Descrição de chapéu imigrantes

Selva de Darién, palco de crise migratória, vira ímã para turistas de aventura

Ao menos 250 mil migrantes atravessaram a floresta do Panamá em 2022, a maioria tentando chegar aos EUA

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Laura Gottesdiener Daina Beth Solomon
Cidade do México | Reuters

Nas profundezas da selva do Panamá, o imigrante venezuelano Franca Ramírez lutava para escapar de um rio caudaloso que transbordava quando algo chamou a atenção: um grupo de jovens tirava fotos da paisagem. O ex-policial, que disse ter fugido da Venezuela para não ser preso e torturado, ficou surpreso.

Eles estavam havia mais de um dia no estreito de Darién. O trecho é uma parte traiçoeira da jornada de milhares de pessoas que viajam a pé pelas Américas, esperando o dia em que enfim chegarão aos EUA.

"Perguntei se eram migrantes", disse Ramírez no mês passado, quando já estava no México. "Disseram que não, que estavam criando conteúdo e passeando pela selva." O encontro foi um raro momento em que dois mundos completamente diferentes colidiram num dos lugares mais selvagens do planeta.

Migrante venezuelano segura seu filho ao cruzar o rio Muerto, na selva de Darién - Adri Salido - 9.jul.23/Reuters

A selva há muito atrai aventureiros. É conhecida como a lacuna ou estreito de Darién porque é o único trecho que falta nos cerca de 95 km da rodovia Pan-Americana, que se estende do Alasca à Argentina.

Durante décadas, só os viajantes mais intrépidos se aventuraram nesta floresta outrora impenetrável –esquivando-se de guerrilheiros e bandidos, em busca de orquídeas raras, da grande arara verde e da emoção de ser um dos poucos corajosos o suficiente para entrar na área intocada onde a estrada termina.

Porém, à medida que o turismo de aventura ganhou popularidade –com passeios que vão de escalar o Everest a mergulhar com um submarino para ver o Titanic–, agências começaram a organizar excursões em grupo para a área remota. Mesmo assim, o turismo está em um ritmo lento há décadas no local, segundo o guia panamenho Rick Morales. "A selva é especial porque é poderosa e nos torna humildes."

Nos últimos anos, partes dessa selva foram o local de uma catástrofe humanitária. Milhares de migrantes de todo o mundo, incluindo Afeganistão e partes da África, cruzaram o terreno perigoso a caminho da fronteira americana. Bloqueadas por restrições de visto em países mais próximos dos EUA, 250 mil pessoas atravessaram a região sem lei em 2022. Ao menos 137 migrantes morreram ou desapareceram, incluindo cerca de 13 menores de idade, segundo a ONU.

Além da falta de infraestrutura, Darién tem desafios de segurança: as rotas migratórias, em particular, são controladas por criminosos. "O número real de migrantes mortos e desaparecidos na selva é muito maior", disse a OIM à agência de notícias Reuters.

Turistas e migrantes raramente se encontram; seus trajetos são quase sempre separados por dezenas de quilômetros. Enquanto as rotas de migração passam pela costa norte de Darién, no mar do Caribe —que oferece o caminho mais rápido para atravessar a selva sem estradas—, a maior parte do turismo acontece perto do oceano Pacífico.

Ademais, a publicidade turística não menciona a crise humanitária. Os pacotes variam de algumas centenas a milhares de dólares por pessoa e podem incluir assistência médica, telefone via satélite, equipamentos adequados e cozinheiro. Marco Wanske, um alemão de 31 anos que fez uma caminhada de 12 dias na selva em janeiro, disse que todos em seu grupo sofreram ferimentos leves, e uma pessoa teve que ser carregada no último dia porque não conseguia andar.

Marco Wanske durante sua excursão na selva de Darién - Marco Wanske - 12.jan.23/via Reuters

Já os migrantes costumam estar à mercê dos bandos de contrabandistas e de um orçamento limitado.

Kisbel García, imigrante da Venezuela, disse que pagou mais de US$ 4.000 (R$ 20 mil) a um guia que prometeu conduzir ela, seus quatro filhos e sua sogra em segurança pela selva. Mas, em vez de dar proteção, o guia os abandonou dois dias após o início da jornada. A família vagou durante seis dias pelas montanhas, passando por cadáveres enquanto via a comida terminar, conta ela, e guiando-se com pedaços de pano azul que foram amarrados às árvores por outros migrantes. Eles sobreviveram.

"Nós, migrantes, temos que lutar contra todos os riscos sem ajuda", disse ela. "Darién é o inferno."

O mercado global de turismo de aventura está crescendo, dizem os especialistas, com gastos chegando a US$ 680 bilhões (R$ 3,2 trilhões), segundo um relatório de 2021 da Associação Comercial do Turismo de Aventura dos EUA. As redes sociais ajudaram a alimentar o interesse por lugares remotos e inacessíveis —viajantes mostram cada vez mais o risco e a exclusividade das viagens por meio de selfies e vídeos.

