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Charles Mady

Estado de Israel, Estado da Palestina

Como explicar que povos cultos cometem crimes indesculpáveis?

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Charles Mady

Médico e professor associado do Instituto do Coração (Incor) e da Faculdade de Medicina da USP

Guerras demonstram a que ponto a crueldade humana pode chegar e como é fácil despertar ódios em sociedades. Quando o medo e a sobrevivência são utilizados para unir povos contra o "mal", demoniza-se o oponente, e a solução é a eliminação do "outro". Já os vencedores escrevem a história.

Analisarei racionalmente, não passionalmente, um assunto de abordagem difícil e perigosa, onde poucos se aventuram, por receios naturais. Antecipo minha crença na existência de dois países, Israel e Palestina, não aceitando a destruição de um para a sobrevivência de outro. A condução do processo levou os lados a se impregnar de ódio, cometendo crimes contra a humanidade, com ações e reações atingindo uma barbárie que ofende a consciência humana.

A coletividade judaica é representada pelo Estado de Israel, aprovado pela ONU. Foi uma decisão merecida, para dar cidadania a uma comunidade internacionalizada. Mas mitos foram criados, e justificativas religiosas, históricas e arqueológicas penetraram a mídia internacional —de maneira muitas vezes suspeita e incorreta. "Uma terra sem povo para um povo sem terra". "O povo palestino não existe". Seriam essas afirmações verdadeiras?

A região é habitada há milênios, com tradições próprias. Pode-se criar uma sociedade sobre os escombros de outra? As reações palestinas foram cruéis, não respeitando inocentes. O terrorismo se tornou cada vez mais maligno, com limpeza étnica, bombardeios, atentados em regiões densamente povoadas, prisões lotadas de crianças, punições coletivas, destruições de vilas para o repovoamento com indivíduos outros que mal conheciam o local. Membros de um povo não nascem terroristas, ou religiosos fanáticos. Será que adquirem hábitos violentos pela violência sofrida?

Disse o ex-primeiro-ministro israelense Ehud Barak que faria o mesmo caso estivesse no lugar deles. "Morte aos árabes" é o lema de caravanas em bairros palestinos. Ódio gerando ódio. Ódio ao judeu, por ser judeu, e ao árabe por ser árabe.

Sou descendente de árabes e, quando lia notícias a respeito de homens-bomba, sentia vergonha. Sinto hoje o mesmo ao assistir às cenas diárias praticadas por um povo que sofreu os horrores do nazismo. Como surgiram nacionalismos fanáticos que justificam qualquer ato? Teríamos atavicamente esse perfil destrutivo? A falecida Brunhilde Pomsel, que foi secretária pessoal de Goebbels, comentava que o mal não tem limites (ela que conviveu com um dos responsáveis pelo nazismo). "Deus não existe, mas o diabo certamente existe. Não há justiça. Ela não existe." Dizia-se agnóstica.

Ésquilo, na Grécia antiga, preconizava: "Vamos nos dedicar a domar a selvageria do homem e tornar suave a vida neste mundo". Como explicar que povos cultos cometem crimes indesculpáveis? Povos que sofreram, mas, hoje, fazem sofrer. Não aprenderam nada com a história? Será que Deus criou povos mais importantes que outros? É o que as "religiões" de Meir Kahane, Khomeini e Bin Laden preconizam.

Precursores do sionismo radical, como Jabotinsky, que viveram antes do Holocausto, incutiram essas ideias numa juventude permeável, assim como o Islã fanático é apresentado a jovens que se impregnam pela intolerância. Estão ganhando força, com forte presença na política.

No Deuteronômio da Torá, ou Velho Testamento, está escrito que todo ser vivo em Canaã deveria ser eliminado para dar lugar ao povo eleito. Acreditam no lado maligno das escrituras. Desde David Ben-Gurion, nenhum primeiro-ministro foi contra esses pensamentos, pois estimularam a limpeza étnica. O outro lado foi tomado pelo ódio, e hoje assistimos à selvageria consequente.

A ONU, em vez de ter trabalhado pela integração, ficou omissa por muito tempo. Como no Coliseu de Roma, a plateia se rejubila com a carnificina. O fanatismo teve portas abertas para crescer, em nome de elitismos, sectarismos e racismos, com ampla conivência. Deixam de lado uma cultura humanística para viver fanatismos doentios. Como dizia o falecido Desmond Tutu, os Estados estariam plantando e disseminando terroristas. É triste.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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