Após ano com surpresas na política, América Latina entrará em intenso ciclo eleitoral em 2024

Região viu imprevisibilidade dos resultados virar regra e violência impactar países antes pacíficos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Em 2024, mais de 75 países terão eleições gerais ou regionais para escolher novos representantes, em um ano agitado nas urnas. Desses, oito estão na América Latina, que já passou por um ciclo conturbado na política em 2023.

Nos últimos meses, a região viu a consolidação de tendências observadas no resto do mundo, como o enfraquecimento de partidos e a imprevisibilidade dos resultados eleitorais, e a disseminação, com implicações na política, de um problema típico de grande parte dos países latino-americanos —a violência.

Atual presidente da Argentina, Javier Milei acena a apoiadores em Buenos Aires - Luciano González Torres - 19.nov.2023/Xinhua

No Peru, essa característica se manifestou institucionalmente logo no começo do ano, quando protestos contra a atual presidente, Dina Boluarte, terminaram em cerca de 70 mortes ao longo de quatro meses. O país andino havia começado 2023 herdando uma ponta solta no ano anterior —em dezembro de 2022, o então presidente Pedro Castillo tentou aplicar um autogolpe e acabou preso, aprofundando uma instabilidade que ainda reverbera.

Entre os acontecimentos mais recentes na região está a eleição do anarcocapitalista Javier Milei para a Presidência da Argentina, em outubro. O economista que tirou o peronismo do poder ganhou fama com comentários controversos na televisão, mas conquistou seus eleitores viralizando nas redes sociais.

Do outro lado do espectro ideológico, o progressista Bernardo Arévalo ganhou a Presidência da Guatemala em junho contra todos os prognósticos —nas pesquisas de intenção de voto daquele mês, ele era a escolha de apenas 3% da população, em média. A ausência de Arévalo no topo dos levantamentos acabou sendo providencial, já que políticos da oposição competitivos tiveram suas candidaturas suspensas em processos judiciais questionáveis.

As duas eleições respondem a uma demanda semelhante, mas são fruto de motivações distintas, segundo Will Freeman, doutor em política pela Universidade de Princeton .

"As pessoas estão extremamente desesperadas por alguém de fora do mundo político que tenha uma visão completamente diferente", afirma o pesquisador. "A classe política da Guatemala é um caso atípico em termos de corrupção, e a Argentina, em termos de má gestão econômica."

O Equador, que elegeu um novo presidente em outubro, escapou da lógica ao escolher o liberal Daniel Noboa, empresário que, ao conquistar o poder no país sul-americano, realizou o sonho do pai, o "magnata das bananas" Álvaro Noboa. O principal acontecimento da campanha, porém, foi o assassinato do candidato Fernando Villavicencio com três tiros na cabeça após um comício em Quito.

A morte chocou o outrora pacífico país, que vê a criminalidade disparar ao lado de outras nações conhecidas por conseguir sustentar baixos índices de violência em uma região tipicamente perigosa, como Chile, Costa Rica e Uruguai.

"Isso também é muito difícil para a esquerda", diz Freeman. "Enquanto há uma resposta de direita para isso, que é a de Nayib Bukele, não há uma resposta de esquerda para o crime. Nenhuma bem-sucedida."

O político citado pelo pesquisador diminuiu drasticamente as taxas de homicídio em El Salvador aplicando uma política linha-dura na segurança sem enfrentar freios da oposição ou da Justiça, já que elas estão neutralizadas pela seus avanços contra a democracia.

Apesar disso, a continuação de seu governo após as eleições de fevereiro de 2024 é quase certa, embora a Constituição não permita a reeleição. Em dezembro, Bukele pediu licença do cargo para tentar ser reeleito, a despeito das denúncias de violação dos direitos humanos durante um estado de exceção que já dura 20 meses.

Já nos últimos dias do ano, o Judiciário controlado por Buleke também avançou contra um de seus mais vocais opositores, o ex-embaixador e deputado Rubén Zamora. Um mandado de prisão foi expedido contra ele e outras quatro pessoas, entre elas o ex-presidente Alfredo Cristiani, todos acusados de encobrirem o massacre de El Mozote, que nos anos 1980, durante a guerra civil, deixou mil mortos.

Opositores afirmam que Zamora nunca apoiou a impunidade contra militares que foram os responsáveis pelo massacre e que o caso se trata de perseguição política.

Na Guatemala, a sensação é a oposta —a posse de Arévalo é incerta diante das ofensivas de figuras do Judiciário para anular a sua vitória. Em uma das últimas, no começo do mês, procuradores apontaram o que seriam inconsistências no registro dos eleitores antes da eleição. Entidades como a Organização dos Estados Americanos (OEA) acusam a promotoria guatemalteca de tentar aplicar um "golpe de Estado".

"É interessante que haja mais incerteza em torno da posse do presidente eleito da Guatemala do que em relação a quem vencerá em El Salvador. Deveria ser o contrário", afirma Freeman.

O cenário parece já desenhado também no México, onde duas mulheres serão as principais candidatas das eleições presidenciais pela primeira vez na história —Claudia Sheinbaum, a escolhida do popular presidente Andrés Manuel López Obrador, e Xóchitl Gálvez, uma senadora indígena que representa a frente ampla da oposição contra AMLO, como o populista de esquerda também é chamado.

Por fim, na América do Sul, dois países em situações que parecem opostas também terão seus pleitos presidenciais. No Uruguai, país com uma democracia sólida na qual a direita voltou ao poder em 2019 pelas mãos de Luis Lacalle Pou, a esquerda, representada pela Frente Ampla, ganha força novamente. A decisão será em outubro.

Já na Venezuela, há a previsão de um pleito, mas ainda não foi definida uma data. Em outubro, o ditador Nicolás Maduro assinou um acordo por eleições competitivas e passíveis de monitoramento por observadores internacionais em 2024, mas os mais proeminentes críticos do regime estão impossibilitados de se candidatar.

Em junho, a Controladoria-Geral do regime declarou inelegíveis candidatos como a ex-deputada María Corina Machado, o duas vezes candidato à Presidência Henrique Capriles, e Juan Guaidó, que chegou a ser reconhecido como presidente interino por 50 países, incluindo Brasil e Estados Unidos.

A incerteza aumentou após a ditadura promover um plebiscito para consultar os venezuelanos sobre a anexação de um território rico em petróleo da Guiana. "Essa situação traz algumas interrogações. Talvez Maduro declare estado de emergência ou simplesmente tente evitar as eleições, mas veremos. Provavelmente elas acontecerão", afirma Freeman.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.