venezuela. E tem sido assim com o acordo comercial entre a UE e o Mercosul. Fechado em 2019 após 20 anos de negociações, o tratado voltou a encalhar devido à resistência latino-americana em aceitar as exigências ambientais e o impulso protecionista de países europeus.

Do mesmo modo, a recusa do bloco latino-americano em aceitar o discurso de condenação europeu sobre o conflito na Ucrânia na declaração final da cúpula e, sobretudo, seu veto à proposta de que o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, fosse convidado, deixam claro que as diferenças políticas são notáveis.

Não apenas Venezuela, Cuba e Nicarágua, mas também México, Argentina, Colômbia, Bolívia e Brasil, liderados por Lula (PT), mantêm uma ambiguidade calculada ou apoiam Vladimir Putin tacitamente ao responsabilizar o Ocidente pela guerra por meio de declarações turbulentas que remetem a recriminações históricas de moralismo, arrogância e desatenção feitas aos europeus.

Mas, para além de desavenças que precisam ser administradas, o complexo cenário econômico e geopolítico que se vislumbra aponta para a conveniência de os dois blocos apostarem em um entendimento essencial para ambos. Os efeitos prejudiciais da dependência europeia do gás russo fizeram Bruxelas finalmente abrir os olhos. Assim, a UE agora enxerga o imperativo de diversificar seu abastecimento de energia e de matérias-primas estratégicas como o lítio, além de contar com parceiros confiáveis para reduzir sua dependência das cadeias de abastecimento chinesas.

A América Latina pode ser essa parceira e deve aproveitar a oportunidade.

A crise de desenvolvimento que fustiga a região, decorrente de um crescimento inferior à média de 1% nos últimos dez anos, já deveria ser incentivo suficiente. Além disso, ter uma aliança estratégica com a UE — que, por sinal, ainda é a maior investidora na região e a terceira maior destinatária das exportações latino-americanas— permitiria à América Latina consolidar uma alternativa de relação saudável à China.

É evidente que as duas opções não são mutuamente excludentes. Mas isso serviria para proteger a América Latina dos riscos inerentes de se jogar nos braços do país asiático.

Sejamos claros: a UE e outros países têm muita dificuldade em competir com o capitalismo de Estado chinês. Não é apenas uma questão de magnitude. É também porque as estatais chinesas recebem subsídios ocultos, financiamento barato e infinito e tratamento favorável em seu mercado.

Por isso, já que são encarregadas da missão estratégica de garantir o abastecimento futuro de recursos naturais, seus investimentos nem sempre obedecem a critérios empresariais de lucratividade. Quatro em cada cinco dólares chineses na América Latina se destinam a projetos extrativos e infraestruturais.

Nesse contexto, a UE é valiosa para a América Latina não apenas por seus investimentos na região e suas importações de matérias-primas, mas também porque as infraestruturas e alianças econômicas previstas em sua iniciativa Global Gateway —embora ainda incipiente e mais modesta que a iniciativa Nova Rota da Seda— oferecem um modelo alternativo de desenvolvimento.

A promoção de infraestruturas ligadas à sustentabilidade ambiental e independência econômica, assim como a revolução da transição digital, energética e ecológica, tem entre seus objetivos "contribuir para o desenvolvimento dos países parceiros da UE", segundo a Comissão Europeia.

É paradoxal que certos setores latino-americanos se sintam incomodados com as exigências ambientais europeias, mas não com os termos da relação proposta por Pequim, com seus padrões baixos, suas más práticas, sua falta de transparência e ausência de fiscalização.

Já é inquestionável que a relação com a China consolidou um padrão de exportação primária na América Latina. A região exporta recursos naturais e importa produtos manufaturados prontos, sem um mínimo de industrialização ou transferência tecnológica.

A responsabilidade recai sobre os governos que enxergam sua relação com a China como uma transação de curto prazo. As exportações dão receita fiscal rápida que permite financiar o Estado. Não há incentivo para promover projetos de longo prazo que gerem riqueza ou desenvolvimento, porque o retorno político reverteria para outros. Por isso mesmo, uma mudança de mentalidade é urgentemente necessária.

A cúpula UE-Celac é um bom ponto de partida.

Tradução de Clara Allain

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