O governo do Panamá espera transformar o Parque Nacional Darién no "principal destino de ecoturismo da América Central", conforme o plano diretor 2020-2025 para o turismo sustentável. Muitos naturalistas e observadores de pássaros são atraídos para o parque, que foi nomeado Patrimônio Mundial da Unesco em 1981 devido à sua biodiversidade, ao seu cenário dramático e às comunidades indígenas.

Mesmo alguns migrantes reconhecem o paradoxo das atrações da selva. "Enquanto viajava, meu coração sofria, mas meus olhos estavam encantados", disse o venezuelano Alejandra Peña, que atravessou a selva com seus três filhos, seu companheiro e seus pais idosos no ano passado, rumo à fronteira americana.

Alguns grupos de ajuda humanitária criticam o turismo em Darién, dizendo que vender viagens como se fossem um teste de sobrevivência é de mau gosto e desvia a atenção do sofrimento dos migrantes. "O Darién é uma zona de crise humanitária, não um lugar para férias", disse Luis Eguiluz, que lidera a ONG Médicos Sem Fronteiras na Colômbia e no Panamá.

Grupo de migrantes, principalmente da Venezuela e do Equador, caminha pela selva de Darién - Adri Salido - 9.jul.23/Reuters

A interseção desses mundos levantou questões sobre responsabilidade ética, dizem os especialistas.

"Para as pessoas que querem ir a lugares mais selvagens, qual é a nossa obrigação?", questionou Lorri Krebs, especialista em turismo e sustentabilidade da Universidade Estadual de Salem, em Massachusetts. "Precisamos de padrões, de componentes éticos ou morais em nossos empreendimentos turísticos."

Em respostas por escrito à Reuters sobre a ética de tais passeios, o Ministério do Turismo defendeu seus esforços para impulsionar as viagens internacionais à região, dizendo que o Panamá "é abençoado com extensas selvas, rios caudalosos, picos de montanhas, litorais sem fim e diversas culturas". Ao mesmo tempo, reconheceu uma "crise humanitária catastrófica" em outra parte do Darién devido à migração.

Sob pressão do governo americano, o Panamá diz ter intensificado os esforços para impedir que migrantes atravessem a selva, incluindo uma campanha anunciada com os EUA em abril. Mesmo assim, o número de migrantes no Darién continuou aumentando.

O Departamento de Estado dos EUA aconselha viajantes a não entrarem numa grande faixa da selva comumente usada por criminosos e traficantes de drogas onde os serviços de emergência são escassos.

Alguns turistas já estão lidando com esse dilema. "A crise migratória nessa região foi um grande ponto de interrogação antes da viagem", disse o alemão Mark Fischer, que inicialmente se preocupou com o fato de que a caminhada de 100 km seria como "atravessar o mar Mediterrâneo num bote de borracha para se divertir", em referência a outra parte do mundo que passa por uma crise migratória. Suas preocupações foram amenizadas quando lhe disseram que a trilha não se sobreporia à rota dos migrantes.

Das praias da Grécia ao Parque Nacional Big Bend, no Texas, banhos de sol e caminhadas costumam acontecer em áreas onde outras pessoas estão arriscando suas vidas, disse Morales, o guia turístico.

Mas em quase 25 anos levando pessoas para o Darién, ele nunca encontrou migrantes e disse que planeja suas rotas para manter esses mundos separados. "Eu não poderia colocar comida na boca ou deitar na minha rede protegido das intempéries sabendo que a algumas centenas de metros abaixo da trilha há uma mãe e uma criança famintas passando a noite sentadas no chão, sem abrigo."

Morales acrescentou que os caminhantes costumam perguntar como ajudar as comunidades locais. Alguns povos indígenas do Darién –cujo nome, segundo especialistas, deriva da pronúncia espanhola do nome indígena de um rio local– dependem do turismo para fortalecer a economia de suas comunidades.

A Travel Darién Panama é uma operadora de turismo de propriedade indígena que, segundo seu site, visa a ajudar a financiar escolas e melhorar as condições de vida em sua aldeia. "Vivemos aqui há décadas, essas florestas são literalmente nosso lar", diz o site.

A cofundadora da empresa, Carmelita Cansari, da comunidade Embrera de Darién, afirma que parte do objetivo da empresa é compartilhar seu modo de vida: "Oferecemos o que temos em nossa comunidade. Cuidar da natureza, da nossa cultura e da dança".

Migrante venezuelana amamenta seu bebê enquanto caminha pela selva no Panamá - Adri Salido - 9.jul.23/Reuters

Nina Van Maris, 32, uma entusiasta de atividades ao ar livre de Luxemburgo, disse que não sabia da situação da migração no Darién quando se inscreveu para uma excursão organizada pela operadora de turismo alemã Wandermut. Ela tinha visto um anúncio no Instagram enquanto se recuperava de uma doença rara que a deixou temporariamente incapaz de andar, e a viagem se tornou a motivação para ela se recuperar totalmente. "Pensei comigo: quando eu puder fazer isso, poderei fazer tudo", disse Van Maris.

Em 2021, ela atravessou a selva durante dez dias, de uma vila no rio Balsas, no coração do Darién, até terminar no oceano Pacífico. "Quando vi a praia, pensei comigo mesma: consegui. Estava chorando, foi muito emocionante para mim", disse ela. "A selva me devolveu a vida."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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