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Lucas Berlanza

Queremismos nossos de cada dia

Enaltece-se o líder, não importa o que faça ou diga

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Lucas Berlanza

Jornalista, escritor e diretor-presidente do Instituto Liberal

Quando desmoronava formalmente a ditadura de Getúlio Vargas e o Brasil projetava o tímido ensaio de uma experiência liberal-democrática, infelizmente logo restou claro que a formalidade não bastava. A mentalidade dominante seguia sequestrada pelos males do patrimonialismo, de um lado, e do personalismo demagógico, de outro, a se retroalimentarem.

O movimento queremista foi a demonstração cabal desse quadro. “Queremos Getúlio”, reivindicavam seus integrantes, “com ou sem Constituição”. O paradigma do queremismo é a revivescência do velho sebastianismo português. Os queremistas nossos de cada dia não conferem tanto relevo aos princípios a serem defendidos quanto ao líder incensado, em quem depositam toda a confiança e esperanças, à revelia das contradições que exibe —seja um “pai dos pobres” que viria remediar as misérias terrenas e instaurar o Paraíso para o alvorecer de um novo amanhã, seja um “messias” que se propõe a restaurar glórias de passados duvidosos.

Assim como a antiga União Democrática Nacional, na década de 1960, fez uso do carisma de Jânio Quadros, um populista sem formação udenista, para alcançar o poder e interromper a hegemonia varguista, muitos liberais fizeram em 2018 a aposta de aproveitar a porta aberta pela chapa Jair Bolsonaro-Hamilton Mourão para implementar uma agenda reformista. O bolsonarismo ascendente através da pregação virtual e o fenômeno de emergência de um pensamento liberal-conservador, que se convencionou chamar de “nova direita”, foram acontecimentos paralelos, mas, na esteira de uma conflagração aberta contra o lulopetismo, se cruzaram no resultado das eleições.

Não é o caso de fazer terra arrasada absoluta —já que, de resto, não o é em qualquer governo, mesmo nos piores. Liberais sérios passaram pelo Ministério da Economia, alguns ainda tentam fazer a diferença nas suas diversas secretarias, tendo obtido sucesso em implementar medidas de menor envergadura ou avanços microeconômicos, como a MP da Liberdade Econômica.

Contudo, já se passou tempo mais do que suficiente para perceber que a personalidade do mandatário da República, que jamais foi consistentemente liberal, nem politicamente, nem economicamente, tem imposto mais obstáculos do que ajudado aos propósitos liberais. No primeiro ano de mandato, a base governista, sempre em dificuldades para se organizar no Congresso em prol das agendas mais relevantes, produziu entrechoques que envolveram acusações sem provas de golpismo contra os próprios ministros e o próprio vice-presidente por mais de uma vez.

O período inicial de “lua de mel”, que em teoria favorece a atuação dos governos, evidentemente não foi aproveitado como deveria. Já ao começo do segundo ano, preferiu-se a participação histriônica em manifestações que bradavam por atos institucionais de um passado que não há de voltar à adoção de uma postura séria, capaz de mobilizar a liderança carismática verdadeiramente em prol das reformas.

Se há mesmo problemas crônicos inevitáveis em nosso sistema político, e a pandemia representa um grave obstáculo imprevisível, não é possível desconhecer a responsabilidade do governo Bolsonaro pelas suas explícitas deficiências. Entre ataques à privatização de uma estatal de abastecimento de frutas e verduras em São Paulo e uma portaria autorizando supersalários de servidores comissionados sendo recepcionada sem a reação contrária que merece, o ímpeto pelas mudanças que reclamamos se esvai.

Roberto Campos dizia que “no Brasil, os problemas não mudam; logo não mudam também as soluções”. Os maiores problemas do ciclo atual, infelizmente, ainda são os mesmos da era Vargas: a persistência do patrimonialismo e a consagração do queremismo do século 21. Quer-se enaltecer o líder, qualquer que ele seja, independentemente do que faça ou diga, sempre. Mesmo quem tenta apresentar alternativas, mais fala em nomes que em agendas ou propostas. Eis o que, no esforço por produzir lideranças qualificadas, os liberais precisam mudar.

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