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Márcio Monteiro Reis

A governança fluida do Estado brasileiro

Bem ou mal-intencionado, poder público não pode ser exercido nas sombras

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Márcio Monteiro Reis

Doutor em direito público (Uerj), é professor de direito administrativo (Ibmec) e presidente da Comissão de Direito Administrativo da OAB-RJ e da Comissão de Serviço Público, Concessões e Permissões do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro (Idarj)

Chamamos governo a organização que as forças políticas vencedoras em uma eleição adotam para comandar a administração pública. O mandatário eleito faz as articulações possíveis e monta a estrutura administrativa que caracterizará a sua gestão: quantos ministérios, quais os órgãos e entes públicos que estarão submetidos a cada um deles e quais as atribuições e competências que serão destinadas a cada autoridade.

Tradicionalmente, esse arranjo institucional é proposto pelo governante entrante e ratificado pelo Parlamento, já que a estrutura administrativa do Estado é estabelecida por lei. Cabe ao Legislativo —no caso da União, ao Congresso Nacional— autorizar as despesas públicas, e essa estrutura tem custo.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), conversa com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress - Folhapress

Em geral, a primeira medida de um novo presidente é a edição de uma medida provisória —que tem força imediata de lei, mas precisa ser aprovada em até 120 dias pelo Congresso— estabelecendo o desenho institucional do governo que virá e distribuindo os poderes e competências com base nas quais se passará a governar. Em vista da conhecida lua de mel entre governo e Congresso nos primeiros meses de mandato, essa MP costuma ser aprovada e transformada em lei sem sobressaltos.

No governo passado, inaugurou-se uma participação ativa do Congresso, com pretensão de interferir nesse arranjo da estrutura administrativa do Executivo. Um dos pontos mais polêmicos foi o debate sobre a transferência do Coaf, que deixou a estrutura do Ministério da Justiça, a ser comandada por Sergio Moro, e passou a se subordinar ao Ministério da Economia, de Paulo Guedes.

No atual governo, vimos um movimento mais agressivo do Congresso, que acabou descentralizando órgãos e competências de interesse para a formulação das políticas ambiental e indígena, retirando-os do Ministério do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas e dispersando-os por outras pastas.

Surgem, então, alguns questionamentos sobre os poderes do Congresso. Isso porque, se é verdade que cabe ao Parlamento autorizar a estrutura que terá a administração pública, em razão dos gastos que isso implica, é também verdade que, após a aprovação da emenda constitucional 32, que alterou o regime das medidas provisórias e retirou poderes da Presidência, uma das compensações criadas foi a atribuição ao presidente do poder para editar decreto sobre organização e funcionamento da administração federal —quando não implique aumento de despesa.

É esse o caso: estabelecer quais secretarias, autarquias ou órgãos púbicos ficarão sob o guarda-chuva de cada ministério e quais as suas competências não implica aumento de despesa. Criar estruturas novas, isto sim, depende de lei. A rigor, o presidente Lula poderia ter editado uma MP apenas para esse efeito, procedendo via decreto àquilo que consistiria apenas na reorganização das estruturas já existentes. Se não o fez, dando ao Congresso a oportunidade de interferir, certamente não foi por uma opção de governo, mas por ignorância quanto ao regime de governança, que no Brasil é pouco conhecido e discutido.

Já a criação de cargos novos ou de parcelas remuneratórias para servidores é certamente matéria exclusiva de lei. No entanto, assiste-se com frequência, especialmente por autoridades do Judiciário e Ministério Público, à criação de parcelas denominadas "indenizatórias", mas com clara natureza remuneratória, por meros atos administrativos não submetidos ao Parlamento —embora claramente afetem a despesa pública.

Outro tema relacionado à governança também tem chamado a atenção da opinião pública e da mídia, apontando-se a participação da primeira-dama, que não tem cargo público, em processos de tomada de decisão do governo. Já no governo passado, a imprensa frequentemente noticiava que o filho do ex-presidente, vereador no Rio de Janeiro, ocupava sala no Planalto e tinha atribuições de comando informal na área de comunicação.

Quem exerce autoridade pública deve estar submetido a um regime próprio de transparência e responsabilização. Bem ou mal-intencionado, o poder público não pode ser exercido nas sombras, e a moderna governança pública não pode tolerar eminências pardas.

Há muito, portanto, como se vê, a evoluir na construção de um efetivo ambiente de governança para o Estado brasileiro.

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