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Guerra da Ucrânia Rússia

'Não somos a Amazon' das armas sugere o limite da Otan com a Ucrânia

Cúpula da aliança militar ocidental traz más notícias para Putin, mas também para Zelenski e seus planos

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São Paulo

"Sabe, nós não somos a Amazon." A frase, dita a repórteres por um dos mais radicais apoiadores da Ucrânia na guerra contra a invasão russa, o secretário britânico de Defesa, Ben Wallace, resume um dos aspectos mais reveladores dos dois dias de reunião de cúpula da Otan.

A aliança militar liderada pelos EUA, com 32 membros e contando, fracassou em oferecer a Kiev um plano concreto de adesão. O motivo na superfície é claro: trazer um país em guerra para o clube implica entrar neste conflito, no caso arriscar a Terceira Guerra Mundial.

Zelenski antes de encontro com o alemão Olaf Scholz, às margens da reunião de cúpula da Otan, em Vilnius
Zelenski antes de encontro com o alemão Olaf Scholz, às margens da cúpula da Otan, em Vilnius - Yves Herman/Reuters

Abaixo da linha d'água, contudo, estão razões que escaparam em frases como a de Wallace, que descrevia como "viajou 11 horas [a Kiev] para receber uma lista" com pedidos de armas dos ucranianos, como se fosse a gigante de encomendas online. "Gostemos ou não, as pessoas querem ver um pouco de gratidão. Às vezes, você está pedindo para os países abrirem mão de seus estoques. Às vezes, você tem de persuadir legisladores nos EUA", afirmou ele, de resto preterido na sucessão do comando da aliança.

Nunca um aliado havia sido tão direto ante a repetida cantilena de Volodimir Zelenski, o grande vencedor e o grande derrotado em Vilnius. Mesmo os EUA, na pessoa do conselheiro de Segurança Jake Sullivan, sugeriram que o "público americano merece um pouco de respeito" ao ser provocado por um ativista ucranainao.

As queixas repetidas de Zelenski e suas ameaças de que a Europa cairá ante o fogo russo caso ele seja batido são conhecidas e apoiadas, de forma geral, por uma Otan que lhe forneceu mais de 15 vezes seu orçamento militar de 2021 desde que Vladimir Putin cruzou sua fronteira.

O morde-e-assopra em suas declarações mostram que o ucraniano entendeu o recado. Ele foi ainda mais bem elaborado pelo presidente tcheco, Petr Pavel, que pode ser uma figura lateral, mas é um general com conhecimento profundo sobre o funcionamento da Otan.

Na véspera, ele disse claramente: Kiev precisa aproveitar o momento, sua contraofensiva em curso, porque depois do fim do ano o apetite ocidental em fornecer armas vai diminuir muito, e Zelenski terá de negociar com o que tiver em mãos. Entre os fatores, a fadiga com a guerra, os custos e a incerteza sobre quem vai ganhar a eleição presidencial americana.

O espantalho em questão é Donald Trump, visto como simpático a Putin, mas não só isso. Joe Biden precisa fazer um ajuste fino em sua persona eleitoral, e a ideia de que pode trazer no pacote a paz na Ucrânia é bastante tentadora para seus estrategistas.

O problema para Kiev é que um arranjo como esse invariavelmente implica perda territorial, exceto se a contraofensiva for o sucesso estrondoso que não se anunciou ainda. Quando a Otan diz que a prioridade é armar os ucranianos, não torná-los membros do clube apesar de todos os salamaleques, o sinal é evidente.

Foi o que notou o analista americano George Friedman ao comentar, nesta semana, o anúncio emotivo feito por Biden de que iria enviar as condenáveis bombas de fragmentação para ajudar a contraofensiva ucraniana. Por um lado, Kiev está sem bala, e o líder americano está disposto a subir a barra da violência. Por outro, quando um presidente assume um anúncio desses, quer enviar uma mensagem.

Para Putin, de que está na hora de todos conversarem. Não parece algo muito evidente, dada a retórica geral, mas a promessa generalizada de que um dia Kiev fará parte da Otan também vai nesse sentido.

Pode ser um dia, não hoje. Talvez quando estiver estabelecido um tampão de territórios anexados entre a Rússia atual e uma nova fronteira da aliança a oeste, quem sabe uma zona desmilitarizada ao estilo da península coreana. Isso também garantiria a Putin um salvo-conduto político, vendendo alguma vitória.

Por óbvio, isso tudo é altamente especulativo. Na prática, Zelenski conseguiu levar alguns itens de sua lista de pedidos para casa, notadamente a promessa de mísseis de cruzeiro franceses. Mas não foi exatamente uma festa de Natal. A Otan, contudo, pode celebrar um grande feito: a aquiescência turca, que levará a húngara a tiracolo, à entrada da Suécia na aliança, um grande movimento geopolítico que altera de vez o balanço de poder no mar Báltico —selando o fim da era iniciada em 1721 com o Tratado de Nystad, que tornou a Rússia dominante naquele canto do mundo.

A conta a pagar a Ancara ainda será conhecida, e não será surpresa se algo travar o processo, mas o fato é que, com Finlândia e Suécia na aliança, Putin sofre uma derrota política maiúscula: afinal, foi para conter a expansão da Otan a leste que a Guerra da Ucrânia foi gestada.

O reforço das fronteiras orientais da aliança e a abertura a mais sócios no sistema de compartilhamento de armas nucleares americanas no continente, um aceno ao pedido polonês de ter as bombas, já que Putin instalou ogivas semelhantes na Belarus, compõem o quadro negativo para o líder russo, ainda sob o impacto incerto do motim mercenário que assustou países acostumados a tê-lo como vilão preferencial.

Já a China, maior parceira de Putin, parece ter auferido frutos de sua recente ofensiva de charme sobre líderes europeus e da tentativa de normalização possível de canais com Washington —é da Guerra Fria 2.0 entre as potências que tudo, ao fim, gira.

O comunicado final da aliança manteve críticas a Pequim, respondidas de forma protocolar, mas o que fica é o "a China não é nossa adversária" do secretário-geral da aliança, Jens Stoltenberg, encarnando as vozes preocupadas com os negócios em Paris e Berlim. Sobraram mesuras aos convidados da Ásia-Pacífico, todos empolgados seguidores do militarismo por procuração de Biden, mas só.

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