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Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay) e Juliano Breda

Confesso que menti

Delação de Cabral contra Toffoli é destituída de credibilidade e dados objetivos

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Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay) e Juliano Breda

Advogados criminais

“A verdade é inconvertível, a malícia pode atacá-la, a ignorância pode zombar dela, mas, no fim; lá está ela.”

Winston Churchill

O Supremo Tribunal Federal tem uma grande oportunidade de restabelecer a confiança no sistema de Justiça criminal a propósito do julgamento sobre a validade do acordo de delação premiada celebrado entre o ex-governador Sérgio Cabral e a Polícia Federal.

O Brasil assistiu, nos últimos anos, ao desvirtuamento completo de seu processo criminal, estruturado na Constituição de 1988 como um sistema de tutela de direitos e garantias fundamentais do indivíduo suspeito da prática de uma infração penal, em uma virada inquisitória sem precedentes nas democracias ocidentais.

E esse fenômeno foi ocasionado especialmente pela adoção banalizada do instituto da delação premiada, regra originariamente instituída pelo legislador com bons propósitos, criando mecanismos efetivos de prevenção e repressão a crimes graves, mediante o oferecimento de benefícios a quem colabora com a Justiça no esclarecimento dos fatos investigados.

A delação premiada constitui sempre um dilema ético do Estado, pois, a pretexto de se obter provas de um crime, defere-se a redução da pena a quem confessadamente pratica um fato delituoso. Trata-se, portanto, da concessão de certa dose de “impunidade oficial”. Exatamente por isso o acordo de delação deve ser excepcional, pautado por critérios objetivos, como a utilidade e o interesse público, além de exigir, como premissa essencial, a credibilidade do colaborador e a verossimilhança de seus relatos.

Esse exame deve ser rigoroso, para não permitir que um acordo seja instrumento de politização das agências de persecução penal, como revelam sucessivos casos de delações celebradas com o único objetivo de beneficiar indevidamente criminosos multirreincidentes em crimes graves, perseguir adversários políticos, agentes públicos e membros do Poder Judiciário contrários ao exercício abusivo do poder de investigação.

Sérgio Cabral está condenado a mais de 250 anos de reclusão, e sua tentativa tardia de colaboração com a Justiça revela de forma cristalina, a qualquer leigo, falta de espontaneidade, fruto provavelmente de uma natural desesperança em obter a liberdade em um horizonte próximo.

Cabe destacar que ele está preso cautelarmente há quase cinco anos, em um claro excesso no emprego da prisão preventiva, o que é recorrentemente utilizado como uma forma de estimular a delação, como os próprios procuradores já várias vezes reconheceram.

Sérgio Cabral poderia estar, por exemplo, em prisão domiciliar, com o uso de tornozeleira, até eventual trânsito em julgado e condenação definitiva, mas, nesse contexto de desespero, rendeu-se à delação e, talvez até por isso, faltou-lhe a virtude da sinceridade. Sua proposta de delação foi rejeitada pela força-tarefa do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, ao argumento de que o ex-governador “deixava de falar de pessoas próximas, especialmente parentes e amigos que funcionaram como laranjas, líder da organização criminosa, com a clara finalidade de proteger certas pessoas e ocultar o proveito e produto dos crimes praticados”.

A colaboração é um meio de obtenção de prova sobre a autoria e materialidade de um crime. Isso significa que sua utilização no âmbito de inquérito deve ser admitida exclusivamente se puder oferecer elementos indiciários reputados relevantes, especialmente pelo destinatário da investigação, titular do exercício de futura ação penal.

A Procuradoria-Geral da República (PGR), que detém legitimidade para oferecer denúncia em face de detentor de foro por prerrogativa de função no STF, também rejeitou a proposta em razão das “mentiras e omissões seletivamente implementadas por Sérgio Cabral durante a negociação de eventual acordo de colaboração premiada com o MPF”.

Nesse caso, a opinião do PGR contrária à homologação, pela falta de credibilidade do delator e pela ausência de elementos indiciários concretos, obviamente deve ser juridicamente equiparada ao arquivamento dos fatos revelados, que sequer pode ser objeto de discordância do STF, segundo jurisprudência pacífica da corte.

Se a colaboração premiada é meio de obtenção de prova e o titular da ação penal, desde logo e por várias razões, desqualifica seu uso, considerando-a inadmissível, a homologação da delação é destituída de qualquer “utilidade” —o primeiro pressuposto para sua validade.

No caso específico, causa estranheza e reforça a falta de credibilidade o fato de as alegações contra o ministro Dias Toffoli terem sido apresentadas pelo delator em setembro de 2020, em data posterior aos arquivamentos determinados pelo ministro, então presidente da corte, após requerimento da PGR. Tanto no acordo de colaboração, homologado em fevereiro de 2020, quanto nos inquéritos arquivados não havia qualquer referência a Dias Toffoli.

Atribuir falsamente a prática de um crime a terceiro é crime grave, ainda mais censurável por intermédio de uma delação premiada. No caso em análise, a falta de verossimilhança do relato é tão grande que a alegação de "ouvir dizer" de Cabral —sem elementos de corroboração— foi prontamente negada por quem supostamente teria contado o fato ao ex-político.

Tal comportamento revela uma delação construída com espírito de vingança, motivo pelo qual tem que ser investigado a quem interessa isso, destituída de credibilidade e de mínimos dados objetivos a autorizar sua inútil e ilegal homologação, que se presta unicamente a tutelar a atuação desvirtuada e suspeita dos órgãos de investigação e ao constrangimento ilegítimo, injusto e irresponsável de um dos membros do Supremo Tribunal Federal. Neste momento, o ataque a um de seus membros é também um ataque à Suprema Corte, ao Poder Judiciário e à credibilidade do sistema de Justiça.

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