Zelenski pede para comandante militar sair e abre crise na Ucrânia

Rival do presidente, chefe das Forças Armadas se recusou a deixar o cargo em reunião

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São Paulo

O presidente Volodimir Zelenski abriu uma crise militar em meio ao momento mais desafiador para seu governo desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, há quase dois anos.

Ele pediu na segunda (29) que o comandante das Forças Armadas do país, Valeri Zalujni, entregue o cargo. O general, que está no posto desde 2021, liderou a resistência à invasão russa e é uma estrela em ascensão na política ucraniana. Ele se recusou a sair.

O então comandante militar Zalujni (esq.) e Budanov, candidato a ser seu sucessor, durante cerimônia em Kiev em novembro
O então comandante militar Zalujni (esq.) e Budanov, candidato a ser seu sucessor, durante cerimônia em Kiev em novembro - Viacheslav Ratinskii - 25.nov.2023/Reuters

A crise ganhou corpo ao longo da segunda, quando a imprensa ucraniana e os ativos canais de Telegram do país passaram o dia com informações de bastidor sobre a reunião que ocorreria à noite entre ambos. Um porta-voz de Zelenski e o Ministério da Defesa disseram que não tinha ocorrido demissão, mas não elaboraram sobre o encontro.

O relato do pedido de saída do general foi divulgado inicialmente de forma anônima e confirmado por veículos ocidentais, como o jornal britânico Financial Times. No fim do dia, um deputado oposicionista aliado a Zalujni, Oleksii Goncharenko, confirmou os detalhes ao também britânico The Guardian.

Antecessor e crítico de Zelenski, Petro Porochenko saiu em defesa do general, dizendo que sua eventual demissão seria um baque para a unidade militar do país em um momento de crise. Isso não passará despercebido no entorno do atual presidente, que considera o general um candidato em formação.

Nos últimos meses, as discordâncias entre Zelenski e Zalujni começaram a se acentuar, tornando-se públicas em alguns episódios. O racha ocorreu em meio à degradação da posição da Ucrânia na guerra.

Em outubro, o general concedeu extensa avaliação da guerra à revista britânica The Economist, admitindo o fracasso da contraofensiva lançada em junho. Zelenski o rebateu, afirmando que o cenário no campo de batalha era dinâmico. Em dezembro, Zalujni criticou o presidente por demitir todos os chefes de escritórios de recrutamento militar devido a casos de corrupção.

Neste ano, o general deu diversas declarações afirmando que a Ucrânia passaria a uma fase de "defesa ativa", contrariando o usual discurso triunfalista de Zelenski em seus apelos pela declinante ajuda militar de aliados a Kiev. Por fim, ambos discordaram sobre a nova mobilização em estudo: Zalujni queria mais reforços, enquanto o presidente buscava evitar um baque de popularidade.

A crise vem quase cinco meses após Zelenski trocar o ministro da Defesa, Oleksii Reznikov, em meio à crise pela falta de resultados da ação que visava isolar a Crimeia anexada em 2014 dos territórios ocupados pela Rússia na Ucrânia e os escândalos envolvendo venda de isenção militar a jovens ricos.

O mais forte candidato à vaga de Zalujni é o general Kirilo Budanov, o misterioso e popular chefe da inteligência militar do país, o GRU na sigla local. Ele é muito mais agressivo do que o eventual antecessor: coube a ele diversas ações em território russo, como ataques com drones a bases aéreas.

A ele foi atribuído o assassinato da filha do ideólogo nacionalista Aleksandr Dugin, Daria, ocorrido em 2022. Em setembro passado, ele disse à revista americana Time que iria matar todos os russos que pudesse —o fato de ter lançado um drone contra o Kremlin foi lido como uma ameaça à vida de Putin.

Budanov também gestou a bem-sucedida campanha com drones aquáticos ucranianos contra a Frota do Mar Negro da Rússia, destruindo e avariando diversos navios. Ele patrocinou incursões à Crimeia por forças especiais, visando destruir sistemas antiaéreos russos.

Por tudo isso, ele é visto com desconfiança no Ocidente. Os Estados Unidos e outros países da aliança Otan temem uma escalada no conflito que acabe por envolver os vizinhos da Ucrânia, particularmente se Kiev romper o acordo de não empregar armas ocidentais contra o território russo.

Conhecido por fornecer caras e bocas ideias para memes populares na internet, restará saber como seria a gestão na prática de Budanov. Com 37 anos, ele é ainda mais jovem que Zalujni, 50, e pode também representar uma ameaça política futura a Zelenski.

A crise diz muito das dificuldades pelas quais a Ucrânia passa com a falta de fé de seus aliados em sua capacidade de vencer a guerra, mas também sobre o temperamento de seu líder, centralizador e paranoico acerca de rivais.

O retrato é bem desenhado na nova biografia sobre Zelenski, "O Showman", lançada na semana passada pelo jornalista Simon Shuster, da Time. Na obra, que chega ao Brasil no mês que vem, a evolução das desavenças entre o presidente e o general são radiografadas.

Zalujni era um general de três estrelas, não no topo da hierarquia, quando o presidente o nomeou para um cargo criado em 2020, o de comandante de todas as Forças Armadas. Isso gerou enorme ciúme no generalato, já que toda uma geração de superiores foi ultrapassada por ele.

A indicação ocorreu em junho de 2021, quando Vladimir Putin já começava a mobilizar as forças que viriam a invadir a Ucrânia em fevereiro do ano seguinte. Zalujni achava a guerra inevitável, algo que Zelenski só aceitou quando os mísseis caíram sobre Kiev.

No primeiro momento, relata Shuster, o presidente não se meteu em assuntos militares, e a bem-sucedida defesa de Kiev por Zalujni, aproveitando-se dos erros táticos e da soberba russa, elevaram o general ao status de popstar.

Com isso e novos sucessos posteriores, como a retomada de áreas de Kharkiv (norte) e Kherson (sul), contudo, os dois personagens passaram a se chocar. O biógrafo conta que Zelenski passou a querer influir mais em ordens militares, gerando atritos com o comandante.

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