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Rafael Cortez

Sinais de ruptura

Com 100 dias, Lula se distancia de governo anterior, mas ainda é tímido na agenda econômica

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Rafael Cortez

Doutor em ciência política, é sócio da Tendências Consultoria

A avaliação dos 100 dias do novo governo precisa ser feita à luz do ambiente político que marcou a transição após a eleição de 2022. Os desafios para a construção do terceiro mandato do presidente Lula começam com os desdobramentos do cenário de radicalização política, expresso na menor diferença entre a votação dos candidatos em segundo turno da história da política no Brasil pós-Constituição de 1988. Essa divisão entre grupos sociais e da elite política marca os desafios da construção da coalizão e impacta a agenda que o governo apresentou para a sociedade brasileira. O terceiro mandato do presidente Lula nasceu sob a expectativa de reconstrução do efeito moderador da democracia, da disposição para o diálogo em busca de políticas apoiadas por diversos segmentos da sociedade.

Por ora, o presidente parece apostar em revisitar seus mandatos anteriores como o caminho para essa união sinalizada ao longo da campanha. Tal estratégia trouxe para a agenda econômica um enorme choque de incerteza. Revisitar os mandatos anteriores no plano econômico é sinônimo de desconstruir parte importante da política econômica dos últimos anos, o que gera percepção de risco elevado entre os agentes econômicos.

"Vou governar para 215 milhões de brasileiros e brasileiras e não apenas para quem votou em mim. Vou governar para todos e todas, olhando para o nosso luminoso futuro em comum e não pelo retrovisor de um passado de divisão e intolerância."

A fala do presidente Lula, por ocasião do discurso de posse, acerta quando enfatiza a necessidade do "olhar para frente". A democracia no Brasil passou por um choque político-institucional que deve deixar marcas por um longo período. O país precisa reencontrar a "era de ouro da política brasileira", período marcado pela alternância de poder pacífica entre as principais forças políticas.

Assim, superar o processo de radicalização expressa no choque entre forças políticas e organizações democráticas é condição necessária para a estabilidade democrática. O sistema eleitoral e o Supremo Tribunal Federal tornaram-se foco de deslegitimação, o que representa um ataque ao sistema de freios e contrapesos da democracia.

Os sinais dessa instabilidade institucional não demoraram a impactar o novo mandato. O dia 8 de janeiro de 2023 marcou a invasão da Praça dos Três Poderes e a destruição do espaço que representa os pilares da democracia, em uma espécie de "americanização da política brasileira".

Assim, a resolução da questão militar tornou-se tarefa essencial do novo governo. A acomodação das relações entre civis e militares é marca de países com democracia enraizada. Não por acaso, o nome do ministro da Defesa foi o primeiro a ser confirmado para iniciar a reconstrução da institucionalidade democrática.

A polarização política, na verdade, antecipou o início do novo governo. O presidente eleito governava, mas sem mandato. A PEC da Transição era vista como medida do novo mandato, mas não havia ministro da Fazenda. O Orçamento para 2023 não cabia na emenda do teto de gastos; o novo governo tinha urgência em responder às promessas eleitorais, mas não havia equipe formada. O então presidente Jair Bolsonaro (PL) mal tinha reconhecido a derrota e deixava o país antes do término do mandato.

Tal cenário aumentou o apetite da nova administração por estabelecer sinais de ruptura com o governo anterior. Da formação da equipe às medidas sinalizadas pelos novos tomadores de decisão, pouco deveria parecer com o governo anterior. A ideia parece ser inaugurar uma "era da reconstrução das políticas públicas".

A nova política econômica do governo Lula não tem propriamente novidade. O presidente Lula busca no passado a receita para o Brasil encontrar crescimento novamente. Reajuste de salário mínimo, BNDES, Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida e PAC devem voltar a ter protagonismo nas políticas públicas.

Curiosamente, a coalizão de governo desenhada no início do mandato é heterogênea, incluindo partidos que desconstruíram as políticas de governos petistas. A balança de força entre esses partidos define o ritmo e a direção das mudanças na agenda econômica. A promessa é gerar crescimento econômico a partir da restauração da confiança dos agentes, após tumultuado período no plano institucional. O tripé "credibilidade, previsibilidade e estabilidade" será desafiado se essa carta de intenções dos primeiros mandatos, de fato, for efetivada.

A disposição em superar o governo anterior é especialmente forte no plano da política externa. O começo da gestão já mostrou o retorno da diplomacia presidencial por meio da disposição de Lula em sair da armadilha bolsonarista das disputas ideológicas com EUA e China, o que limitou os esforços de integração econômica. O presidente aposta na reconstrução da liderança regional e de porta-voz dos países emergentes, o que parece ser fundamental para enfrentar os mares turbulentos da geopolítica internacional.

Do ponto de vista da política, a avaliação dos 100 dias ainda mostra um distanciamento grande entre a agenda de governo e a ideia de frente ampla, essencial na vitória eleitoral de Lula. Essa falta de agenda, talvez, explique a relativa timidez do governo em dar concretude a sua agenda de reconstrução econômica.

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