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Danielle Hanna Rached

Não se pode patentear o sol

Futura vacina contra a Covid-19 será um bem público global

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Em 1955, perguntaram ao virologista Jonas Salk, que acabara de descobrir a vacina contra a poliomielite, quem teria sua patente. Salk respondeu com uma pergunta que entrou para a história: “Não há patente. Você poderia patentear o sol?”

Na semana passada, por iniciativa da Organização Mundial de Saúde, lideranças governamentais e sociais do mundo todo, além de empresas farmacêuticas e filantropos como Bill Gates, reuniram-se com o objetivo de arrecadar fundos, compartilhar pesquisas, tratamentos, medicamentos e planejar políticas para a futura vacina contra a Covid-19.

Pesquisador observa células renais de um macaco enquanto testa uma vacina experimental para o novo coronavírus, em Pequim - Nicolas Asfouri - 29.abr.20/AFP

De forma nada surpreendente, Estados Unidos e Brasil não estavam no evento. O primeiro, em razão da recente decisão de Trump de suspender recursos à OMS pela suposta subordinação da instituição ao Partido Comunista da China. O segundo, porque segue o primeiro, na sua estratégia de subserviência voluntária em política externa.

A reunião é extraordinária por duas razões. Endossa, em um momento sensível para a ordem internacional liberal pós-1945, o multilateralismo e a cooperação internacional como atitudes fundamentais para combater um inimigo que não pode ser contido por meio de barreiras geográficas.

Desde o início da pandemia, testemunhamos vetos ao comércio internacional e confiscos de equipamentos de proteção individual, além de acusações mútuas entre grandes potências. Mais importante, a reunião reconhece que países vulneráveis carregam um fardo desproporcional no enfrentamento de pandemias.

Para evitar injustiças do passado, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, chegou a mencionar que a futura vacina ficaria protegida da lógica capitalista se fosse elevada à categoria de bens comuns globais. “Precisamos desenvolver uma vacina. Precisamos produzi-la e implantá-la em todos os cantos do mundo. E disponibilizá-la a preços acessíveis.” Esta vacina será “nosso bem comum universal".

Garret Hardin, em seu artigo clássico "A Tragédia dos Comuns", de 1968, já previa os obstáculos que a cooperação internacional enfrentaria ao regular os bens comuns globais —que são os recursos que pertencem a todos, que podem ser usufruídos por cada um de nós livremente, como o ar que respiramos.

Conferir o status de um bem comum global à futura vacina implica repensar o papel de autoridades políticas e do direito na coordenação de ações coletivas. E o que pode ser mais complicado: há necessidade de discutir o papel da propriedade privada no incentivo do comportamento econômico racional na área da saúde. Isso significa flexibilizar as regras internacionais de propriedade intelectual.

O Brasil tem expertise no assunto. Já ocupou cadeira de destaque na governança global da propriedade intelectual e assim conseguiu implementar a política mais bem-sucedida de acesso gratuito e universal às terapias antirretrovirais. Apoiado por atores estatais e não estatais, domésticos e internacionais, o Brasil desafiou a Organização Mundial do Comércio, os Estados Unidos e multinacionais farmacêuticas, promoveu licenciamento compulsório de medicamentos e incentivou a produção de genéricos no país.

Tal protagonismo pode ter sido resultado de um contexto específico, mas ainda pode ser utilizado como precedente para, em futuras negociações, valorizar a perspectiva dos direitos humanos e da saúde pública. A tarefa não será fácil, considerando o estrago econômico, político e social que o vírus certamente deixará. Os presentes na reunião da OMS devem se conscientizar de que precisarão enfrentar adversários geopolíticos como o presidente Donald Trump, que já teria tentado adquirir direitos exclusivos de uma vacina para a Covid-19 de uma empresa alemã.

Não há dúvida que o objetivo de repartir os benefícios de pesquisas e da futura vacina com todos os países, principalmente os mais vulneráveis, é louvável e deve ser perseguido. As atitudes nacionalistas e gananciosas de alguns líderes, no entanto, deixam margem para um certo ceticismo.

O sol pode não ser patenteável, mas sempre haverá alguém disposto a declará-lo uma propriedade privada e a cercá-lo com uma cortina, que somente se abrirá à Terra mediante contrapartida.

Danielle Hanna Rached

Doutora em direito internacional pela Universidade de Edimburgo (Escócia), é professora da FGV Direito Rio

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